O perfume do veneno
Às vezes, deita a cabeça e sente o perfume do veneno. Sabe que é veneno, mas abre a boca para inalar, engolir, tragar, manducar. Derrama da cabeça, da mente erodente. Escorre pelo corpo, se entranha no chão e vira semente. Cresce na mesma noite, usando os pés como raiz; é rasteira, é videira. Brota pelas mãos, cotovelos, orelhas, nariz, boca, topo da cabeça.
Batem na porta, não consegue se mover. Mesmo que conseguisse, não se importaria. Deixe que vão. Melhor assim. Deita, sente a cama forrada de folhas frescas e macias. Murcham num minuto. Secas como a boca ressequida, lábios tracejados, lanhados. O manto verde arranha as costas, fere a pele. Os espinhos não param de crescer, furam a carne. Sangue, sangue, sangue. Sangra mesmo. Salta da cama e caminha em direção à janela.
O veneno escorre pelos poros. Amarescente, não mais. Da vergonha subjacente ainda resta a dor de dente. Talvez devesse ter falado. Não importa mais. Abre a janela e deixa a chuva torrencial entrar, oblíqua como a própria existência. Fecha os olhos e deixa a água lavar. Lava tudo. Não resta mais nada, a não ser um corpo cicatrizado, quiçá provisoriamente purificado.