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Uma noite no fliperama
Frequentar a Play Time me garantia uma aula semanal de “experiência mundana”
Em 1993, meu pai levava eu e meu irmão mais velho, Douglas, uma vez por semana na Play Time, uma famosa casa de fliperamas situada na Rua Manoel Ribas, no centro de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Chegando ao local, um paraíso juvenil de mais de 20 máquinas do tipo arcade que mais lembrava o cenário de um filme teenager estadunidense dos anos 1980, ele falava para formarmos uma concha com as mãos e distribuía dez fichas para cada um. Enquanto jogávamos, nosso pai ficava ao lado, no Bar Toyokawa, mais conhecido como Bar do Kengo.
Eu era pequenino, tinha menos de dez anos e estudava na Escola Vicentina São Vicente de Paulo numa época em que as professoras, principalmente freiras, colocavam os alunos de castigo por mau comportamento. O meu mundo era tão minúsculo quanto eu fui na infância. Cheio de limites, me fazia ter uma visão bem canhestra da realidade, embora eu fosse muito curioso. Por isso o fliperama significava mais do que diversão baseada em jogos eletrônicos.
Foi nas idas noturnas à Play Time que conheci crianças da minha idade que já bebiam, fumavam e se drogavam. Tinham uma linguagem própria que fazia eu me sentir um pouco estrangeiro. Era um universo que me intrigava e ao mesmo tempo me amedrontava. Eu os via de longe e às vezes deixava de jogar apenas para observá-los. Encostavam suas caixas ao lado das máquinas e acompanhavam os jogadores com os olhos. Davam palpites na tentativa de ganhar a confiança, uma oportunidade e quem sabe até uma ficha.
Lembro quando um desses garotos se aproximou de mim. Era um engraxate de não mais que 12 anos. Eu estava entretido com um jogo de tiros com cowboys chamado Sunset Riders, um dos mais disputados do lugar. De repente, ele cutucou meu ombro e disse: “Ei, você pode me deixar jogar? Sou bom nisso. Passo fácil essa fase aí. Deixa, vai!” Acabei cedendo. Era um garoto negro, franzino, de cabeça raspada e com as unhas cheias de vestígios de graxa. Conforme ele jogava, eu prestava atenção em suas mãos e expressões faciais. Era melhor que eu. Jogava com muita vontade.
A impressão que tenho até hoje daquele momento é de que enquanto aquele garoto não vencia na vida ele merecia pelo menos vencer no jogo. E era o que acontecia. A verdade é que não o deixei jogar pensando se ele passaria de fase ou não. Tanto que depois comecei a dividir metade das minhas fichas com ele, independente do desempenho. Em troca, conheci um pouquinho do seu mundo numa permuta não declarada. Me contou que trabalhava das sete até as oito da noite – nem sempre recebia pelo serviço que prestava. Às vezes tinha que fugir para não apanhar dos clientes mais abusivos.
O chamavam de Graxinha e me recordo, numa reminiscência enuviada e parcial, quando revelou que nasceu e foi criado na Vila do Sossego, atual Vila Alta, na periferia de Paranavaí. “É um lugar pra lá do buracão. Moro do lado, numa barraca. Mas nem dá nada. Não vou pra casa sempre. Acostumei a dormir por aí, em banco de praça ou na rodoviária. Assim não preciso ir e voltar todo dia”, relatou. Ficou atônito, ou pelo menos fingiu, quando um dia me pediu um isqueiro e expliquei que não tenho. “Ué, você não fuma? Vai me dizer que também não bebe?”, questionou. Quando respondi sem jeito que não, Graxinha fez uma expressão mimética de surpresa, se calou por segundos e soltou uma gargalhada. Fiquei envergonhado. Só balancei a cabeça e dei um sorriso acanhado.
Desinibido, mas cuidadoso, circulava por Paranavaí só em turma. Dizia que era perigoso andar sozinho porque “de noite a vida do marginal vale menos do que durante o dia”, algo assim. O grupo era formado por sete ou oito engraxates, todos menores de idade. Meu pai conhecia cada um e sempre pagava algo para eles comerem e beberem. Acho que fazia muito mais do que isso. Com o tempo, me dei conta que meu pai, que um dia também foi engraxate, não me levava apenas para jogar, mas também para aprender mais sobre a vida e o mundo. O contato com esses garotos garantia isso. Era como uma aula semanal de “experiência mundana”.
No mesmo período eu soube que muitos dos engraxates de Paranavaí que tinham essa faixa etária inalavam cola de sapateiro, tíner e benzina. Uns diziam espontaneamente que era o jeito de suportar a vida na rua ou o frio rigoroso que chegava no final de junho, ainda que pudesse afetar a mucosa do nariz. Ingenuamente outros se “fantasiavam” de adultos com um cigarro em uma mão e um copo de cerveja na outra. Na ausência de referências, eram precoces que viviam à sua maneira numa época em que crianças podiam tranquilamente comprar bebida alcoólica ou tabaco.
Apesar disso, sempre vi esses garotos como bastante amigáveis. Apenas tentavam sobreviver com o que conseguiam engraxando sapato até tarde da noite. Me pareciam destemidos, mesmo quando estavam agachados e cabisbaixos nas esquinas, armazenando suas ferramentas de trabalho dentro de caixas personalizadas com palavras aleatórias, frases e desenhos feitos à caneta. Na Play Time e em muitos outros estabelecimentos comerciais, alguns clientes os desprezavam tanto que os xingavam e iam embora quando eles chegavam. Os engraxates não gostavam de briga, então só ignoravam. Felizmente, o Eduardo, proprietário da casa de fliperamas, sempre os recebia com cordialidade e respeito.
Um dia, sem avisar ninguém, Graxinha desapareceu. A última vez que o vi ele estava sorrindo e acenando enquanto pegava carona no estribo de uma Caloi Cross branca como a cor do seu boné. Uns afirmam que foi embora de Paranavaí, outros comentam que o assassinaram. Quase 20 anos depois, conheci o lugar onde o jovem engraxate viveu. Não havia mais nada. No local, só um vazio, alguns restos mortais de cães e gatos, uma placa com um trecho do salmo 22, um pouco de lixo e um céu que parecia mais baixo e nebuloso do que em qualquer outra parte da cidade.