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Nefaltzi Vallató
“Reveste-lhe o âmago um mausoléu, nuvens turvas que no decantar de suas lágrimas expropriam o céu”
Na década de 1910, antes do surgimento das cidades do Noroeste do Paraná, já havia um núcleo populacional a poucos quilômetros da fronteira do Paraná com o então Mato Grosso. Era um lugarejo isolado, mas muito bem organizado e com boa infraestrutura, onde ninguém poderia entrar sem autorização de uma companhia de colonização conhecida como Sulina – O Braço Armado do Norte Sulista. A colônia foi fundada por um grupo de magnatas que tinha como conselheiro um suposto profeta chamado Ausenbaum. O homem defendia que as tradicionais sociedades urbanas definhariam até 1930. Também pregava que o fim do mundo estava próximo.
À época, vivia no povoado um jovem questionador na faixa dos 20 anos e estatura mediana. Seu nome era Nefaltzi Vallató e ele tinha o atípico costume de passar horas do dia em um cemitério clandestino que começava onde terminava a colônia – local em que seus pais foram enterrados dois anos antes, em 1913. Por causa desse hábito, um dia o jovem foi abordado por dois guardas. Um deles sorriu e o cumprimentou. Nefaltzi retribuiu a cordialidade, porém se manteve circunspecto. O mais baixo, um homem chamado Marino, que se dizia um poeta do acaso, chamou-lhe a atenção e o questionou: “Rapaz, sorria! De que adianta nutrir sentimentos negativos na alvorada se é no resguardar da madrugada que a serpente deve ser alimentada?”
Nefaltzi, que desde a morte dos pais nunca sorria com facilidade, respondeu: “Por que ultrajar a verdade? Por que demonstrar emoções inexistentes e obscurecer as verdadeiras? Confuso és, pois dentro de ti reveste-lhe o âmago um mausoléu, nuvens turvas que no decantar de suas lágrimas expropriam o céu. Por que abrir a boca e expor os dentes se for arbitrariedade aos sentimentos?” Impaciente e ofegante, Marino pediu que Nefaltzi virasse de costas. Algemou-lhe as duas mãos e o levou até o pequeno escritório da Polícia Independente de Sulina. No local, o rapaz foi formalmente autuado por desacato. Sileno, o único investigador contratado pela companhia, abriu um inquérito, prevendo que a polícia poderia ser vista como bonapartista.
Vallató preservou o mesmo semblante – de um rosto pictórico, assim que Sileno o inquiriu sobre o desrespeito ao guarda. Sem compreender com clareza, abaixou a cabeça, coçou a palma da mão, se levantou e disse: “Por que muitos cavalgam na luz se sabem que enxergam apenas no escuro? O galope com destino à refração enobrece alguém? Saiba, senhor, não sei onde nasce ou morre a razão, mas acredito que é no ranger dos dentes que se admite a intransigência ou a intemperança”, comentou Nefaltzi que ainda refutou a acusação e perguntou se poderia fazer outro comentário.
O investigador concordou e Vallató discursou: “Se acordas pela manhã e beijas a fronte de seu primogênito, não o faz para congratular-se como benemérito de Lemúria, e sim porque no desabrochar de uma relação o sentimento tenro privilegia a sinceridade, autodoação. Pena que seja limitado e defasado, tanto quanto o princípio da isonomia que, embora registrado na Magna Carta, destoa da realidade em tempos modernos. Penso em nós como selvagens, logo que nascemos e abrimos os olhos, somos impelidos a enxergar o mundo sob a hierarquia de Lupus – somos todos animais engolindo a mesma cauda, a nossa e a dos outros. Antropofagia! É isso que praticamos todos os dias!”
Nefaltzi se calou por segundos, até que o investigador, tornado meândrico, o interrogou sobre a relação de seu discurso com a autuação. Estático, justificou: “Nenhuma! Principalmente se enxergas o mundo como uma extensão do próprio quintal!” Irrequieto, Sileno levantou-se e pediu a ele que o acompanhasse até a sala do delegado Abílio. Foi recebido cordialmente, embora a fisionomia do homem transmutou-se ao saber o motivo da visita. Sileno reclamou que o rapaz se recusava a colaborar durante o interrogatório, então indagou se Abílio poderia cuidar do caso. Apesar da feição carrancuda e da sudorese repentina, o delegado concordou, dispensou Sileno e pediu que Vallató se sentasse.
Com olhar esfíngico, o estudante também interpelou Abílio sobre o motivo da acusação. “Meu jovem, você foi trazido até a minha sala porque temos a melhor das intenções, por que não contribui e ainda faz o possível para dificultar o nosso trabalho?”, queixou-se. Nefaltzi prosseguiu em silêncio, roçou o piso de madeira com a sola do sapato e disparou: “Transgressão, será? Hum…parece-me um aparato ardiloso. Sabes o motivo, não é mesmo? Pois bem, é volátil, não é substancial nem equânime. Eu e o senhor sabemos que a verdadeira transgressão é aquela que mascara o capricho de poucos em detrimento de muitos. Isso me lembra um vizinho que resolveu derrubar uma árvore porque não lhe forrava mais o quintal com bons frutos.”
Irascível, o delegado se retirou da sala e pediu a Sileno que formalizasse o pedido de prisão preventiva. Na noite daquele dia, Vallató foi preso após o parecer favorável do juiz Bacelar. Marcaram o julgamento para a semana seguinte. Nefaltzi rejeitou o direito à defesa. Durante a curta audiência, Bacelar questionou se o jovem tinha algo a declarar, logo que o promotor deu por encerrado o caso. Com a mesma feição peculiar, soergueu-se modestamente, olhou para o juiz e argumentou:
“O que significa ser culpado ou inocente? A culpa pode nascer da inocência, assim como a inocência pode ser rebento da culpa. Creio que dispendem tempo demais com os lacônicos e esquecem dos binômios. De qualquer modo, ficarei grato se o meritíssimo senhor juiz responder a pergunta que farei agora: ‘Por que o homem refugia-se nos ditames da sociedade quando macula a própria integridade com a ignorância da inverdade?’” O magistrado torceu o nariz, não respondeu e anunciou o veredicto. Vallató, que não tinha mais família na colônia, foi condenado a dez anos de prisão. A pena começou a ser cumprida numa área erma e privada situada a sete quilômetros ao leste de Sulina.
No dia seguinte, encaminhado ao seu destino, Nefaltzi teve o dorso amarrado por uma longa corda de cânhamo que o desceu até a Boca Apuara, um buraco com cinquenta metros de profundidade, úmido e sobrenaturalmente oxigenado, o que evitava que os transgressores morressem asfixiados. Quando Vallató foi deixado na Apuara, não havia nenhum outro condenado vivendo ali – estava sozinho. Nos primeiros meses, Marino e alguns amigos do rapaz percorriam o trajeto a pé até chegarem ao local. Lá, gritavam-lhe o nome e pediam que recostasse à lateral direita para não ser machucado pelo atrito com os alimentos lançados ao buraco.
Desde a condenação, Nefaltzi nunca mais falou, embora ao longo das visitas sinalizasse que estava bem, entoando sons primitivos com o auxílio de uma ocarina que carregou escondida no bolso no dia da transferência. Três anos depois do confinamento, ninguém mais se lembrava dele. Por eventualidade, um rapaz, Titu Csendes, que há muito tempo deixou a colônia com a família, retornou para ver de perto a situação do amigo. Csendes, ao gritar em vão durante horas diante da Boca, ficou desesperado e resolveu pedir ajuda no escritório policial e na sede administrativa de Sulina. Enviaram três guardas. Um deles desceu até o buraco e se assustou ao encontrar Nefaltzi morto, com o corpo sujo pelo solo vermelho.
O guarda se surpreendeu com a pouca profundidade da Apuara. Depois que retiraram o cadáver, usaram um enorme rolo de fita métrica para mensurá-la. A Boca de cinquenta metros estava com menos de quinze. Houve grande comoção e espalhou-se pelo lugarejo um boato de que o mundo chegaria ao fim em poucos dias. Antes do enterro de Nefaltzi Vallató, ninguém percebeu que o interior da sua boca tinha vestígios de terra vermelha. Do lado de seu corpo, antecipando o próprio fim, o jovem escreveu uma frase usando a face da pequena ocarina: “Alimento-me da boca para a qual servi de alimento.” Ninguém entendeu ou se importou.
Curiosidade
Quando comecei a pesquisar sobre a história de Paranavaí em 2006, há dez anos, escrevi o meu primeiro conto inspirado no tema – “Nefaltzi Vallató”. Hoje, depois de tanto tempo, o divulgo pela primeira vez.