Lembranças do jardim de infância
Curioso que era, eu me inebriava em imagens, sons, sensações e emoções desconhecidas
Lembro como se fosse hoje das aulas do jardim de infância da Escola Vicentina São Vicente de Paulo, no final dos anos 1980. Eu tinha cinco anos e estava aprendendo a passar algumas horas longe da minha família. No primeiro dia de aula, enquanto meu irmão mais velho não soltava a mão da minha mãe, chorava e pedia pra voltar pra casa, eu me silenciava diante de um mundo totalmente novo. Também me sentia mais seguro porque estava usando a minha botinha do Rambo. Curioso que era, eu me inebriava em imagens, sons, sensações e emoções desconhecidas.
Nunca tinha visto tanta gente pequena como eu junta em um mesmo local. Naquele tempo, as crianças chegavam à escola carregando doces nos bolsos. Tudo era permitido para que se comportassem pelo menos até os pais irem embora.
Os mais desajeitados eram asseados pelas mamães com lenços de pano sempre ao alcance das mãos. A pressa mais do que constante se intensificava quando uma das freiras da escola acionava um botão que emitia um som semelhante ao de um sino. Então um barulho dissonante de passos e vozes ecoava pelo pátio de piso liso e cintilante que sempre me parecia enorme, mesmo não sendo.
Antes da minha mãe ir embora, eu era conduzido a uma fila por ordem alfabética ou de altura. Então cantávamos o hino nacional em posição de sentido. Me sentia um soldadinho quando observava várias crianças perto de mim com o corte de cabelo igual ao meu, o chamado surfista, asa delta ou “corte de penico” para os zombadores.
Na sala de aula, um ambiente multicolorido que estimulava tanto o raciocínio lógico quanto o abstrato, eu enxergava apenas diversão e passatempo. Sentado em uma cadeirinha azul a poucos centímetros do chão, gostava era de ouvir historinhas fantasiosas sobre bichos e crianças. “João e Maria”, “O Pequeno Polegar”, “João e o Pé de Feijão”, “O Soldadinho de Chumbo” e “Rumpelstichen” me acompanharam por muito tempo, nutrindo a minha imaginação. Mas nenhuma outra história me fez sonhar tanto no jardim de infância como “A Festa no Céu”.
Empolgado, um dia cheguei em casa, joguei a mochila e contei ao meu pai o que tinha ouvido. Então ele narrou uma versão mais pomposa, imitando os sons dos animais. Entre palavras e coaxos, dublava um sapo mágico como ninguém. Mesmo assim eu ficava triste e com dó dos bichos que não sabiam voar e não poderiam se fartar em um banquete edênico.
Como eu ainda estava aprendendo a ler e escrever, acabei por criar as minhas próprias versões em sonhos. Na primeira, corri pela floresta, gritando os nomes dos animais e distribuindo asas para que pudessem voar. Na segunda, encolhi com assopros todos os bichos da mata que não sabiam voar e os escondi dentro da viola do urubu convidado para animar a festa no céu.
Mais tarde, a ideia de animais falantes continuou me acompanhando, tanto que um dia cheguei em casa e contei à minha mãe que tinha encontrado um cãozinho mestiço ferido perto da Avenida Distrito Federal clamando por ajuda. “Ele estendeu a patinha, olhou pra mim com cara de choro e disse: ‘por favor, me ajude! Tô com muita dor, me leve daqui. Deixa eu ir pra sua casa’. Quando tentei levantar o bichinho, ele colocou as patas em volta do meu pescoço, fechou os olhos e morreu”, relatei bastante sensibilizado.
Na escolinha, eu e Fabrício entrávamos furtivamente na casa das bonecas, um ambiente rosa proibido aos meninos, para ver como era e o que tinha lá dentro. Arteiros, mudávamos muitas coisas de lugar, saíamos de fininho e íamos direto ao parquinho, fingindo que não tínhamos feito nada. Quando as suspeitas recaíam sobre nós, sorríamos com certa inocência diante do olhar reprovador da orientadora, uma freira corpulenta, alta e sisuda que diziam carregar no bolso uma palmatória borrachuda que fazia as mãos formigarem por até uma semana.
Fiquei mais assustado quando espalharam um boato de que no piso superior da escola existia um quartinho sem janela e iluminação, onde as crianças mal comportadas ficavam presas e recebiam ocasionalmente golpes de férula. Meu corpo miúdo estremecia, meus olhos estalavam e eu sentia uma ligeira fraqueza quando pensava na possibilidade de ser enviado para aquele lugar.
Meus medos só eram amenizados quando a professora Angela falava comigo. Então o breu dos meus pensamentos eram descortinados por rajadas de cores e luzes que me faziam flutuar na inércia de um paraíso cinematográfico. No recreio, a imaginava ao meu lado no banquinho dividindo um lanchinho Recreio ou Mirabel. “Talvez um dia a gente partilhe um Dedito. Humm…será que ela prefere pão com Cremutcho?”, refletia enquanto balançava os pés que mal alcançavam o chão.
Em tempo de parque de diversões, nem prestava atenção no que a professora dizia. Ficava pensando em nós dois na roda gigante vendo as luzes da cidade, comendo maçã do amor e eu ganhando pra ela um urso de pelúcia depois de dar um tiro certeiro com uma espingardinha de rolha na testa de um gremlin.
Também foi com cinco anos que tive minha primeira experiência com a morte. Meu amiguinho Fabrício, que morava nas imediações da Rua Silvio Vidal, perto do NIS Central, estava passeando de bicicleta quando foi atropelado por uma carreta. Fiquei confuso porque não sabia o que a morte significava exatamente. Nem tinha ideia de que seu corpo miúdo seria sepultado dentro de um caixão lacrado. Então eu perguntava à minha mãe se eu teria a chance de brincar com ele algum dia; se o Fabrício não estava apenas dormindo e um dia iria acordar e juntos iríamos até a Padaria Pão de Açúcar comprar sodinha.
Com o passar dos meses, comecei a entender que a morte era um desencontro sem data para chegar ao fim. Falavam que ele foi para o céu, mas eu olhava pra cima, o procurava e não o enxergava. “Será que existe um céu diferente ou essas nuvens estão escondendo ele?”, me questionava sentado no meio-fio na entrada de casa. Queria voar que nem o urubu da “Festa no Céu” e procurar o Fabrício. Achava que ele poderia estar deitado num lugar tão alto que só quem tinha asas poderia alcançá-lo.
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