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A morte serena

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A forma como a vida pode se esvair sem transparecer cruel ou atemorizante

Pintura "A Morte de Elaine", do canadense Homer Watson

Pintura “A Morte de Elaine”, do canadense Homer Watson

Ontem, sentado sobre a calçada e diante de um céu anilado que jamais prenunciaria a borrasca de hoje, comecei a conversar com um amigo sobre a morte enquanto seu gato siamês rolava de um lado para o outro embaixo da cadeira com cordas de nylon, cutucando meu calcanhar esquerdo com suas garras.

O assunto era a morte serena ou a forma como a vida pode se esvair sem transparecer cruel ou atemorizante. Como contraponto, em um primeiro momento lembramos de casos em que conhecidos e amigos morreram em tragédias. Foram sepultados dentro de caixões fechados porque nada havia restado que pudesse ser associado a quem foram um dia.

Ele me relatou a experiência que teve ao ver na juventude o seu cunhado morrer eletrocutado enquanto trabalhava. Emocionada com a notícia, mais tarde sua irmã não resistiu ao anseio de ver o marido e abraçá-lo pela última vez. Ao toque vigoroso dos braços e mãos da moça, o corpo já reduzido do rapaz se desfez como se diante dela estivesse um grande pacote de cinzas.

Lembrei de histórias de pessoas da minha família que morreram dormindo, deitados sobre suas camas, trazendo no rosto uma clássica expressão de serenidade. Admito que não sei se sofreram em algum momento, mas prefiro a poesia do não porque a ideia da partida preservando todas as características da última vez em que foram vistos sempre me pareceu tão digna quanto misericordiosa e lírica.

Por mais que tenhamos receio do fim, admito ver beleza na finitude singela de quem chegou a um ponto da vida em que vaidade, ganância e antagonismo tornaram-se palavras vazias porque já não representavam mais nada. Percebi isso em algumas pessoas dias e meses antes de falecerem.

Dedicamos muito tempo conhecendo o significado de tantas coisas e é justo que na etapa final dessa caminhada seja preservada somente a semântica e o valor daquilo que é essencialmente minimalista. Acredito que quem vive à sua maneira, dignificando o autoconhecimento, evitando o remorso e o rancor, lá na frente pode ter o privilégio de partir como se o passamento fosse um presente tão valioso quanto a vida.

A morte serena me traz lembranças de Seu Sátiro, de 94 anos, que conheci em 2012. De fala remansosa e ponderada, recebia visitas diárias em casa, inclusive de estranhos interessados em ouvir suas velhas histórias. Um dia, deitado na cama, Seu Sátiro disse: “Espere só um pouquinho.” E dormiu sorrindo para não acordar mais.

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Written by David Arioch

April 26th, 2016 at 7:37 pm