David Arioch – Jornalismo Cultural

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Happy e Chemmy

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Como criança orgulhosa, engoliam o próprio intento e continuavam suas traquinagens

Eu e Chemmy antes dele e Happy serem levados de casa (Foto: Arquivo Familiar)

Eu e Chemmy antes dele e Happy serem levados de casa (Foto: Arquivo Familiar)

Em 1991, meu pai chegou em casa com dois filhotes de poodle. Eu, muito pequeno, olhei atentamente aqueles desconhecidos animaizinhos de pelos grossos e brancos. “Que bichinho de pelúcia é esse? Parece de verdade!”, comentei sorrindo, com a experiência de quem nunca viu um cãozinho daquela raça, enquanto cutucava o dorso do menor que reagiu lambendo minha mão e pulando em minha direção.

Na minha concepção meninil, era como se a neve pudesse ser morna, fragmentada em pequenos flocos que se juntavam formando vidas diminutas. Surpreso e empolgado, deitei no chão e os dois, tão miúdos que os pelos da barriga chegavam a lustrar o piso coberto de cera vermelha, percorreram meu rosto, pescoço e braços com suas linguinhas ásperas, vigorosas e quentes. Me davam a sensação de uma paradoxal lixa exposta ao sol, com a principal diferença de que a deles acariciava e não raleava ou machucava.

Cheios de energia, circulavam pela sala e a reconheciam como um universo de possibilidades. Saltavam de forma tão espontânea e chistosa que pareciam confundir a própria natureza com a dos pôneis. Dóceis, roçavam a lateral do dorso pelo meu corpo e seguiam deslizando até se enfiarem debaixo de cada um dos meus braços. Espiavam minha reação e quando eu ria eles se aproximavam, subiam sobre o meu peito e davam latidos finos, curtos e briosos, acompanhados de olência vaporosa de leite que intensificava o meu deleite.

O toque de seus pelos me lembrava a suavidade e o conforto das almofadas que minhas tias-avós faziam, sempre bem distribuídas pelo sofá onde Happy e Chemmy não conseguiam subir nem descer. Resmungavam tanto à sua maneira, como se seus desejos fossem uma ordem e não um pedido, que subíamos eles com as mãos. Irrequietos, não demoravam a cair de forma desajeitada, às vezes batendo a cabeça num tapete grande acastanhado. Reclamavam brevemente, num alarido que principiava o choro canino.

Como criança orgulhosa, engoliam o próprio intento e continuavam suas traquinagens, chacoalhando os rabinhos e mirando os olhos escuros e vistosos por todas as direções. Happy e Chemmy gostavam de se enfiar dentro de calçados, gavetas, caixas, qualquer abertura que proporcionasse inéditas experiências. Apesar disso, partilhavam de expressão serena em todas as situações, mesmo quando arrastavam objetos desconhecidos que em seu mundo nanico ganhavam novas significações. Tênis viravam travesseiros, camisetas se tornavam cobertores e assim por diante.

Conforme cresciam, suas personalidades iam se modificando. Happy tornava-se mais desajeitado e expansivo, e Chemmy mais amorável e introspectivo. Em casa, as recepções prosseguiam calorosas. Happy ia na frente, boquiaberto e saltitante, com um semblante desirmanado de sorriso fácil. Chemmy se aproximava sem muito alarde. Galhardo, preferia demonstrar sua satisfação através de seus passos aéreos e fátuos que se tornavam vibrantes com a minha chegada.

No verão, íamos com bastante frequência à AABB. Happy e Chemmy percorriam o estacionamento do clube meneando orelhas que se agitavam como se fossem pequenas asas. Disputavam corrida na escadaria e se acalmavam no piso fresco da lanchonete, onde posicionavam o dorso das patas traseiras para baixo. As patas da frente ficavam sobrepostas, em poses indefectíveis que imitavam um x. Os dois roçavam a barriga branca e peluda com tanta sofreguidão que chegavam a fechar os olhos, numa tentativa de amplificar a sensação de regalo despertada pelo chão geladinho.

Prestes a tomar uma ducha a céu aberto antes de entrar na piscina, eu os chamava e eles se aproximavam, circulando em torno do perímetro onde a água escorria mais morna do que fria. Happy e Chemmy me observavam com candura e assim que eu movimentava a cabeça em concordância, eles afundavam as patinhas na poça formada em torno do ralo. Era como se estivessem pescando alguma coisa incompreensível e invisível aos olhos humanos. Naquele momento os dois pareciam somente um, imersos numa brincadeira sem competição ou vencedores.

Quando eu diminuía a intensidade da água que caía do chuveiro, eles ameaçavam colocar o focinho na água – aproximando e afastando a cabeça. Ocasionalmente tiravam a língua para fora, como se quisessem avaliar a temperatura da água. Em poucos minutos de diversão ficavam tão molhados que os pelos da fronte se inclinavam sobre os olhos, com topetes desfeitos. Envolvidas em pequenas cortinas felpudas e nevadas, as íris, que pouco sobressaíam, resplandeciam serenas e amiudadas.

Após um salto na parte mais funda da piscina grande, eles me seguiam até a borda e latiam. Era uma crítica, pois sabiam que lá não poderiam entrar. Entre mergulhos, eu emergia vez ou outra ameaçando puxar suas patas para dentro da piscina. Eles se afastavam e rolavam no piso úmido e aquecido pelo sol que parecia dourar seus pelos. Enfastiados, corriam até o parquinho do clube, afundavam as patas na areia e saltavam sobre o gira-gira com tamanha tarimba que o brinquedo girava sem que precisassem fazer muito esforço.

Ao redor, os curiosos sorriam e gargalhavam assistindo Happy e Chemmy brincando como se fossem crianças. A gangorra também não passava despercebida. Chemmy subia na extremidade mais baixa e corria até a mais alta. Depois era a vez de Happy. E assim, numa harmonia impoluta e fugaz, capaz de inspirar o melhor nos homens, revezavam até cansar. No parque da Praça dos Pioneiros, os dois preferiam o escorregador. Desciam sozinhos, juntos, na nossa frente, apoiados em nossas costas. Ao final da diversão, sempre me intrigava ver como seus olhos rutilavam como bolas lustrosas de bilhar. A intensidade oscilava de acordo com o nível de contentamento.

Quando abríamos as portas do carro, Happy e Chemmy pulavam sobre os bancos traseiros e se posicionavam nas janelas, aguardando que alguém as abrisse. Então colocavam a cabeça para fora e aspiravam o vento. Rapidamente se acalmavam. Inertes, fechavam os olhos, sentindo a aragem massageando e acariciando suas cabeças. Apesar de rasteiro, não tenho dúvida de que o mundo de Happy e Chemmy era um grande universo de sensações, de sensibilidades que jamais são negligenciadas por quem vê na mais trivial das experiências uma fonte de fruição.

Um dia subimos em uma balsa no Porto São José com destino ao Mato Grosso do Sul. Logo que descemos do carro, Happy e Chemmy estranharam ao ver a ruidosa movimentação. Ainda assim se aproximaram de um velho banco de madeira ladeado por alguns coletes salva-vidas e assistiram de longe a pequenez do porto com suas casinhas e velhos prédios comerciais. Quase dez minutos depois, água era tudo que viam enquanto a balsa gestava plácidas ondas no seio do Rio Paraná.

Observei Chemmy aproximando o focinho da água, como se quisesse cheirá-la. Quando me agachei, percebi que alguns peixes serpenteavam perto de nós. Eufórico, Happy latia e saltava como um cabrito. Ele nunca tinha visto um peixe. E aqueles dourados lucilavam como citrinos lapidados e volteavam formando o símbolo do infinito. Assim que os peixes desapareceram, Happy latiu em reprovação. Chemmy simplesmente repousou a cabeça sobre as patas cruzadas, amiudou os olhos e manteve expressão quiescente enlevada por um tépido raio de sol que iluminou uma lata de óleo vazia presa à barra de proteção.

Meses depois, num dia rotineiro, saímos de casa e quando retornamos não encontramos nenhum dos dois. Percorremos o Jardim Progresso, Jardim Paulista e Jardim Maringá. Fizemos panfletos e ampliamos as buscas pela região central e por outros bairros de Paranavaí. Não adiantou. Na manhã seguinte, Happy e Chemmy não lamberam minhas mãos nem saltaram sobre as minhas costas para me acordar. Senti a ausência de seus passos pavonados, dos latidos dissonantes e do perfume floral que traziam logo cedo após incursão pelo canteiro de flores de minha mãe.

Fiquei sabendo tardiamente que um estranho invadiu nosso quintal e levou nossos cães. Bonachões, Happy e Chemmy entraram em um carro desconhecido, crentes de que foram presenteados com mais uma curta viagem ao éden das brisas. “Será que abriram a janela um pouquinho pra eles sentirem o vento?”, perguntei a minha mãe.

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