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Happy e Chemmy
Como criança orgulhosa, engoliam o próprio intento e continuavam suas traquinagens
Em 1991, meu pai chegou em casa com dois filhotes de poodle. Eu, muito pequeno, olhei atentamente aqueles desconhecidos animaizinhos de pelos grossos e brancos. “Que bichinho de pelúcia é esse? Parece de verdade!”, comentei sorrindo, com a experiência de quem nunca viu um cãozinho daquela raça, enquanto cutucava o dorso do menor que reagiu lambendo minha mão e pulando em minha direção.
Na minha concepção meninil, era como se a neve pudesse ser morna, fragmentada em pequenos flocos que se juntavam formando vidas diminutas. Surpreso e empolgado, deitei no chão e os dois, tão miúdos que os pelos da barriga chegavam a lustrar o piso coberto de cera vermelha, percorreram meu rosto, pescoço e braços com suas linguinhas ásperas, vigorosas e quentes. Me davam a sensação de uma paradoxal lixa exposta ao sol, com a principal diferença de que a deles acariciava e não raleava ou machucava.
Cheios de energia, circulavam pela sala e a reconheciam como um universo de possibilidades. Saltavam de forma tão espontânea e chistosa que pareciam confundir a própria natureza com a dos pôneis. Dóceis, roçavam a lateral do dorso pelo meu corpo e seguiam deslizando até se enfiarem debaixo de cada um dos meus braços. Espiavam minha reação e quando eu ria eles se aproximavam, subiam sobre o meu peito e davam latidos finos, curtos e briosos, acompanhados de olência vaporosa de leite que intensificava o meu deleite.
O toque de seus pelos me lembrava a suavidade e o conforto das almofadas que minhas tias-avós faziam, sempre bem distribuídas pelo sofá onde Happy e Chemmy não conseguiam subir nem descer. Resmungavam tanto à sua maneira, como se seus desejos fossem uma ordem e não um pedido, que subíamos eles com as mãos. Irrequietos, não demoravam a cair de forma desajeitada, às vezes batendo a cabeça num tapete grande acastanhado. Reclamavam brevemente, num alarido que principiava o choro canino.
Como criança orgulhosa, engoliam o próprio intento e continuavam suas traquinagens, chacoalhando os rabinhos e mirando os olhos escuros e vistosos por todas as direções. Happy e Chemmy gostavam de se enfiar dentro de calçados, gavetas, caixas, qualquer abertura que proporcionasse inéditas experiências. Apesar disso, partilhavam de expressão serena em todas as situações, mesmo quando arrastavam objetos desconhecidos que em seu mundo nanico ganhavam novas significações. Tênis viravam travesseiros, camisetas se tornavam cobertores e assim por diante.
Conforme cresciam, suas personalidades iam se modificando. Happy tornava-se mais desajeitado e expansivo, e Chemmy mais amorável e introspectivo. Em casa, as recepções prosseguiam calorosas. Happy ia na frente, boquiaberto e saltitante, com um semblante desirmanado de sorriso fácil. Chemmy se aproximava sem muito alarde. Galhardo, preferia demonstrar sua satisfação através de seus passos aéreos e fátuos que se tornavam vibrantes com a minha chegada.
No verão, íamos com bastante frequência à AABB. Happy e Chemmy percorriam o estacionamento do clube meneando orelhas que se agitavam como se fossem pequenas asas. Disputavam corrida na escadaria e se acalmavam no piso fresco da lanchonete, onde posicionavam o dorso das patas traseiras para baixo. As patas da frente ficavam sobrepostas, em poses indefectíveis que imitavam um x. Os dois roçavam a barriga branca e peluda com tanta sofreguidão que chegavam a fechar os olhos, numa tentativa de amplificar a sensação de regalo despertada pelo chão geladinho.
Prestes a tomar uma ducha a céu aberto antes de entrar na piscina, eu os chamava e eles se aproximavam, circulando em torno do perímetro onde a água escorria mais morna do que fria. Happy e Chemmy me observavam com candura e assim que eu movimentava a cabeça em concordância, eles afundavam as patinhas na poça formada em torno do ralo. Era como se estivessem pescando alguma coisa incompreensível e invisível aos olhos humanos. Naquele momento os dois pareciam somente um, imersos numa brincadeira sem competição ou vencedores.
Quando eu diminuía a intensidade da água que caía do chuveiro, eles ameaçavam colocar o focinho na água – aproximando e afastando a cabeça. Ocasionalmente tiravam a língua para fora, como se quisessem avaliar a temperatura da água. Em poucos minutos de diversão ficavam tão molhados que os pelos da fronte se inclinavam sobre os olhos, com topetes desfeitos. Envolvidas em pequenas cortinas felpudas e nevadas, as íris, que pouco sobressaíam, resplandeciam serenas e amiudadas.
Após um salto na parte mais funda da piscina grande, eles me seguiam até a borda e latiam. Era uma crítica, pois sabiam que lá não poderiam entrar. Entre mergulhos, eu emergia vez ou outra ameaçando puxar suas patas para dentro da piscina. Eles se afastavam e rolavam no piso úmido e aquecido pelo sol que parecia dourar seus pelos. Enfastiados, corriam até o parquinho do clube, afundavam as patas na areia e saltavam sobre o gira-gira com tamanha tarimba que o brinquedo girava sem que precisassem fazer muito esforço.
Ao redor, os curiosos sorriam e gargalhavam assistindo Happy e Chemmy brincando como se fossem crianças. A gangorra também não passava despercebida. Chemmy subia na extremidade mais baixa e corria até a mais alta. Depois era a vez de Happy. E assim, numa harmonia impoluta e fugaz, capaz de inspirar o melhor nos homens, revezavam até cansar. No parque da Praça dos Pioneiros, os dois preferiam o escorregador. Desciam sozinhos, juntos, na nossa frente, apoiados em nossas costas. Ao final da diversão, sempre me intrigava ver como seus olhos rutilavam como bolas lustrosas de bilhar. A intensidade oscilava de acordo com o nível de contentamento.
Quando abríamos as portas do carro, Happy e Chemmy pulavam sobre os bancos traseiros e se posicionavam nas janelas, aguardando que alguém as abrisse. Então colocavam a cabeça para fora e aspiravam o vento. Rapidamente se acalmavam. Inertes, fechavam os olhos, sentindo a aragem massageando e acariciando suas cabeças. Apesar de rasteiro, não tenho dúvida de que o mundo de Happy e Chemmy era um grande universo de sensações, de sensibilidades que jamais são negligenciadas por quem vê na mais trivial das experiências uma fonte de fruição.
Um dia subimos em uma balsa no Porto São José com destino ao Mato Grosso do Sul. Logo que descemos do carro, Happy e Chemmy estranharam ao ver a ruidosa movimentação. Ainda assim se aproximaram de um velho banco de madeira ladeado por alguns coletes salva-vidas e assistiram de longe a pequenez do porto com suas casinhas e velhos prédios comerciais. Quase dez minutos depois, água era tudo que viam enquanto a balsa gestava plácidas ondas no seio do Rio Paraná.
Observei Chemmy aproximando o focinho da água, como se quisesse cheirá-la. Quando me agachei, percebi que alguns peixes serpenteavam perto de nós. Eufórico, Happy latia e saltava como um cabrito. Ele nunca tinha visto um peixe. E aqueles dourados lucilavam como citrinos lapidados e volteavam formando o símbolo do infinito. Assim que os peixes desapareceram, Happy latiu em reprovação. Chemmy simplesmente repousou a cabeça sobre as patas cruzadas, amiudou os olhos e manteve expressão quiescente enlevada por um tépido raio de sol que iluminou uma lata de óleo vazia presa à barra de proteção.
Meses depois, num dia rotineiro, saímos de casa e quando retornamos não encontramos nenhum dos dois. Percorremos o Jardim Progresso, Jardim Paulista e Jardim Maringá. Fizemos panfletos e ampliamos as buscas pela região central e por outros bairros de Paranavaí. Não adiantou. Na manhã seguinte, Happy e Chemmy não lamberam minhas mãos nem saltaram sobre as minhas costas para me acordar. Senti a ausência de seus passos pavonados, dos latidos dissonantes e do perfume floral que traziam logo cedo após incursão pelo canteiro de flores de minha mãe.
Fiquei sabendo tardiamente que um estranho invadiu nosso quintal e levou nossos cães. Bonachões, Happy e Chemmy entraram em um carro desconhecido, crentes de que foram presenteados com mais uma curta viagem ao éden das brisas. “Será que abriram a janela um pouquinho pra eles sentirem o vento?”, perguntei a minha mãe.
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A vizinha do Jardim Progresso
Ela gostava de atrair olhares, sentia algum tipo de prazer inominado em ser admirada
Eu tinha 12 anos quando vi pela primeira vez a vizinha do meu amigo Marco Aurélio. O seu nome era Bárbara e ela morava a poucos passos da casa dele no Jardim Progresso. Quando saíamos para brincar na calçada, me recordo que eu sempre a via fazendo alguma coisa para chamar a atenção. Ela gostava de atrair olhares, sentia algum tipo de prazer inominado em ser admirada.
Na rua, eu a observava somente após me certificar de que seus olhos dificilmente encontrariam os meus. Sua beleza era mediterrânea, mas não do tipo comum ou excelsa. Tinha pele oliva, dotada de um fulgor que não esmorecia nem no inverno. Seus olhos eram escuros e redondos como groselhas pretas das mais maduras, o que destoava dos cabelos castanhos que se estendiam até o meio das costas.
Era o tipo de graça reforçada pela personalidade, que existia nas entrelinhas, nos detalhes de suas expressões e na capacidade de conduzir as reações dos garotos ao seu bel-prazer. Até eu, que resistia a ceder aos seus caprichos de me ver inclinado diante de sua presença, desconhecia os meandros e artifícios da malícia e ocasionalmente era fisgado por sua argúcia.
De longe, ela sorria e até ria com frugalidade quando percebia que tinha alcançado seu intento. Uma vez, enquanto estávamos sentados sobre o meio-fio, ela caminhou bem devagarinho trajando um vestido branco que realçava o formato sinuoso do corpo jovial. Mirando o horizonte a olhos ensimesmados, passou os vãos dos dedos entre os cabelos, sobrepondo-os como ondas serenas de fios correntes, e seguiu numa linha reta tão hermética que chegava a ser geométrica.
Seus passos imitavam o som sutil da marcha dos cocos, perfazendo um caminho em que as batidas céleres e harmoniosas de nossos corações cobriam as lacunas deixadas pelo silêncio. Conforme ela se distanciava, e suas panturrilhas se contraíam formando dois diamantes triguenhos, eu assistia o tecido claro, num fortuito diáfano, cingindo seu corpo como um casulo tardio envolvendo uma borboleta.
Bárbara transportava por onde fosse o perfume leve e floral que seu corpo exalava em nossa direção, deixando um rastro invisível e efêmero de provocações que despertavam ideias e sensações. “Você é bonitinho, sabia?”, disse ela um dia apoiando meu queixo entre os seus dedos polegar e médio da mão direita. Observei meu próprio reflexo em suas íris, então maiores do que nunca, e fiquei preocupado se ela poderia ver muito mais do que eu gostaria nas minhas.
Para Bárbara, parecia pouco me ver corar. Em seguida, assoprou graciosamente meus olhos, me trazendo olência adocicada e refrescante de bala de hortelã. Aquilo mexeu tanto comigo que senti arrepiar até os pelos que eu ainda não possuía. Engoli a seco minha saliva tornada rara e senti meu peito chiar, abrasado pelo incompreendido desconhecido. Escondi as mãos trêmulas para que ela não as notasse. Era tarde demais. Bárbara percebeu e me hipnotizou com um sorriso tão esmerado que me deixou embriagado.
Pensei em dizer alguma coisa, uma frase de despedida, só que eu já não sabia mais falar nem pensar em português. As palavras que invadiam meus pensamentos não faziam sentido. Eram confusas, sem significados, um amontoado de letras que se embaralhavam com o alfabeto cirílico que vi pela primeira vez numa coleção de enciclopédias de meu pai. E para piorar, fiz um esforço desmesurado para articular um som complacente, mas só consegui transmitir um nada padecente.
Meus pés estavam tão fixos e hirtos na calçada de mosaico português que pareciam feitos de pedra calcária. O transe chegou ao fim quando sua mãe a chamou para ajudar o irmão caçula em uma das tarefas da escola. Ainda assim, sem esconder o semblante aparvalhado, assisti Bárbara correndo contra a brisa com encanto singelo que fazia inveja às folhas do pé de marmelo. Seus cabelos serpenteavam pelo ar como forças livres de um mundo hedonista. Talvez fossem curvas incertas de uma realidade menos maniqueísta. Antes de fechar o portão, sorriu, mandou beijo e disse de supetão: “Depois a gente continua.”
Fiquei parado por mais alguns instantes, tentando fugir da minha fisionomia encabulada e corada que vi refletida na janela de um Escort estacionado a menos de dois metros. Lhano, eu balançava a cabeça e saracoteava o dorso. Mas o coralino da vergonha era casmurro e não dava brechas para a libertação. Queria me castigar pela ingenuidade que não me permitia compreender sua intenção. “Nossa, olha como tô vermelho! Nem quando planto bananeira por muito tempo fico desse jeito”, pensei, me sentindo como um personagem daquelas canetas vendidas na rodoviária e que traziam mulheres peladas nos tubinhos.
Dias depois, escalando uma árvore em frente à casa de Marco Aurélio, vimos Bárbara chegar acompanhada de um rapaz de pelo menos 18 anos dirigindo um Monza Barcelona. Lá dentro, o sujeito se portava como se guiasse um possante pelas estradas do Arizona. Observamos em sincronia a porta do carro se abrir e seus pés pequenos e delicados encostando no meio-fio, envolvidos por um par de rasteirinha clara, talvez bege. Bárbara usava saia preta evidenciando pernas bronzeadas e bem esculpidas, fazendo nossos olhos saltarem sem a menor polidez.
Pendurado em galhos, assisti a cena numa euforia contida tão impetuosa que tive a impressão de que havia miniaturas minhas gritando e correndo pelos meus órgãos. Num breve momento de delírio, vislumbrei dois David saltando para fora de minhas orelhas, percorrendo os galhos numa velocidade sobrenatural e cutucando meus pés com agulhas de pau. “Vai lá! Vai lá! Vai lá! Você é trouxa? Deixa de ser bocó! O cara já vai embora”, gritavam as réplicas num tom estridente, revezando palavras.
Por azar, assim que Bárbara se despediu do tal sujeito que julguei ser seu namorado, me distraí e caí de cima da árvore como um bufão atarantado. Com o impacto, Marco Aurélio riu ruidosamente, como se aquilo fosse artificio de um demente. Caído sobre o braço esquerdo, num titubeante referto, sentei cabisbaixo na calçada e, sem olhar pra lado algum, amarguei as consequências da patuscada. Comecei a limpar os ralados nos cotovelos e joelhos, ignorando de meus amigos os conselhos.
A vergonha naquele momento tinha cheiro de ipê, sete-copas, hera-de-inverno e pingo-de-ouro. Mal sabia eu qual seria o desdobramento vindouro. “Por favor, não me veja! Por favor, não me veja! Por favor, não me veja!”, repeti com olhos fechados e franzindo a testa, crente de que a vida talvez pudesse imitar a fábula vez ou outra. Não, ela não macaquearia. Aos poucos, ouvi passos, o atrito de calçados leves com as pedrinhas cobertas de piche, e senti o indefectível perfume floral que me fazia mergulhar num sonho frugal.
Estremeci ao ver sua sombra se projetando na calçada. Bárbara estava quase ao meu lado e minha reação já era esperada. Coloquei os cotovelos contra a barriga e cobri os joelhos com pedaços de folhas secas esparramadas aos pés da árvore. Ela achou graça da minha reação, se abaixou e passou a mão direita pelos meus cabelos. “Tadinho! Vamos lá pra casa que vou cuidar dos seus ferimentos”, declarou com voz remansosa e tão melíflua que parecia acariciar os ferimentos do meu corpo. “Muito melhor que Merthiolate!”, teria refletido. Não falei nada, até porque nem conseguiria. Só movimentei a cabeça em concordância, sem saber o que me aguardaria. Àquela altura, nem sentia mais minhas pernas e braços ardendo.
Levantei e andei ao seu lado, evitando observá-la diretamente. Ainda assim, me mantive sobrolho. Caminhando a passos hesitantes, fui invadido por turbilhão de pensamentos. Tentei clarear a mente e logo reconheci que era impossível. Quanta agitação, ansiedade e tensão. Dentro da casa, não havia ninguém; só nós dois diante de um balcão. Ela me levou até o seu quarto e falou pra eu sentar na cama e aguardá-la. Observei tudo ao meu redor. Em segundos, memorizei o cenário e aprendi um pouco sobre seus interesses que incluíam livros, CDs, filmes em VHS e uma coleção de bichos pequenos de pelúcia, inclusive réplicas de gremlins.
Bárbara então retornou com um kit de primeiros socorros, limpou meus ferimentos e fez quatro curativos em meus braços e joelhos. Enquanto suas mãos delicadas, aveludadas e mornas tocavam minha pele, notei que ela era muito mais bonita se observada em profundidade. Tinha algumas pintinhas acastanhadas no busto e uma minúscula cicatriz na cintura. Sua tez bronzeada era tão singular e rutilante que fazia meu coração se projetar com a ressonância de um alto-falante.
Em menos de dois minutos, me vi imerso num universo silencioso, onde as belezas triviais das ruas inexistiam. Vizinhos não falavam, carros não passavam, pássaros não cantavam e galhos não balouçavam. Eu não ouvia nem enxergava nada para além da porta do quarto de Bárbara. Por um momento, ela se levantou e me lançou um olhar que fez eu me sentir como se estivesse nu. Deslizou vagarosamente o dorso da mão direita pelas minhas maçãs, aproximou seu rosto, segurou o meu com as duas mãos e me beijou vagarosamente.
Seus lábios, quentes como chuva de verão, vinham acompanhados de um sol que principiava a chegada da nova estação. A ansiedade e rigidez de meu corpo se esvaíam como se nunca tivessem me habitado, fazendo-me sentir como um renascido jovem sopitado. E assim, Bárbara, com 15 anos e sua essência medicinal, um dia se mudou para longe depois de mergulhar minha natureza no prazer hominal.
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