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Música concebida pela vã temporalidade

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A composição é um processo de construção e desconstrução temporal em que os autores se desdobram para conceber uma obra dialética

Para compor uma grande obra musical é preciso mais que inspiração

Chopin conciliava inspiração e fatores socioculturais (Foto: Reprodução)

Não é de hoje que a música é considerada a arte que se desenvolve tendo o tempo como base de sustentáculo, o alicerce que delimita as congruências. Mas para pensar sobre a questão temporal deve-se levar em conta a concepção genuína da música. Uma obra originalmente concebida não é resultado da mera inspiração; pensar dessa forma significa distanciar-se da verdadeira concepção em relação à composição de uma música.

“Ninguém conseguiria produzir uma obra musical nas proporções de uma sinfonia de Beethoven, uma cantata de Bach ou até mesmo um pequeno prelúdio de Chopin somente com inspiração”, explica Rael Gimenes, professor de música da Universidade Estadual de Maringá (UEM). A composição musical vai muito além do indivíduo simplesmente ater-se ao instrumento e explorar os anseios determinados pelas suas influências, pois assim não estará realmente concebendo algo determinante para o meio.

Para o professor de música, a composição musical é resultado de um processo de discussão técnica e histórica. Uma tentativa de resolução de problemas que são gerados a partir da confrontação técnica e teórica com as crenças que cada sociedade possui sobre conceitos chaves como tempo, altura, duração, funcionamento da percepção, desenvolvimento físico-acústico dos instrumentos, entre outros tantos. Esses elementos servem para ilustrar o quanto pode ser complexa a construção musical. É um processo que envolve uma série de fatores, não somente o prazer de tocar um instrumento ou explorar o sincretismo construído num espaço variável de gostos musicais.

Neste momento, você pode estar se perguntando: qual a relação da fiel conceituação musical com o tempo? É justamente isso que determina a originalidade de uma composição, pois quando o indivíduo tem capacidade de compreender a temporalidade, ele deixa de ser um mero “repetidor de modelos” e começa a inserir novos elementos que depois poderão derrubar paradigmas. Além, claro, de prescrever musicalmente as determinações do processo histórico no qual a obra foi concebida.

O tempo cíclico marcou a história do tempo, ainda mais porque surgiu num contexto em que o relógio ainda não havia se desenvolvido, apesar de existir formas arcaicas de marcação temporal. “O tempo cíclico é medido pelos ciclos naturais, como cheias dos rios, a sucessão do dia e da noite, as estações do ano e quaisquer sinais da natureza que fossem importantes para auxiliar na sobrevivência dos indivíduos”, diz Gimenes.

A música ocidental no período que envolve o início da era cristã até o século XII ficou musicalmente conhecida em função do surgimento do canto gregoriano, caracterizado pela monodia (uníssono – única voz), o que significa que não possui nenhuma forma de divisão temporal baseada em pulso ou métrica. Resume-se a um corpo de cantores que cantam uma música no mesmo espaço temporal; período em que surge então a organização métrica-musical. “Baseava-se no ritmo da fala. Cantava-se da mesma forma que se lia”, conta o professor de música. A partir disso, percebia-se a influência que a maneira de pensar o tempo tinha, em relação com a organização do tempo na música.

Professor Rael Gimenes: "Cantava-se da mesma forma que se lia".

Professor Rael Gimenes: “Cantava-se da mesma forma que se lia” (Crédito: Divulgação)

A maior diferença musical determinada pelo tempo pode ser percebida se for levado em conta o canto gregoriano e compará-lo com outros diversos tipos de música. Enquanto a monodia não delimita uma estrutura que faz com que o sujeito perceba o final da música, em outros estilos a captação é mais simples, devido aos pulsos regulares, que faz com que facilmente identifiquemos o refrão e o final da música. “Nesse contexto, a música nasce em ciclos que não possuem inícios como os fenômenos da natureza que serviram de base para essa forma de pensar o mundo”, revela.

Depois surge o período polifônico, em que a música deixa de ser pensada como um elemento determinado por um instrumento para se tornar o principal resultado da junção de diversos instrumentos, além da presente vocalização. Com isso, temos uma sincronia de fluxo temporal. De acordo com Gimenes, o tempo foi subdividido em pequenas fatias de durações iguais.

É importante salientar que após tais fatos houve o desenvolvimento do relógio mecânico. Segundo Gimenes, o relógio mecânico surgiu por volta do ano de 1300 e se popularizou na Europa por volta do ano de 1450. O relógio é a materialização da resolução de um problema filosófico que estava em discussão desde o século XI com o início do desenvolvimento da polifonia. O tempo inserido nesse contexto é a seqüência de eventos que na música é determinada pela linearidade. É a ideia de previsibilidade em que a música surge em decorrência direta dessa maneira de pensar o tempo.

Rael Gimenes frisa que é uma sucessão de “agoras” que pode ser prevista por equações em que a música independe de qualquer fator. É desenvolvida dentro dos mesmos critérios que arraigadamente envolvem compositores do final da Renascença até o fim do século XIX. Dentre eles: Bach, Mozart, Händel, Beethoven, Haydn, Chopin, Liszt, Wagner, Brahms, Schubert e Schummann.

A música pode ser sintetizada como um processo de construção e desconstrução temporal em que os compositores se desdobram (dentro da sua gama de elementos pertinentes) para fazer emergir laconicamente uma obra dialética. Original e arbitrária, uma composição genial ultrapassa a inspiração e envolve muitas prescrições de fatores socioculturais, fazendo da música não somente mero resultado que possui em outra composição um exponencial. A obra inigualável e única traz à tona uma ruptura de paradigmas que harmoniosamente são determinados pela vã temporalidade.