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Uma história de amizade em um mundo árido

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Johann e Ranulpho se aproximam por força da necessidade, mas aos poucos se tornam amigos

A princípio, Johann e Ranulpho são apenas dois estranhos se ajudando (Foto: Divulgação)

A princípio, Johann e Ranulpho são apenas dois estranhos se ajudando (Foto: Divulgação)

Lançado em 2005, Cinema, Aspirinas e Urubus é o longa-metragem de estreia do cineasta Marcelo Gomes. Ambientado no sertão nordestino em 1942, o road movie apresenta a história do alemão Johann (Peter Ketnath) e do sertanejo Ranulpho (João Miguel), dois homens antagônicos que se aproximam por força da necessidade, mas aos poucos se tornam amigos.

A primeira cena em que Johann aparece guiando o automóvel em meio à caatinga carrega um conceito de desertificação. A contumácia da claridade amplifica a sensação do vasto vazio em profundidade – do nada, do inabitado. E a trilha aliada ao ambiente evidencia a saudade e a solidão. Em Cinema, Aspirinas e Urubus, desde o princípio a música é tão importante quanto um personagem – ela situa o drama no tempo.

No limiar, há poucos diálogos e a comunicação do filme com o espectador é construída a partir da iluminação que naturalmente intensa reflete uma aridez que evoca semelhante agonia despertada por Nelson Pereira dos Santos em Vidas Secas, adaptação cinematográfica do clássico de Graciliano Ramos.

O imigrante Johann conhece o sertanejo Ranulpho em uma de suas paragens para vender aspirinas e exibir filmes promocionais a pessoas humildes que nunca foram ao cinema. Logo o sertanejo se oferece como ajudante e o alemão aceita. O caráter de tragicomédia da obra se baseia no fato de que o estrangeiro, distante da Segunda Guerra Mundial, vê a mansidão do sertão como paraíso enquanto o brasileiro a vê como um inferno.

O calor extremo, praticamente perpetuado pela estiagem, notabiliza o mal-estar de Ranulpho, crente de que a vida num lugarejo distante da modernidade acentua sua ausência de perspectiva. Atitudes impolutas, como a do sertanejo que não sabe onde encontrar combustível porque está acostumado a ver apenas veículos de tração animal, nutrem a depreciação de Ranulpho, sujeito que usa a ironia como instrumento da própria contestação social.

No decorrer da trama, os dois começam a se entender (Foto: Divulgação)

No decorrer da trama, os protagonistas começam a se entender (Foto: Divulgação)

É interessante a forma como Marcelo Gomes aborda a linguagem regionalista e suas redundâncias. Com exceção dos dois protagonistas, muitos dos personagens, formados por gente simples, têm um vocabulário visceralmente pobre, fundamentado em monossílabos canhestros. Em contraponto, também é algo encantador e singelo porque é honesto e veraz. O próprio Ranulpho, um sonhador em paradoxo – com uma visão pessimista do sertão nordestino, tenta impressionar o alemão, porém recai nas mesmas falhas que ele tanto condena com relação àquele povo humilde.

“Aqui nem guerra chega” e “Lugar que não presta é assim, demora pra acabar”, diz Ranulpho em tom de escárnio. O brasileiro rejeita o cigarro nacional do alemão, deixando subentendido que para ele tudo que é bom precisa ser importado. Recalcitrante, o sertanejo passa boa parte do tempo depreciando seus conterrâneos. Johann, que muitas vezes escuta em silêncio os discursos do ajudante, decide se manifestar e defende que é difícil entender como Ranulpho pode criticar tanto o povo nordestino, sendo que ele faz parte daquela realidade. “Mais ou menos”, responde, sem ceder.

Entre os momentos mais bucólicos da obra estão as cenas de exibição dos comerciais de aspirina. Os espectadores ficam deslumbrados e emocionados. O cinema tão esperado pela população se resume a um vídeo projetado em uma tela de pano – a trilha sonora é baseada nas músicas que tocam no rádio do caminhão. Para eles, a experiência é tão inolvidável que ao final do filme continuam parados observando a tela de pano.

“Vai passar o filme de novo?”, questiona um rapaz empolgado. Intrigante também é a autêntica observação da moça que diz não querer ser atriz porque no filme os atores parecem pessoas infelizes tentando transparecer felicidade. No decorrer da trama, Johann e Ranulpho começam a se entender depois de passarem por muitas situações de aprendizado. No final, os dois reconhecem e aceitam as próprias diferenças e singularidades como resultado do mundo em que foram gestados.

Outro fato curioso é que a cidade natal de Ranulpho se chama Bonança, uma ironia e uma realidade. É incoerente se tratando de riquezas materiais, porém verdadeira ao pensarmos em serenidade. Em 2005, após o lançamento de Cinema, Aspirinas e Urubus, encontrei muitas críticas alegando que o filme é lento e sacal. Acredito que não se trata de uma deficiência de direção, muito pelo contrário. É um artifício de fidedignidade. O sertão é envolto em lentidão e marasmo, então nada mais justo do que transmitir isso, principalmente quando se traz referências do neorrealismo.

Written by David Arioch

March 4th, 2016 at 6:39 pm