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“22 de Julho”, a história de um massacre norueguês
Lançado em 2018 e disponibilizado pela Netflix, o filme “22 de Julho” conta a história dos atentados terroristas de 22 de julho de 2011 em Oslo e Utøya, na Noruega, quando o nacionalista de extrema-direita Anders Behring Breivik causou a morte de 77 pessoas.
O filme apresenta simultaneamente duas realidades; a preparação de Breivik (Anders Danielsen Lie) em Oslo, antes do atentado, baseada em informações divulgadas a partir do seu próprio julgamento, e os acontecimentos que precederam o ataque em Utøya, onde dezenas de jovens da Liga da Juventude dos Trabalhadores, vinculada ao Partido Trabalhista Norueguês, estavam reunidos.
Depois de explodir bombas em um complexo de prédios do governo norueguês, mesmo sem saber o resultado do ato terrorista, Breivik parte para Utøya, onde, se passando por policial, consegue atravessar até o acampamento da Liga da Juventude. Antes de matar os participantes acomodados em um dos espaços, o assassino em massa antecipa que eles serão mortos por serem “liberais, marxistas…”
Alguns deles sobrevivem para contar o que aconteceu na ilha – caso de Viljarn Hanssen (Jonas Strand Gravli) – que ocupa papel de destaque no drama pela sua própria história de superação depois de sobreviver a cinco tiros disparados por Breivik e carregar estilhaços de bala no tronco cerebral que poderiam fazer com que morresse a qualquer momento.
Após matar 69 jovens em Utøya e se deparar com a chegada da polícia, Breivik, que parece ter ensaiado suas ações, friamente joga as armas no chão e se ajoelha com as mãos sobre a cabeça para ser preso – sem manifestar qualquer nervosismo. Daí em diante, com a sua prisão em flagrante, a história se direciona para a sua relação com o advogado Geir Lippestad (Jon Øigarden), que mesmo sendo filiado ao Partido Trabalhista, quando é convocado para representá-lo, acaba aceitando.
Esta decisão também teria consequências em sua vida – como ameaças de morte e um convite da direção da escola onde sua filha estuda para retirá-la de lá por pressão de outros pais. Mesmo em um espectro político oposto ao de Breivik, o terrorista o escolhe para a sua defesa porque Lippestad já havia atuado como advogado de um neonazista alguns anos antes.
O profissionalismo de Lippestad surpreende, porque mesmo diante de um homem que matou tantos jovens, destruiu tantas famílias, e que não demonstra qualquer remorso, ele ainda visita a mãe de Breivik e tenta convencê-la a testemunhar a favor do filho. No entanto, ela declina a proposta. Lippestad também vai atrás do único supremacista norueguês que consegue encontrar que teve algum contato com Breivik, mas por via online.
O homem concorda em dar um depoimento durante o julgamento, mas conquista a cólera do terrorista ao dizer que jamais partilharia de um plano como aquele, e que, embora Anders Breivik se refira a si mesmo como uma espécie de líder, ele poderia citar vários nomes que realmente representam um ideal de liderança muito melhor do que Breivik.
Momentos como esse revelam como o terrorista é um egomaníaco e possui transtorno de personalidade narcisista. No entanto, Lippestad decide tentar diagnosticá-lo como alguém que sofre de esquizofrenia paranoide, para garantir que Breivik cumpra pena em um hospital de segurança máxima em vez de uma prisão convencional.
A princípio, o terrorista concorda, mas depois muda de ideia – porque entende isso como um desrespeito “aos seus próprios ideais”, já que ele estaria se assumindo como alguém que agiu por influência de transtornos psicológicos, não por crenças políticas.
O que chama atenção em “22 de Julho” são alguns fatos pitorescos que destoam da realidade de muitos países. Por exemplo, Breivik não é hostilizado em nenhum momento pela polícia – não sofre ataques físicos nem verbais. Apesar dos crimes, ele tem preservado todos os direitos de qualquer outro cidadão.
Ademais, ele se vale da garantia dos direitos humanos na Noruega para fazer alguns pedidos incomuns, exigências e até mesmo debochar de algumas situações antes e durante o seu julgamento. Além disso, a sua cela não seria considerada cela em um país como o Brasil, avaliando o conforto oferecido a um condenado.
O filme também explora uma espécie de pobreza existencial do personagem, já que ele cria um universo fantasioso de contemplação em torno da própria figura – o que não condiz com a realidade. Breivik tenta fazer a polícia e o governo crer que ele tem muitos apoiadores, e que pertencia a um grupo grande.
A obra mostra um terrorista que tinha apenas uma relação vacilante com a mãe, de quem não parecia ser próximo, mesmo dividindo o mesmo espaço. O fato dela não querer testemunhar reforça também esse distanciamento familiar, já que no diálogo com o advogado ela não demonstra grande surpresa ou profunda emoção.
O diretor e roteirista Paul Greengrass demonstra cuidado em externalizar a pequenez do terrorista, e o faz explorando também a insegurança do protagonista que se ilude com a crença de ser o dono da situação. Breivik deseja ser condenado pelos crimes que cometeu, porque acredita que assim será reconhecido como uma espécie de herói da extrema-direita.
No entanto, ninguém da extrema-direita, pelo menos no recorte feito pelo filme com base no livro “Um de Nós”, de Åsne Seierstad, parece ter dado grande importância a Breivik à época – não que sua representatividade não existisse – mas não a ponto de angariar apoios massivos e explícitos. Talvez a cena que melhor represente que ele estava realmente sozinho é o momento em que pergunta ao advogado Lippestad se o visitará na prisão, e ele responde que não – e ainda se recusa a pegar na mão de Breivik quando a estende, o que não aconteceu no primeiro contato.
Esse momento funciona como uma sepultura viva para um assassino em massa que, mesmo imerso na idealização de um mundo que não cabe em uma realidade democrática e globalizada, ainda diz que se tivesse a oportunidade faria tudo de novo.
O ódio de Breivik, que o filme não faz questão de tentar explicar, talvez para evitar a humanização do terrorista, apenas dá pistas de que ele não tem empatia pelas pessoas, e que não vê problema em matá-las quando se opõem àquilo que ele qualifica como seus interesses maiores, que neste caso é uma suposta preservação da identidade norueguesa ameaçada pelo multiculturalismo acentuado pela globalização – na sua perspectiva – e que seu ódio pelo Partido Trabalhista Norueguês tem relação com o governo permitir que isso aconteça.
Greengrass não dedica o filme a condenar essa sua posição, talvez para não fazer do filme uma obra de engajamento político-partidário – mas a inadmissibilidade está mais no campo de suas ações do que de suas ideias – já que na Noruega não é crime ter tal ideologia. No entanto, o depoimento de Lara Rashid (Seda Witt), uma refugiada, dá voz lírica às incoerências da intransigência que culmina em violência quando ela pergunta o que fez para merecer tal destino – de ter sua irmã morta e ter sobrevivido ao atentado por pouco.
É difícil saber se a “simpatia” que o assassino manifesta pelo advogado Geir Lippestad é honesta, ou apenas uma necessidade de ter algum tipo de plateia para o seu próprio show – que a partir da condenação deixa de existir, já que ele é relegado a um confinamento que não o permite ter contato com outros detentos.
Interessante também é a forma como o filme explora, ainda que não em profundidade, as falhas do governo em não antever terrorismo por parte de nacionalistas de extrema-direita, mas apenas de “islâmicos” – como destacado na obra – o que revela também fragilidade de percepção, ainda que a Noruega seja uma nação de muitos recursos.
Enquanto Anders Breivik se apaga, com seu show tendo um curto prazo de validade que chega ao fim com a sua condenação, sendo relegado ao isolamento prisional, o jovem Viljarn Hanssen, sobrevivente icônico de 22 de julho de 2011, vê sua própria luz acender depois de muita luta pela sobrevivência e de enfrentamento da possibilidade de morrer a qualquer momento – sendo obrigado a reaprender a andar, se alimentar e a viver.
Sua libertação simbólica, que o afasta de seus pesadelos, surge quando ele consegue depor contra o seu algoz. Com uma história com tantos mortos, é difícil falar em vitória, mas é possível reconhecer que Breivik, que tencionava matar os chamados “líderes do futuro” na Noruega, teve e ainda tem de lidar com a realidade. Enquanto eles estão aqui fora, ele continua na prisão.