David Arioch – Jornalismo Cultural

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Por que você fez isso?

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Pintura: Supermarket Noir 2, de Rob Hilken

No mercado, enquanto eu lia cuidadosamente o rótulo de um produto, notei uma mulher bem perto de mim. Muito perto mesmo, tanto que por pouco não senti a respiração dela junto do meu pescoço. Então me afastei um pouco e continuei lendo. Ela se aproximou mais uma vez. Achei melhor caminhar até o outro corredor. Impossível. Levei um beliscão na bunda.

— Que isso? O que foi isso?

— Conheço essa barba, esse bumbum, esse corpão, de longe.

— Como é? Quem é você?

— Ah, vai fingir agora, é? Vai ficar de brincadeirinha?

— Nem te conheço, moça. Por que você fez isso?

— Ah, para, né? No ano passado você gostou.

— Nunca te vi, como tu diz uma coisa dessas?

— Ah, nem vem. Aquela vez você gostou e muito.

— Moça, creio que você está me confundindo com alguém.

— Não estou não…

— Tem certeza? Então diga qual é o meu nome.

— Ah, para, né, Yusuf?

— Yusuf? Quem é Yusuf aqui? Meu nome é David.

— Vai mentir o nome agora?

Tirei a minha CNH da carteira e mostrei meu nome. Pensei: “Agora tudo se resolve!“

— Então por que no ano passado você disse que seu nome era Yusuf?

— Quê? Eu nunca disse isso. Nunca disse porque realmente nunca a vi.

— Olha, cara, sei que faz tempo, que depois a gente não se viu mais, mas vamos parar de sacanagem.

— Como assim? Você beliscou a minha bunda e eu que estou de sacanagem?

De repente, uma amiga dela se aproximou.

— Berta, olha quem eu encontrei aqui. É o Yusuf, lembra dele?

— Paula, esse não é o Yusuf. O Yusuf está morando em Ankara, na Turquia.

— Tá de brincadeira comigo?

— Claro que não.

— Sério mesmo?

— Claro que sim.

— Desde quando?

— Desde o ano passado.

— Hummm…

— Olha, moço, nem sei o que dizer, só sentir. Mil perdões pela confusão…

— Moço, desculpe a minha amiga. Ela não é muito boa com fisionomias.

— Tudo bem…

— Mas toma cuidado, viu? Tem mais gente que pode te confundir com o Yusuf.

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Written by David Arioch

June 11th, 2017 at 12:27 am

A barba e o menino Yusuf

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“Nunca imaginei que um dia o veria falando português. Surpreendente, filho!”

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Porto Said quando Francisco chegou ao Egito com o Batalhão de Suez (Foto: Reprodução)

Quando eu era bem mais jovem, jamais tinha cogitado deixar a barba crescer. A verdade é que nem mesmo sabia se havia uma barba a se desenvolver. No entanto, desde muito cedo fiquei intrigado com a quantidade de pensadores e escritores barbudos até o início do século 20.

Dentre os brasileiros, minhas primeiras lembranças da época do colégio envolvem autores como Machado de Assis, José de Alencar e Gregório de Matos. Não sei se o fato de cultivarem barba era uma preferência com motivação estética ou se tinha relação com o zeitgeist. Ademais, reconheço também que antigamente era costume manter os pelos faciais para velar imperfeições e cicatrizes provocadas por doenças como a varíola.

Pensando internacionalmente, Platão, Chaucer, Melville, Victor Hugo, Ibsen, Tolstói, Dostoiévski, Whitman, Bram Stoker, Hemingway, D.H. Lawrence, Bernard Shaw e Ginsberg são alguns barbudos que me veem a mente no momento. E analisando períodos, é justo dizer que desde os primórdios da filosofia e da literatura, a barba se fez presente, e aqui não falo como forma de distinção social, e sim como um recurso de construção pessoal. Porém, hoje, diferente de outros tempos, barbas volumosas e longas são quase sempre associadas a hipsters, terroristas e fanáticos religiosos. E claro, partidos políticos.

Pensando nisso, me lembrei de uma singular experiência após me tornar barbudo. Um dia, saí de manhã, por volta das 8h, e fui até a casa de um senhor chamado Francisco que chegou a Paranavaí em 1944. Ele concordou em me conceder uma entrevista sobre os tempos de colonização do Noroeste do Paraná. Em frente à sua casa, toquei a campainha e observei um cãozinho rolando dentro de uma casinha de madeira.

Não demorou e alguém gritou da distante varanda: “Entre, meu filho. Venha até mim.” Abri o portão, subi alguns degraus e atravessei o jardim. Lá estava ele, alto e magro, sentado numa confortável cadeira acastanhada de madeira com estofado bege. Sob seus pés, havia uma porção de areia lavada dentro de uma caixinha. “Legal esse senhor!”, pensei depois que nos cumprimentamos com um firme aperto de mão. De repente, ele olhou nos meus olhos com atenção e comentou: “Aposto que você entende mais disso do que eu.” Não captei a mensagem e notei seus pés afundando lentamente na areia.

“Areia é vida, não é mesmo? Quantos tons de areia você consegue reconhecer?”, questionou. Fiquei confuso e ri, suspeitando que o homem estivesse alcoolizado ou sob efeito de forte medicação. Ainda assim, respondi: “Depende da incidência do sol, dos fatores de ação e reação. Hum…pensando bem, acho que consigo identificar 25 a 30.”

— Esplêndido! Eu já imaginava algo assim. Desconfiei logo que vi – declarou.

E a conversa tomou um rumo completamente diferente, me deixando por vezes hesitante. Pouco falamos sobre a sua vida porque a maior parte das perguntas era feita por ele. “Nunca imaginei que um dia o veria falando português. Surpreendente, filho!”, assinalou nos primeiros dez minutos com um sorriso dúbio.

Ele divagava bastante, e ocasionalmente pedia para ver a palma da minha mão. “Você pode não ver, só que os traços da sua mão dizem muito sobre a sua barba. E tolo daquele que resume a barba a pelos sobre a face. Ela diz muito a respeito dos caminhos da vida do homem. Ela, na sua sinuosidade, é como uma extensão física da própria mente. Sei disso porque cultivo barba há quase 60 anos”, defendeu, tocando a barba branca e já rala que cobria o queixo. Então lamentou que aos 86 anos não tivesse mais a barba de 20 anos antes.

Também notei seus olhos úmidos quando ele se curvou e deslizou o dedo indicador dentro da caixinha de areia. Algumas lágrimas pingaram dolorosas, como se saídas de um conta-gotas. Vendo aquilo, me desculpei e sugeri que talvez fosse melhor marcarmos a entrevista para outro dia. Trêmulo, Francisco se levantou e pediu para me dar um abraço.

— Claro, Seu Francisco – respondi.

Quando suas mãos enrugadas e translúcidas me envolveram, ouvi seus refreados soluços e seu coração palpitando. “Agora eu até poderia fazer a barba”, sussurrou, fragilizado. Logo ele esmaeceu. Gritei e sua esposa apareceu. Pediu que eu o colocasse na cama. Desmaiado, preservava expressão serena e sorriso delgado. Em respeito, não pedi explicações, me despedi e caminhei até a varanda, onde encontrei ao lado da cadeira uma foto de uma criança de sete ou oito anos sentada sobre os ombros de Francisco ainda jovem.

Na semana seguinte, fiquei sabendo que o garotinho sorridente da foto era um órfão egípcio que seria adotado por Francisco, um ex-soldado do Batalhão de Suez. Em 1957, o menino chamado Yusuf morreu em seus braços, depois de ser alvejado na cabeça por um soldado israelita em missão em Porto Said. “Nunca mais vou fazer a barba na minha vida, nunca mais! Juro por tudo neste mundo, a não ser que Yusuf retorne à vida”, teria gritado Francisco aos prantos naquele dia.