Acidente numa noite de outono
As únicas luzes eram dos faróis danificados que iluminavam algo que eu não enxergava
Em junho de 2013, eu retornava para casa quando uma caminhonete preta em alta velocidade bateu no para-choque traseiro do meu carro na Avenida Parigot de Souza. Com o impacto violento e o som dos estilhaços, levei um baita susto. Só tive tempo de me esforçar para tentar manter o controle da direção, evitando que o veículo se chocasse contra uma carreta estacionada a poucos metros da entrada da Rua John Kennedy.
Depois do acidente, fiquei com a impressão de que bati em uma caçamba. Olhei para o meu irmão e perguntei se ele estava bem. Como ninguém tinha se machucado, desci do carro e não consegui entender o que aconteceu. Era como se não existisse mais nada diante de mim além da noite tenebrosa de outono. As únicas luzes eram dos faróis danificados que iluminavam algo que eu, desorientado, não enxergava naquele momento por causa da neurastenia.
Não vi casas, muros, pessoas, animais, nada. Só reconheci o som da minha própria mente, mais ruidosa do que nunca. Enleado, não me dei conta do estado do meu carro. Na esquina, a caminhonete continuava parada e dentro dela vi somente uma sombra sob o vidro escuro quase fechado. Me senti muito mal e, rendido a um desespero progressivo, notei meu corpo ligeiramente alheio à minha mente. Com pernas cambaleantes, voltei para o carro. Então meu irmão gritou que o motorista da picape fugiu. “Vamos atrás dele, David! Ele vai fugir!”, disse.
Liguei a chave do carro com a mão trêmula. Atravessei mais quatro quarteirões da Parigot de Souza quando a caminhonete a mais de 100 quilômetros por hora desapareceu no horizonte da Avenida Tancredo Neves. Com a visão turva, sem qualquer possibilidade de ver a placa, parei o carro ao final da Parigot, desci e levei às mãos ao rosto que ardia como se eu tivesse chocado a minha própria face contra o asfalto.
Meus sentimentos não estavam claros – tristeza, desalento e descrença no que vivi. Eu sentia tudo e ao mesmo tempo nada. Havia um vazio que me queimava por dentro como se meu interior fosse habitado pela mais excruciante das úlceras. “Será que estou acordado?”, pensei e pisquei com força três ou quatro vezes antes de entrar no meu carro novo ainda sem placa, comprado uma semana antes. Recebi algumas propostas de seguro na concessionária e fiquei de decidir qual escolheria no dia seguinte. Era tarde demais.
Sem música, voltei para casa ouvindo o som estrepitoso do veículo. Era agonizante, e o barulho se intensificava a cada quarteirão como panelas e talheres pendurados que balouçam com a incidência do vento. Meus olhos se encheram de lágrimas e o cheirinho de novo se desvaneceu. Dezenas de curiosos a pé e dentro de automóveis olhavam com atenção, na tentativa de interpretar o acontecido e talvez propagar suas versões de predição.
Chegando em casa, abri o portão e coloquei o carro para dentro. Não queria que vizinhos e passantes se aproximassem porque provavelmente multiplicariam boatos – a história mudaria de acordo com o anseio do narrador. Na garagem, vi como ele estava avariado, mais danificado do que eu pensava. Enquanto eu caminhava ao redor do carro, tentava entender por que o motorista da caminhonete fugiu e não assumiu a responsabilidade pela batida. Aquilo era o pior de tudo.
“Como ele conseguiu assistir tudo e ir embora como se nada tivesse acontecido? Que tipo de consciência uma pessoa assim pode ter? Será que é possível dormir bem? Talvez eu esteja enganado e ele me procure amanhã. Preciso ter calma…”, inferi. Em poucos minutos, ouvi vozes em frente ao Corpo de Bombeiros, inclusive uma referência à batida no cruzamento da Avenida Parigot de Souza com a Rua John Kennedy. Fui até lá. Havia bombeiros e outras pessoas.
Um dos homens disse que bati no carro dele e fugi. Notei olhares repreensíveis. Entre voz remansosa e agitada, tentei explicar que fui atingido por uma caminhonete e, em meio à escuridão, quando meu irmão mostrou que o responsável pelo acidente fugia, só pensei em ir atrás dele. Não imaginei que tivesse atingido outro carro. Por causa do impacto seco que não visualizei, achei que fosse uma caçamba.
E, assim como qualquer outra pessoa motivada pelo desespero, tentei anotar pelo menos a placa do veículo do causador. Não consegui. Ele saiu ileso e só quem me conhecia acreditou na minha história. Apesar de tudo, concordei em ir com o proprietário do outro carro até o 8º Batalhão da Polícia Militar na manhã do dia seguinte registrar o boletim de ocorrência.
Contei e escrevi exatamente o que vivi. No caso dele, não sei qual foi sua versão. Porém, só eu, meu irmão e o motorista da caminhonete estávamos naquela rua no momento do acidente. O carro atingido estava estacionado na rua. Não havia mais ninguém por perto. Retornei ao local na mesma manhã para avaliar seu prejuízo e levei um funileiro que eu considerava de confiança para fazer o orçamento.
Na primeira noite, acordei de madrugada e fui até a garagem me certificar dos danos. Sim! Era tudo verdade! Tive pesadelos por algumas noites. E envolviam situações em que eu tentava me aproximar da caminhonete preta e ela se desvanecia como se fosse a própria neblina arredia da madrugada caliginosa.
Meu coração palpitava com ferocidade conforme a picape se distanciava. Num desses rompantes oníricos, a picape se entranhou nas profundezas da terra e o asfalto se fechou impedindo a minha entrada. Outra vez minha imaginação fez uma associação com Christine, O Carro Assassino, de John Carpenter.
Passei duas semanas em vão tentando localizar a caminhonete. Percorri mais de 20 funilarias, pedi ajuda de amigos. Nada adiantou. Recorri até ao sistema de monitoramento de câmeras da prefeitura. Infelizmente, cobria somente a região central.
Aceitei a minha derrota e desisti. Como precisei de um bom tempo até reunir o dinheiro para custear o conserto do outro carro atingido na batida, o proprietário ficou impaciente, achou que eu não pagaria e recorreu a um advogado. Um dia, recebi uma proposta de acordo de um escritório de advocacia.
E o que mais me chamou a atenção era que lá constava que atingi seu carro enquanto eu disputava racha com outro veículo. Só consegui sentir um misto de tristeza e constrangimento, tanto que tive de reler três vezes para crer. Eles acusavam alguém com 29 anos, que nunca recebeu nenhuma multa por excesso de velocidade, de ser participante de rachas.
E para piorar, eu soube por meio de parentes que alguns de seus familiares estavam espalhando calúnias sobre mim. Ok. Não quis checar a veracidade disso. Somente lamentei e logo deixei de me importar. Dentro do prazo que me ofereceram, efetuei a transferência do dinheiro e evitei falar abertamente sobre o assunto com outras pessoas. Quando questionado, parei de me justificar e deixei cada um com suas interpretações. Afinal, minha consciência é a minha, não a dos outros.
Do motorista da caminhonete, eu jamais soube coisa alguma. Só imaginei como deve ser horrível conviver com a preocupação de que sempre que algum carro igual ao meu se aproximar, ele há de suspeitar que eu esteja lá dentro e, no seu ideário desconhecido, o culpando pelo acontecido. E quem garante que o causador do acidente não seja um conhecido?
A experiência não foi totalmente ruim. Endossei a crença do que eu não gostaria de ser ou fazer com os outros. Acredito que se o dinheiro se tornar mais importante do que a minha capacidade de empatia, provavelmente deixo de ser quem sou, perdendo a minha identidade e tornando-me um refém da empáfia.
E fui colocado à prova no ano seguinte. Em novembro de 2014, eu estava em frente a um mercado quando um motorista bateu à esquerda do meu carro e seguiu ziguezagueando pela rua. Quando vi o amassado pelo retrovisor, fui atrás dele. Sinalizei para que parasse e ele encostou o seu Corcel II bem deteriorado, com o escapamento arrastando no asfalto.
Desci e caminhei em sua direção. Embriagado, o sujeito mal falava. Sua esposa também desceu e expliquei que ele bateu no meu carro. Constrangida, a mulher se desculpou enquanto o marido fazia caretas, ria e tamborilava as mãos sobre o capô do carro. Ele parecia não se importar com a situação. No banco de trás, uma garotinha de tranças, com três ou quatro anos, assistia tudo em silêncio, segurando uma bonequinha inteiriça de plástico duro, dessas mais baratas.
A esposa do motorista me deu o número do seu telefone e implorou para não chamar a Polícia Militar. Na realidade, eu nem tinha essa intenção. Ela sugeriu que eu entrasse em contato para passar o orçamento do conserto. Antes de ir embora, perguntei de onde eles eram e o que faziam. “A gente mora e trabalha na roça dum homi aí, ‘samo lavrador’. Tamu ino visita o túmulo da minha mãe. Pedi pra ele não beber, mas é teimoso demais. Cê pode ligar qualquer hora”, se justificou constrangida.
Nunca liguei. Só assisti o sujeito serpentando o carro e desaparecendo dois quarteirões abaixo quando a fumaça do escapamento ocultou o veículo. A sinuosidade de suas vidas talvez fosse representada pelos traços sulcados no rosto daquela mulher precocemente envelhecida. Meu prejuízo material nem de longe se aproximava do seu padecimento existencial.