David Arioch – Jornalismo Cultural

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Quando alguém me diz que eu deveria ser assassinado ou roubado por não defender o discurso “bandido bom é bandido morto”

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Quando alguém me diz que eu deveria ser assassinado, roubado ou algo do tipo por não defender o discurso “bandido bom é bandido morto”, eu desejo apenas muita luz e serenidade pra quem diz isso. Eu não nego que venho de uma realidade confortável, mas por uma mistura de influência familiar e iniciativa própria comecei a conviver com os mais desfavorecidos ainda muito cedo. Na infância, meu pai me levava para passear pelos bairros mais pobres (Vila do Sossego, Vila Alta, Região do Brejo), para conviver com crianças que atuavam como engraxates, que fumavam e eram usuárias de drogas. Não viviam em casas, mas em barracas de lona – chamavam de balão mágico. Você acha isso visceral? Visceral é a vida e o obscurantismo da zona de conforto.

No início da adolescência, meu pai saiu de cena e minha mãe passou a me levar para a Vila Alta para acompanhá-la em trabalhos sociais, realização de reuniões e festinhas para as crianças. Também tive o exemplo da minha avó, que levava andarilhos para a sua casa, e um deles hoje é um empresário do ramo de consultoria em commodities. Minha avó foi a primeira pessoa a estender uma mão quando ele mais precisou.

Anos depois, adulto, terminei a faculdade e voltei a frequentar a Vila Alta, graças a um amigo que me levou a conhecer outro amigo. Isso foi na década passada. Estava tudo bem diferente, talvez nem tanto. Passei anos convivendo com menores infratores, crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Ouvia suas histórias, filmava. Transformei algumas em pequenos filminhos e em um documentário. Você não conhece a humanidade de alguém até que ele abra seu coração na espontaneidade, livre das amarras da ignorância social. O ódio muitas vezes é apenas a casca do que existe de mais nobre na alma humana.

E sim, como outras pessoas desejaram, não sei se maldosamente ou apenas de forma impensada, em março do ano passado um rapaz estava tentando furtar o meu carro quando eu o vi tentando abrir a porta (essa história chegou a ser publicada na época). Perguntei pra ele o que pretendia. Ficou assustado e deixou algo cair rente ao meio fio. Claro que não recomendo que ninguém faça isso, mas eu faço, porque esse sou eu.

Eu já tinha visto ele na Vila Alta. Seu pai vivia em uma cadeira de rodas, a mãe atuava ocasionalmente como diarista e ele tentou justificar me dizendo que “ninguém dava emprego, então tava arriscanu”. Moravam em um barraco na Rua E (soube depois). Perguntei se valeu a pena o risco, que eu poderia tê-lo matado ou espancado. Ele disse que não pensou pra agir. “Viu o carro e bateu a vontade”. “Colei aqui só!” Com 19 anos, explicou que não pagava a pensão da criança tinha meses e não queria ir pra cadeia. Já tinha cometido outros pequenos delitos, como “furto de radinho, coisa pouca, duas, três vezes”, confidenciou.

Falei pra ele sair dessa vida. Já tinha terminado o ensino médio, mas só conseguia bico de vez em nunca como servente de pedreiro. Disse que “aliviava pra ele” com uma condição – encontrar um amigo meu que atua como engenheiro. Conseguiu trabalho. Isso tem mais de um ano. Hoje Fimo trabalha como pedreiro e está cursando engenharia. Talvez tenha sido loucura. Mas faria tudo de novo. É verdade.

 

Written by David Arioch

October 10th, 2018 at 1:22 pm