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Peixe também sofre
Um homem pescava às margens do Rio Paraná quando um menino se aproximou. Não dizia nada, só observava, acompanhando o anzol. Mais de uma hora depois, continuava assistindo o pescador insistindo na captura de um peixe.
Quando já estava cansando, o homem sentiu uma fisgada e puxou a vara com cuidado, sem fazer muita força, pra confirmar se não era ilusão da insolação. Havia um dourado preso ao anzol, e lutava para se livrar da situação.
Usava o corpo todo. Se retorcia com tanta força que a cauda quase encostava na boca perfurada pelo gancho metálico. “Hoje você é meu, é sim, você é meu…”
Depois de muito esforço, quando conseguiu tirá-lo da água, o lançando em um pedaço de lona sobre uma porção descampada, o peixe se debatia e movia a cauda; e não só ele, o menino também.
Sangue escorria pela boca da criança – os olhos foram perdendo o viço e já não conseguia respirar. Segurava a própria garganta e rolava de um lado para o outro na terra.
Desesperado, se jogou no Rio Paraná. O pescador pulou logo atrás e, o puxando pelos cabelos, conseguiu levá-lo de volta à superfície. Engoliu um pouco de água, mas parecia bem.
Olhou em volta por instante e partiu sem dizer palavra enquanto o pescador procurava o dourado em vão.
O pequeno dourado
Nunca gostei de pescaria, mas me recordo claramente de um episódio em que meu pai tinha recém-comprado uma vara de pescar. Eu era criança e estávamos na divisa entre o Paraná e o Mato Grosso do Sul, onde ele lançou o anzol de cima de uma balsa. Não sei se para a sorte dele ou azar do peixe, um pequeno dourado, talvez ainda inexperiente nas águas do Rio Paraná, fisgou a isca.
Meu pai o puxou no mesmo instante em que a vara tremulou. E a poucos metros de distância, vi o dourado sendo içado a contragosto – se contorcendo, preso ao anzol. Mesmo miúdo, se debatia com violência, não sei se por instinto ou paixão – ou os dois, num sobressalto para não ceder à morte. Notei o desespero nos olhos vibrantes daquele pequeno animal que cintilava como a última luz do poente.
Foi como testemunhar um ser humano se afogando, e me recordei de quando ainda muito ingênuo, quase fui engolido pelo mar. O desespero do dourado não parecia diferente do meu enquanto me afogava – durou mais do que segundos, talvez tenha sido uma eternidade. Mas quando meu pai percebeu a minha reação de espanto e a do meu irmão, ele o lançou de volta.
O peixe partiu veloz, recortando as águas do Rio Paraná. E o sol que até então iluminava somente o leito do rio, aqueceu nossas cabeças por um instante. Eu já não sentia ou reconhecia a chegada da morte, somente da vida que prevalecia e resplandecia.
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O pescador e o dourado
Era um dourado que cintilava tanto quanto a primeira luz que o sol lançou sobre o Rio Paraná
Como fazia todos os dias, Orlando lavou o rosto, escovou os dentes, preparou a tralha, se despediu da esposa, da neta e saiu de casa na silente escuridão da madrugada. Durante a caminhada até a barranca do Rio Paraná ganhou a companhia de cigarras e grilos que cantavam com tanta sofreguidão que pareciam ansiar pela alvorada.
Quando encostou no bambuzal a poucos metros da margem, Orlando acendeu o palheiro e observou no horizonte o sol saindo ocioso por trás das cortinas de água – lançava um brilho que dourava o Paranazão até onde os olhos poderiam alcançar. “Que coisa linda! Faz valer pular da cama cedinho assim”, comentou tragando e baforando uma fumaça ruça que saía quente da boca e logo arrefecia, deixando a língua amarga e o peito chiando. Se recordou dos pedidos exaustivos da mulher para que largasse o fumo de corda. Teimoso, ainda fumava dois ou três toda manhã.
Antes da última tragada, o cenho grave de Orlando deu lugar a uma gargalhada expansiva que fez sua barriga doer ao contar oito sapos coaxando e brincando no cerne de um brejo. “Até parece disputa pra ver quem canta mais alto. E tem quem diz que os bichos não são espertos”, comentou quando o menor dos sapos se esquivou de uma investida ardilosa do maior. Sem mais distrações, caminhou até o Rio Paraná, se ajoelhou, reverenciou o céu, a terra e a água. Subiu sobre o barco, o desamarrou, ajeitou a tralha e ligou o motor. Seguiu criando pequenas ondas, cortando a água que se tornava menos turva e mais cristalina conforme se distanciava da margem.
Massageando seus poucos cabelos grisalhos, o vento temperado e úmido trouxe lembranças da mocidade, dos amigos que partiram, dos familiares falecidos. Com 60 anos, sentia-se cansado, não pela ação do tempo sobre o corpo. O rosto estriado não o incomodava. Orlando simplesmente não sabia o que havia de errado em sua vida, mas sentia, e seguia fazendo o que sempre fez. Pescador desde a infância, morou em cinco ilhas no seio do Paranazão. Pescou tanto em mais de 45 anos que deixou de sentir prazer em tirar da água as preciosidades da natureza.
— Depois que criaram a barragem, muitas espécies de peixes sumiram, é o que todo mundo diz, inclusive eu. Mas será que a gente também não tem culpa nisso? Todos esses anos de pesca deve ter traumatizado a natureza – refletiu coçando o queixo levemente enrugado e queimado pela frequente exposição solar.
Durante décadas, Orlando sorriu para fotos, segurando peixes de até 80 quilos. Abasteceu muitos congeladores de peixarias em um raio de mais de 100 quilômetros. Porém, nos últimos cinco anos deixou de ver os animais que tirava da água como troféus. Num final de tarde, se irritou quando o amigo Laércio, um de seus clientes, ameaçou romper negócios, alegando que ele estava entregando poucos peixes.
“Parece que não sabe pescar mais. Tem piá aí que já tá te deixando pra trás, meu amigo. Vai dizer que já esqueceu que te chamavam de Zóio de Anzol? Vamos despertar aí!”, reclamou Laércio. Durante a travessia da Lagoa do Jacaré, Orlando se recordou do episódio na peixaria. Ele não disse nada a Laércio naquele dia. Continuou pescando por pressão que não reconhecia.
Por volta das 17h, após percorrer o Rio Bahia, retornou à margem. Desanimado, viu a própria casa despontando na ladeira. Desligou o motor do barco e ficou em silêncio, ora observando a água, ora o céu. O pescador não queria estar ali, e postergava o inevitável amargando a volatilidade de uma crise existencial.
Entristecido, cochilou com a cabeça escorada sobre o colete salva-vidas. A noite ameaçava surgir e ele não tinha pescado nada. “O que vão pensar de mim?”, se perguntou. O sol foi piedoso; cobriu seu corpo com uma luz morna, até que meia hora depois Orlando levou um susto ao ouvir algo se chocando contra o casco do barco.
Titubeante, preparou a vara de pescar e a lançou na água com destreza, como se chicoteasse o leito. Em menos de minuto, sentiu uma fisgada no anzol e a vara envergando. Enquanto se esforçava para puxá-la, um peixe se debatia violentamente sob a água. Era um dourado que cintilava tanto quanto a primeira luz que o sol lançou sobre o Rio Paraná.
Deitado à força no interior do barco, o peixe de seis quilos lutou com vigor, se debatendo em cima de um pedaço de lona. Orlando franziu a testa, cerrou os dentes e evitou olhar diretamente para o animal. Seus olhos doíam. Ainda assim, tirou o peixe do barco, o enrolou na lona para não ter de observá-lo e caminhou até a peixaria. Lá, colocou o dourado sobre uma mesa com vestígios de vísceras e sangue seco nas rebarbas e gritou:
— Ô de casa! Ô Laércio! Vim trazer um dourado. Tu disse que faz tempo que não recebe nenhum. Pega logo aqui que quero ir pra casa.
— Tô aqui no fundo, Orlando. Venha me dar uma mão. Preciso mudar a posição dos congeladores.
Mesmo a contragosto, Orlando ajudou Laércio. De volta à recepção da peixaria, o dourado não estava mais lá, somente o pedaço de lona que o envolvia. O pescador levou as mãos à cabeça e seu coração disparou.
— Não acredito nisso! Não é possível que levaram o peixe daqui! O que eu vou fazer agora?
Cerca de cem metros ladeiro abaixo, Orlando ficou chocado quando viu o dourado pulando, tentando chegar às margens do Rio Paraná. Então correu até ele e, antes que alguém o fizesse, o tomou nos braços e continuou descendo, sem se preocupar com as correias do chinelo que se desfaziam pelo caminho.
Com olhos escuros e fixos, e uma boca que abria e fechava o tempo todo, o peixe parou de se debater e pela primeira vez o pescador enxergou o próprio reflexo nas escamas do animal. Mais do que tudo, o dourado ansiava pela água. E o cheiro que emanava de seu corpo não era de carne, mas sim de vida. Sob a luz do poente, assim que o peixe foi lançado ao rio, Orlando renasceu e o dourado desapareceu.
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Sobrevivendo do Paranazão
Apesar da queda do volume de peixes, pescadores continuam na ativa e complementam a renda atuando como guias
Apesar da queda do volume de peixes, pescadores do Porto 18, há 22 km de Querência do Norte, no Noroeste do Paraná, dizem acreditar que a pesca no Rio Paraná ainda é compensatória. Se faltar peixe no rio, a valorização do preço garante a lucratividade. Com tal perspectiva otimista, dois ribeirinhos sustentam a família sem precisar se mudar para a cidade.
Antônio Medina de Souza Neto, 29, e Sebastião Pedro da Silva, 39, conhecido como Tião Paçoca, percorrem, do interior de dois pequenos barcos de madeira, as águas do Rio Paraná de segunda à sexta. “Comecei a pescar com 12 anos. Sinto falta de quando pescava bastante peixe. Mas estou feliz porque os 10 kg de hoje equivalem aos 50 kg de outros tempos. Ou seja, se pesca menos, mas o lucro é o mesmo”, assegura Neto.
Tião Paçoca lembra a época em que pescava mais de 100 kg de peixe. Emocionado, jura que não é apenas história de pescador. “Pegava até 14 dourados no mesmo dia. Foi assim durante dois meses em 2002. Não ganhava menos de R$ 1 mil com a pescaria”, relata. Com a construção das barragens, a queda no volume de peixes atingiu todos os pescadores locais, segundo Tião. Por outro lado, contribuiu para a alta no preço da carne branca. “Ainda dá pra tirar uns R$ 800 por mês. O lucro é garantido pra quem pesca piapara e dourado”, comenta o pescador.
Entre os pescadores de Querência do Norte e região há unanimidade com relação à pesca nas imediações do Porto 18. “Não há melhor lugar. Tem dia que ainda pegamos 20 kg de peixe”, afirma o sorridente e bem-humorado Tião Paçoca. Setembro é considerado o melhor mês para a pesca, quando se torna fácil encontrar peixes realmente grandes. Na primavera, turistas aproveitam a oportunidade para conhecer a área. “Abril também é um ótimo mês para pescar”, pontua Antônio Medina, em referência que também remete ao fim da piracema, período em que a pesca é proibida para não atrapalhar a cadeia reprodutiva dos peixes.
Recursos naturais impulsionam o turismo
Quem já teve a oportunidade de conhecer alguns dos portos que circundam Querência do Norte, se sente enfeitiçado pelas belezas naturais da região. Cientes da atenção que a fauna e a flora local atraem, pescadores encontraram no turismo uma alternativa para agregar mais renda.
De segunda à sexta, é fácil ver sobre as águas do Rio Paraná um grande número de barcos procurando os melhores cardumes da região. Os pescadores só deixam as varinhas de lado aos sábados e domingos, quando assumem o papel de guias turísticos. “Em média, atendo 25 pessoas por mês e cobro R$ 50 reais de cada grupo”, assinala o pescador Antônio Medina de Souza Neto. O pescador Tião Paçoca cobra o mesmo valor e considera o trabalho prazeroso. “Aqui a gente mostra que realmente conhece tudo”, frisa.
Em Querência do Norte, muita gente disponibiliza o barco com motor por diárias de R$ 100, preço fixado pelos pescadores. “É uma alternativa para quem prefere um programa mais calmo, como pescar. Já os aventureiros optam por conhecer as ilhas”, diz Neto. A experiência de Tião Paçoca e Medina de Souza Neto faz com que turistas de cidades bem distantes sempre os escolham como guias. “Já auxiliei muita gente de Ribeirão Preto, Sertãozinho, Marília, Curitiba, Londrina, Maringá e Paranavaí”, exemplifica Tião.
A única queixa dos pescadores diz respeito a precariedade da estrada que os turistas têm de percorrer para chegar até o Porto 18. “O caminho é muito ruim. Muita gente desiste de vir aqui. Se algo fosse feito, ganharíamos muito mais dinheiro”, avalia Antônio Medina de Souza Neto.