Vivendo na Vila Alta
Garotos de 12 anos contam histórias sobre o cotidiano em um dos bairros mais pobres de Paranavaí
No último sábado, passei a tarde toda na Vila Alta, um dos bairros mais pobres e isolados de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Foi o suficiente para ouvir muitas histórias sobre a realidade de cinco garotos de 12 anos.
Enquanto brincavam, chamei a atenção de um e perguntei se sabia o significado do símbolo na camiseta que ele vestia. Respondeu negativamente com a cabeça e sanei sua curiosidade explicando que era o logotipo da banda cristã de metalcore (uma mistura de heavy metal com hardcore) Devil Wears Prada, dos Estados Unidos.
Quando questionei sua idade, hesitou um pouco, mas contou que tem 13 anos. O amigo ao lado o corrigiu, dizendo que são 12 anos. “Vixi, você não sabe nem sua idade!”, repreendeu. O garoto que vou chamar de R. para preservar a sua identidade justificou que nunca viu os próprios documentos. “Fica tudo com minha vó, ela que sabe dessas coisas”, se defendeu enquanto coçava a cabeça.
R. continuou falando e ressaltou que foi jogado na rua pela mãe quando tinha três anos. “Ela me batia muito, não gostava de mim. Quem me tirou da rua foi minha avó. Se não fosse por ela, eu ainda ‘tava’ lá”, garante. V. aproveita a confidência do amigo para revelar que seu pai sempre bate na sua mãe. Por isso, hoje só dorme na casa da avó. “Não consigo mais dormir com eles. Não durmo em nenhum outro lugar, só na minha avó”, enfatiza.
R., que abandonou a escola, assim como outros dois garotos de uma turma de cinco amigos, já passou muito tempo nas ruas. Com nove anos, além de usuário de drogas, se tornou “laranja” do narcotráfico. “Eu roubava [furtava] também. Um dia, a gente ‘passou a mão’ em uns canos de alumínio e levamos pra uma dona de um ferro-velho. Falamos que a Copel [Companhia Paranaense de Energia] descartou tudo no “Lixão”. Era mentira. A polícia veio atrás e a gente teve de correr”, explica. As histórias de R., contadas com singela inocência e peculiar ausência de noção moral, são confirmadas por um adulto que o conhece há mais de três anos.
Acostumados a passar bastante tempo fora de casa, é costume os garotos retornarem ao convívio familiar tarde da noite. “Fico na casa do V. até as 22h. Tem época que vou embora só pra dormir”, relata R. O tempo livre é ocupado jogando bola, matando passarinhos e brincando no bosque ou em uma área conhecida como “Barragem”.
O costume de matar animais não domésticos surgiu com a fome, mas acontece também de algumas crianças fazerem isso sem justificativa aparente. “Parei porque não é legal”, comenta A. O mais intrigante é que a maneira como falam sobre o assunto não demonstra crueldade, e sim falta de referência entre certo e errado, o que é permitido ou não.
É proeminente o desconhecimento sobre a importância da vida animal. Dois garotos disseram que raptaram filhotes de quati e diversas vezes perseguiram outros animais no Bosque Municipal de Paranavaí apenas por diversão. Esse tipo de situação é incentivada pelas atitudes dos mais velhos. Exemplo é um episódio protagonizado por um pai de família que aproveitou um incêndio no bosque para matar quatro macacos-prego em fuga. Um vizinho denunciou que o homem cozinhou, assou e comeu os animais, acompanhado da mulher e dos filhos.
“Aí já aconteceu de tudo. Teve uma época que a gente vivia fumando maconha lá dentro”, salienta R. enquanto aponta em direção a um buraco feito com alicate na cerca lateral do bosque. W. aproveita a “deixa” do amigo para confidenciar que há dois anos testemunhou um assassinato na “Barragem”. “Vi uma turma matando um cara com golpes de ferro de portão. Só me falaram pra sair de lá”, garante. O local é citado pelos moradores mais velhos como uma área neutra, onde facções criminosas resolviam desavenças e se livravam de cadáveres.
Curioso, um garoto ainda mais jovem e que não faz parte da turma pergunta se estou entrevistando eles. Respondo que sim e pede para escrever que o sonho dele é ter duas armas, andar de “carrão” com uma mulher no colo e ir pra “zona” tomar pinga. “É isso que quero pra minha vida”, complementa sorrindo.
Na sequência, R. lembra que há pouco tempo achou no “Lixão” um saco de balas de revólver. “Só tinha bala vermelha”, afirma. Da turma de cinco amigos, M. é o único que não reprovou na escola e se orgulha do feito, considerado raro entre os garotos do bairro que têm a mesma faixa etária. Muitos crescem sem incentivo para estudar.
“Falam que é bobeira, que estudar não vai dar em nada. Tem pai até que proíbe de ir pra escola”, assegura R. que mal sabe ler e escrever. Também é preocupante o quadro de analfabetismo funcional. Na Vila Alta, muitas crianças leem, mas poucas assimilam o aprendizado a ponto de explicar o que entenderam. Para reforçar o problema, cito como exemplo outra ocasião em que entrevistei dez garotos e seis disseram que estudaram em sala especial.
Em contraponto, é fácil perceber que muitos jovens do bairro são espertos e tem dons que não são aproveitados ou estimulados. Crentes de que o futuro dificilmente vai melhorar, acabam aceitando o convite para ingressar no mundo do crime. “O que mais aparece é gente chamando pra roubar alguma coisa ou vender drogas. Às vezes, você decide roubar porque ‘tá’ com fome”, destaca R., acrescentando que tem crianças do bairro que passam o dia na rua procurando algo pra comer, principalmente as que vivem a dura realidade do abandono ou ausência familiar.
Um dia, me deparei com uma criança no fim da Vila Alta, no “Lixão”, sentada sobre uma placa de “vende-se”, comendo restos de comida descartados por um restaurante do Centro de Paranavaí. Ela parecia não se incomodar com a presença de um urubu se alimentando da carniça de um cachorro a alguns metros de distância. Me aproximei, dei algum dinheiro, ela agradeceu assustada e foi embora. Moradores das imediações me informaram que essa cena não é incomum. “A sua intenção foi boa, mas pode acreditar que isso não vai acabar assim. Precisamos de muita ajuda aqui”, avalia a dona de casa Maria Cândida de Oliveira.