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A cabra da mangueira
Era como se sua essência se esforçasse para se lançar para fora de um abismo movediço e ruidoso
Eu tinha oito anos. Henrique e Thiaguinho vieram me chamar num sábado para ir até a casa deles brincar com um animal “diferente”. Avisei minha mãe e acompanhei eles até o quarteirão de baixo. Chegando lá, vi uma cabra tão branquinha e portentosa que só o fato dela existir parecia o suficiente para transmitir a mais querençosa das serenidades.
Ela se mantinha silenciosa amarrada a um pé de manga no quintal, e desde que a vi pela primeira vez notei seu olhar amiudado e melancólico. Em algumas partes do seu corpo havia uma porção de cicatrizes; talvez tivesse se machucado nas tentativas de fuga. Enquanto tirava minhas próprias conclusões, ela se cansou de ficar em pé e sentou sobre uma porção de folhas secas, ignorando as mangas apodrecidas que lambuzavam seus pelos.
Sua cabeça se movia lentamente de um lado para o outro. Ao mesmo tempo, sete ou oito pessoas gritavam, riam e conversavam. Cães e gatos atravessavam o outro lado do quintal, numa brincadeira consentida sem hora para terminar. Com receio de ser repreendido, fiquei num canto assistindo a cabra a quem dei o nome de Belinha – sem contar a ninguém.
O pai de Henrique não tirava os olhos dela. Entre um gole e outro de cerveja, ele se aproximava da cabra que indiferente a tudo não reagia às leves palmadas que recebia, acompanhadas de um sorriso e uma frase clichê: “É hoooojeeee!” Não entendi o que ele quis dizer e fiquei calado. Quando tossi, Belinha notou que eu estava sentado no chão, escorado contra o cercadinho da varanda.
Em seu olhar havia uma opacidade que se misturava a um brilho fortuito. Era como se sua essência se esforçasse para se lançar para fora de um abismo movediço e ruidoso. Cerca de 15 minutos após a minha chegada, ela fechou os olhos, mirou o chão e assim ficou. Me levantei e caminhei em direção a ela, até que o pai de Henrique apareceu de repente e sugeriu que eu me afastasse da cabra: “Vá brincar pra lá, David! Não é pra chegar perto da cabra!”
Assustado, voltei amuado para o meu canto. Belinha abriu novamente os olhos. Mesmo com as patas sujas e o lombo ligeiramente turvo, no meu ideário ela ainda era o ser mais impoluto do lugar. Eu não conseguia associar sua imagem à sujeira. Seu semblante e tudo que emanava dele reforçava minha opinião.
Mais alguns minutos se passaram e uma brisa repentina balançou as folhas da mangueira. Belinha se levantou, elevou a cabeça em direção ao céu e sentiu o bafejo da natureza acariciando sua barba longa e fina. Tive a impressão de vê-la sorrindo enquanto seus pelos se avolumavam na sua simplicidade contemplativa.
Assim que a aragem partiu, a luz aos poucos se extinguiu. O sol já não brilhava sobre nossas cabeças. Era um início de tarde travestido de fim. Preocupado, corri até em casa para ajudar minha mãe a tirar as roupas do varal, crente de que logo mais a chuva chegaria, derrubando e arrastando tudo com patifaria.
De volta à casa de Henrique, minhas pernas tremularam quando olhei em direção à mangueira. Belinha foi degolada e abaixo dela havia dois baldes cheios de sangue que respingaram sobre o solo, tingindo de vermelho as folhas e mangas no chão. Tentei encostar a mão na sua cabeça, ou pelo menos nos fios de sua barba, mas eu era pequeno e só pude acariciar suas patas.
Me arrepiei e chorei ao ver seus olhos retangulares e melífluos ainda úmidos. Sabia que ela também tinha chorado, porque sua barba gotejou transparência sobre a minha testa. Encolerizado, caminhei até uma roda de homens e perguntei porque eles mataram a cabra. “Pra comer, ora! Por que mais seria?”, responderam em uníssono, fazendo troça da minha exasperação.
À noite, antes de dormir, me ajoelhei diante da cama, orei e pedi a Deus que colocasse Belinha em um bom lugar, que não a deixasse vagar pelos umbrais por ter morrido de forma trágica e antes da hora. No dia seguinte, vieram em casa oferecer a carne da cabra, mas minha mãe recusou educadamente. Apesar de enraivecido, eu não disse nada. Depois fiquei sabendo que todos que comeram a carne de Belinha passaram muito mal.
Além disso, quatro homens que participaram do abate da cabra faleceram na mesma semana em um acidente, transportando gado do Mato Grosso do Sul para o Paraná. Supersticioso, o pai de Henrique e Thiaguinho nunca mais matou nenhum animal. E eu, ao longo de um mês, prossegui com a mesma oração: “Deus, coloque os amigos do pai de Henrique em um bom lugar. Mas em primeiro lugar a Belinha que morreu antes.”
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