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Sobre a cena de estupro em “Último Tango em Paris”
Tenho lido sobre a mais polêmica cena do filme “Último Tango em Paris”, de Bernardo Bertolucci, lançado em 1972, com a então jovem Maria Schneider, estuprada pelo personagem de Marlon Brando.
Bertolucci admitiu que Maria não sabia que se trataria de uma cena de estupro, visando reproduzir as reações dela como mulher, não atriz. É triste, mas não fiquei tão surpreso porque o cinema está repleto de casos como esse. Isso me lembra um artigo que escrevi há algum tempo, sobre a concepção moral de alguns artistas. Há artistas, inclusive entre os grandes, que não se importam com a perspectiva moral que normatiza a vida em sociedade.
A diferença é que alguns levam isso para as telas, outros a restringem ao escapismo. Além disso, a arte para muitos está acima de qualquer coisa, e pouco importa pra eles se isso significa transpor os direitos de alguém. E isso não é contemporâneo não, muito menos se restringe ao cinema. É só estudar a vida dos pintores do passado. Estamos falando de algo que existe desde o surgimento da arte. Para alguns ou muitos, o que vale é transmitir o que eles querem transmitir. O resto é realmente encarado como resto. O doa a quem doer não raramente é levado à literalidade sem ressalvas.
Todo estuprador é um psicopata?
Estupradores são naturalmente ególatras, pessoas que não sabem lidar com negativas
Li muitos comentários e alguns textos sobre o episódio da jovem de 16 anos que foi estuprada no Rio de Janeiro por mais de 30 homens. Acho impossível não sentir asco, mas também sei que crimes como esse acontecem com mais frequência do que imaginamos. Afinal, quem não se lembra do estupro coletivo em Castelo do Piauí que teve repercussão nacional no ano passado? Quando quatro adolescentes de 15 a 17 anos foram apedrejadas, estupradas, amarradas e jogadas de um penhasco de oito metros de altura.
Não conheço a história da jovem do Rio de Janeiro e acredito também que isso não tenha relevância alguma, já que nada justifica um estupro. Não importa como ela se veste, se tem filhos, se gosta de baladas, se bebe pouco ou muito. Nossas escolhas não existem para pautar a vida dos outros. Somos o que somos, nem por isso temos o direito de decidir como as pessoas devem ser ou agir. Ademais, o fato dela ser menor de idade torna tudo ainda mais aberrante porque ratifica um estado de maior vulnerabilidade.
Há pessoas que podem qualificar o caso de estupro coletivo como um fato isolado por causa da repercussão pontual da mídia. Porém é algo que está bem longe da realidade. No Brasil, pelo menos 15% dos casos de estupros são coletivos e mais de 70% das vítimas são menores de idade. E só para mostrar como a situação é alarmante, pelo menos seis estupros são registrados por hora no Brasil.
Só em 2015, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, podem ter ocorrido 136 mil estupros, numa projeção otimista inspirada na metodologia internacional National Crime Victimization Survey. Imagine então se somarmos esses dados aos casos de violência sexual em que as vítimas ficaram aterrorizadas ou foram coagidas a não denunciar? O total pode chegar a 476 mil.
Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), não mais do que 10% dos casos de violência sexual são denunciados à polícia. Logo não tenho dúvida alguma de que ser mulher no Brasil é muito difícil, já que são obrigadas a viver em estado de alerta, ainda mais levando em conta a impunidade reconhecida pelos abusadores.
Eles zombam das nossas leis brandas que dão margem a muitos recursos por causa do viés da subjetividade. Maior exemplo do descrédito é o fato de que muitos estupradores tiram fotos ou filmam os atos de violência sexual como se fossem souvenirs ou troféus, algo de que se orgulham.
Em 2006 e 2007, fiz um trabalho junto ao Projeto Sentinela, que combate o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes. E o que tirei de lição daquele tempo para a atualidade é que estupradores são naturalmente ególatras, pessoas que não sabem lidar com negativas, seja porque foram mimados demais ou porque não conseguem aceitar o fato de que as pessoas vão continuar existindo e seguindo suas vidas independente deles.
Muitos também tendem a tentar transferir para outra pessoa o desprezo que sentem por si mesmo. Se veem como insignificantes e acabam recorrendo à objetificação sexual de alguém. Querem ferir outra pessoa, marcá-la para sempre. Sentem um prazer mórbido e doentio nisso.
No caso dos mais de 30 rapazes que estupraram a adolescente, como algumas pessoas comentaram, é difícil crer que todos sejam doentes. Mas acredito sim que eles possuem traços de sociopatia e psicopatia. A verdade é que o mundo hipermoderno está imerso em desvios de conduta que ameaçam o bem-estar social.
Nos livros The Sociopath Nextdoor e Snakes in Suits: When Psychopaths Go To Work, os estudiosos do comportamento humano Martha Stout e Paul Babiak estimam que 10% da população mundial sofre de algum tipo de psicopatia, o que me faz crer que a raiz do problema com relação aos estupros já começa nos primeiros indicativos de sociopatia, na ausência de limites e na anuência da permissividade.
Até porque, antes de tudo, todo estuprador é um psicopata, embora nem todo psicopata seja um estuprador. Talvez tenhamos dificuldade em identificar isso porque temos uma tendência obtusa e até romanesca de associar a figura do psicopata com a dos serial killers que encontramos na literatura e no cinema.
De tudo que li até agora sobre o estupro da jovem de 16 anos, só não concordo com as acusações de que todo homem é um estuprador em potencial. Não é verdade e também nem mesmo existe qualquer tipo de estudo que se aproxime de corroborar esse tipo de afirmação baseada na passionalidade.
O crime envolvendo a adolescente do Rio de Janeiro, me lembrou uma história que escrevi há alguns meses sobre uma jovem vítima de estupro
Talvez tivesse caído na rua quando caminhava do boteco para casa. Em seguida, percorreu seu corpo com a língua áspera e fedorenta que a fez sentir-se como se fosse lambida por uma dessas lagartas que invadem pedaços de pau podre em terrenos baldios. Com o rosto virado, Sandra chorava em silêncio, mordendo os lábios e mirando o telhado de fibrocimento (Eternit). Se esforçava para sair do próprio corpo. Não queria enxergar nem sentir nada. A poucos centímetros, observou Isabel à direita – a bonequinha de tecido tinha um vestido encardido, levemente avermelhado.
“Lembrei da virgindade que aquele velho pedófilo tirou de mim. Ele ainda comemorou quando viu o meu sangue escorrendo pelo lençol. Falou desse jeito: ‘É assim, filhinha, a primeira vez de vocês têm que ser com o papai’”, comentou. Turvo se levantou e desapareceu na escuridão, carregando uma garrafa de pinga e arrastando os pés no chão.
Nada a fazia esquecer o cheiro nauseante do pai. As palavras do homem continuaram ecoando pela mente de Sandra. Era como se por um artifício fantástico tivessem-lhe anexado ao ouvido um gravador que reproduzia copiosamente as frases do criminoso. Ela não conseguia expor ao mundo o sentimento inimaginável que a dominou desde a noite do estupro.
Em seu interior, o desespero incessante consumia a voz e a capacidade de se comunicar. “Os gritos e o choro não eram ouvidos e vistos por ninguém. Existiam apenas dentro de mim. E minha mãe [primeira esposa de Turvo] sabia de tudo e aceitava”, narra chorando. As lágrimas pareciam banhar o interior de cada um dos órgãos – do coração ao útero. A voz perdida, apenas ela ouvia. A vontade de viver se esvaía com o sangue maculado, arbitrariamente dilacerado do seu corpo em desenvolvimento.
Lá fora, no quintal sujo, Sandra tentava, sem sucesso, chorar, observando um pneu que balançava preso à corda amarrada em uma árvore. Para ela, tudo continuava desfocado e diluído. “Eu queria morrer e, em vários momentos da vida, sei que minhas irmãs também. Ele abusou da gente não só uma ou poucas vezes, mas muitas. Ele estuprou todas as filhas e mesmo depois de tantos anos algumas ainda recebem suas visitas noturnas”, garante Sandra que se arrepia, apontando com o dedo indicador os pelos eriçados do braço.
O homem que estuprou as 14 filhas
“Falou que não existia nada melhor do que ter mulheres da família sempre à sua disposição”
Um dia, na Vila Operária, na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, eu estava conversando na calçada com alguns moradores quando um senhor de 70 anos se aproximou. Aparentemente tranquilo, o sujeito que caminhava quase arrastando os pés fez alguns comentários sobre o tempo e o clima e se afastou, caminhando em direção à Rua Luiz Spigolon.
Há alguns anos, esse mesmo homem a quem chamo de Turvo, para velar sua identidade – a pedido dos envolvidos na história, descobriu um câncer e o médico disse que ele tinha apenas poucos meses de vida. À época, amigos, vizinhos e conhecidos o visitaram para se despedir, crentes de que o sujeito não sobreviveria.
Mesmo quem não simpatizava com o homem, sensível à situação, o procurou para se desculpar por velhos desentendimentos. Ninguém queria que o sujeito morresse amargando veleidades envolvendo fofocas e discussões acaloradas por causa de empréstimo de míseras quantias em dinheiro.
Ainda assim as visitas tinham atmosfera fúnebre, mas o sujeito, genioso e autoritário, parecia não se importar muito, já que seu comportamento e hábitos não mudaram em nada. Com o passar do tempo, Turvo não morreu, inclusive atualmente circula pelo bairro, e até mais saudável do que antes, surpreendendo muita gente.
Porém, há poucos dias, uma de suas ex-mulheres decidiu fazer uma confidência chocante, com a única exigência de que nenhum nome real fosse divulgado. Nervosa, constrangida e assustada, a mulher relatou que Turvo estuprou as 14 filhas, de um total de 19 filhos. E o homem jamais encarou isso como violência sexual ou incesto, mas sim como direito de pai.
“Só tivemos uma filha e ele também se aproveitou dela. Quando fiquei sabendo disso me deu um nojo muito grande. Ele mesmo contou tudo numa noite, depois de chegar bêbado em casa. Falou que não existia nada melhor do que ter mulheres da família sempre à sua disposição, nem que fosse pelo uso da força”, revela Marga que depois se separou do marido. No entanto, não teve coragem de prestar queixa na delegacia.
Com olhos marejados, a mulher relata que o homem só não estuprou todos os filhos porque cinco são homens. Apesar disso, prevendo a represália do pai que os criou sob a disciplina do medo, nenhum deles ousou enfrentá-lo ou denunciá-lo, mesmo sabendo que o pai estuprou todas as filhas.
Os primeiros casos de violência sexual e incesto praticados por Turvo começaram há mais de 30 anos, quando as filhas mais velhas entraram na puberdade. O homem chegava tarde em casa com odor de cachaça, ignorava a esposa que dormia e ia direto para o quarto das filhas, onde as obrigava a ter relações sexuais com ele. Às vezes, enquanto ele molestava uma, as outras filhas fingiam que dormiam, aterrorizadas com a possibilidade de serem as próximas vítimas.
“Vem cá que o papaizinho vai cuidar de você. Papaizinho vai provar que te ama tanto quanto ama a mamãe. Vem, Sandrinha, vem! Papai vai te ensinar que não existe nada melhor que amor de pai”, murmurou o homem cheirando à pinga e enrolando a língua num tom de voz meloso aos pés da cama. A sombra e as mãos pegajosas de Turvo a cobriam de forma tão sufocante que pareciam tentáculos.
Sandra se recorda do desespero que sentiu quando o pai a observou com olhos graúdos, assustadores e repulsivos. O sujeito acariciou suas pernas com as mãos esfoladas e sujas de terra. Talvez tivesse caído na rua quando caminhava do boteco para casa. Em seguida, percorreu seu corpo com a língua áspera e fedorenta que a fez sentir-se como se fosse lambida por uma dessas lagartas que invadem pedaços de pau podre em terrenos baldios.
Com o rosto virado, Sandra chorava em silêncio, mordendo os lábios e mirando o telhado de fibrocimento (Eternit). Se esforçava para sair do próprio corpo. Não queria enxergar nem sentir nada. A poucos centímetros, observou Isabel à direita – a bonequinha de tecido tinha um vestido encardido, levemente avermelhado.
“Lembrei da virgindade que aquele velho pedófilo tirou de mim. Ele ainda comemorou quando viu o meu sangue escorrendo pelo lençol. Falou desse jeito: ‘É assim, filhinha, a primeira vez de vocês tem que ser com o papai.’” Turvo se levantou e desapareceu na escuridão, carregando uma garrafa de pinga e arrastando os pés no chão.
Nada a fazia esquecer o cheiro nauseante do pai. As palavras do homem continuaram ecoando pela mente de Sandra. Era como se por um artifício fantástico tivessem anexado ao seu ouvido um gravador que reproduzia copiosamente as frases do criminoso. Ela não conseguia expor ao mundo o sentimento inimaginável que a dominou desde a noite do estupro.
Em seu interior, o desespero incessante consumia a voz e a capacidade de se comunicar. “Os gritos e o choro não eram ouvidos e vistos por ninguém. Existiam apenas dentro de mim. E minha mãe [primeira esposa de Turvo] sabia de tudo e aceitava”, narra chorando. As lágrimas pareciam banhar o interior de cada um dos órgãos – do coração ao útero. A voz perdida, apenas ela ouvia. A vontade de viver se esvaía com o sangue maculado, arbitrariamente dilacerado do seu corpo em desenvolvimento.
Lá fora, no quintal sujo, Sandra tentava, sem sucesso, chorar, observando um pneu que balançava preso à corda amarrada em uma árvore. Para ela, tudo continuava desfocado e diluído. “Eu queria morrer e, em vários momentos da vida, sei que minhas irmãs também. Ele abusou da gente não só uma ou poucas vezes, mas muitas. Ele estuprou todas as filhas e mesmo depois de tantos anos algumas ainda recebem suas visitas noturnas”, garante Sandra que se arrepia, apontando com o dedo indicador os pelos eriçados do braço.
Embora todas sejam bonitas, os traumas provocados por Turvo atingiu as 14 filhas de forma tão truculenta que até hoje, mesmo as que são casadas, não têm estrutura familiar ou conseguiram se realizar como mulheres ou profissionais. Com baixa autoestima, não se sentem bem ou bonitas, mesmo que alguém diga o contrário.
“Temos um bloqueio muito grande, dificuldade em confiar em alguém, enxergar sinceridade no que dizem. Pra você ter uma ideia, eu e todas as minhas irmãs viramos prostitutas em algum momento da vida. Algumas se prostituem até hoje. Acham que a intimidade já não vale mais do que um punhado de reais”, desabafa Sandra, sem velar o olhar pesaroso.
Saiba Mais
Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados.
A donzela de Bergman
Jungfrukällan e o embate entre paganismo e cristianismo
Lançado no Brasil como A Fonte da Donzela, Jungfrukällan, de 1960, é um clássico do cineasta existencialista sueco Ingmar Bergman. A partir da trágica morte de uma virgem cristã, o filme apresenta uma perspectiva sobre o embate entre paganismo e cristianismo na Suécia do Século XIV.
Logo no início, a selvagem e expressiva Ingeri (Gunnel Lindblom) surge como uma representação do pecado ao tentar invocar o deus pagão Odin. Em outro cômodo da casa, a imagem de Jesus Cristo crucificado mostra que aquele é um lar cristão. Tais cenas evocam a ideia de uma recente civilização cristã, que ainda convive e até mesmo flerta com o paganismo.
Enquanto a grávida Ingeri personifica o primitivismo e as falhas da natureza humana, o contraponto é a virgem cristã Karin (Birgitta Pettersson), a quem Bergman realça a beleza, transformando-a em um ícone de perfeição, pureza e inocência. Venerada pelos pais Töre (Max von Sydow) e Märeta (Birgitta Valberg), Karin consegue, inconscientemente, fazer com que a mãe odeie o pai. A justificativa é a identificação da filha com a figura paterna.
Os atos dos personagens parecem determinados por uma cortina de fé absoluta, às raias do fanatismo. Mas tudo começa a mudar quando Töre pede a Karin para levar velas para a missa. Ao longo da viagem, a frágil donzela é ludibriada por um grupo de pastores pagãos que a contagia com boa música campesina. Mais tarde, se revelam criminosos e a moça é estuprada e assassinada de forma impiedosa.
O crime acontece na primavera, que marca o fim de um período de trevas, segundo o folclore escandinavo. Conforme a estação do ano ilumina a natureza, transformando tudo em um paraíso multicolorido, o sacrifício de Karin joga luz sobre os maiores defeitos de uma família cristã. A antológica cena em que o pastor pagão esmaga as velas da jovem virgem é uma metáfora sobre a rejeição do cristianismo por uma parcela da população sueca.
Jungfrukällan é um filme que impressiona pela expressividade do elenco e por propor dúvidas de ordem metafísica. Bergman aborda fé, morte e redenção em um contexto onde há momentos em que os personagens mesmo calados e imóveis transmitem sentimentos. Em contrariedade, também os apresenta frios e protegidos por uma formalidade que visa manter as aparências e velar as imperfeições.