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Anjo da Morte pode ter morado em Graciosa em 1954
Pioneiros de distrito de Paranavaí suspeitam que médico nazista viveu no Seminário Imaculada Conceição
Em 1954, um grupo de criminosos armou uma emboscada para assassinar o comerciante Ludovico Selhorst na colônia germânica Graciosa, distrito de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Para não serem identificados, os homens usaram máscaras e se esconderam em uma roça de milho nas imediações do comércio de Selhorst.
À noite, assim que o comerciante ficou sozinho, aguardaram alguns minutos, atiraram nele e fugiram. Quando Ludovico caiu, quem estava próximo do local estranhou o barulho e correu até lá para saber o que aconteceu. “Ele foi atingido perto do braço e não teve tempo nem de ver de onde a bala saiu”, relata a pioneira Francisca Bruning Schiroff que à época tinha 19 anos. Os irmãos da vítima, inclusive Jacob Selhorst que era o delegado do distrito, foram os primeiros a socorrer Ludovico, assim como João Bruning, pai de Francisca, que pediu para alguém chamar um médico hospedado no Seminário Imaculada Conceição.
“Ficamos sabendo desse doutor. Só que ninguém sabia quem era”, conta a pioneira. Descrito como alto, forte e aparentando ter mais de 40 anos, o médico pouco comunicativo estancou o sangramento, aplicou um antibiótico injetável e o encaminhou para o Hospital Professor João Cândido Ferreira, conhecido como Hospital do Estado, em Paranavaí. Para transportá-lo, como não havia ambulância naquele tempo, o colocaram sobre um colchão em cima de um caminhão. A princípio, Ludovico reagiu bem, mas não resistiu e faleceu na manhã seguinte.
A suspeita é de que os envolvidos no assassinato trabalhavam explodindo pedreiras com dinamite. “Achamos que o crime foi cometido por homens contratados para retirarem pedras de um rio perto de Graciosa. Eles estavam atuando na construção do seminário e se desentenderam na hora do pagamento. Me parece que queriam receber mais, então é provável que tenha sido um ato de vingança”, declara Francisca.
A pioneira se recorda do dia em que o frei Bonaventura Einberger falou sobre a chegada de um médico alemão para ajudar os mais necessitados. “Explicou apenas que o médico, assim como ele, também participou da guerra. Como a gente era bem jovem, ninguém tinha coragem de perguntar demais. Além disso, o ‘frei Bona’ não gostava de comentar sobre a Alemanha do período nazista”, relata. Apesar do conhecimento básico de português, o médico não enfrentou nenhum problema no distrito, até porque nos anos 1950 muitos moradores de Graciosa se comunicavam mais em alemão do que em português.
“Ele se vestia com simplicidade, acho que até para não chamar a atenção. Só que era fácil perceber que não era um médico comum”, avalia Francisca que certo dia foi até o seminário acompanhada da mãe para se consultar com o alemão de quem ninguém sabia o nome.
O médico demonstrava muita experiência profissional, tanto que soube lidar com todos os problemas de saúde dos pacientes. “As consultas com ele eram rápidas e quem não sabia alemão ia acompanhado de um intérprete. Me recordo que a primeira pergunta dele para a minha mãe foi: ‘Como está se sentindo?’”, cita a pioneira.
Polido, parcimonioso e reservado, o médico atendeu praticamente todas as famílias que viviam em Graciosa em 1954. Ainda assim, um fato curioso chamou a atenção dos moradores. O misterioso alemão não registrava prescrições médicas em papel nem pedia que alguém o fizesse para que ele apenas assinasse. “Era tudo falado, de boca mesmo”, garante Francisca Bruning Schiroff.
No distrito, o médico auxiliava o frei Bonaventura na distribuição gratuita dos medicamentos enviados da Alemanha pela Caritas Internacional, entidade de promoção e atuação social que trabalha na defesa dos direitos humanos, da segurança alimentar e do desenvolvimento sustentável solidário. “Eles também levavam remédios para o frei alemão Ulrico Goevert em Paranavaí. Era uma assistência muito boa. Realmente fazia a diferença”, pondera a pioneira.
Após ajudar muita gente em situação de carência social, um dia o homem partiu. A notícia foi lamentada pelos moradores de Graciosa. “Ele ficou mais ou menos um ano aqui. Ninguém sabe exatamente quando chegou nem quando foi embora”, confidencia Francisca. No distrito, o médico morou em um pequeno quarto no Seminário Imaculada Conceição. Poucas vezes foi visto em outros locais.
Alguns meses depois, Lidia Selhorst, esposa de Ludovico Selhorst, e também falecida, foi surpreendida ouvindo rádio, quando o locutor noticiou que estavam procurando o médico nazista Josef Mengele, conhecido como Todesengel, Anjo da Morte. A descrição era a mesma do médico que morou em Graciosa. “Falaram que o Mengele tinha inclusive uma cicatriz perto do pescoço. Quando ele se abaixou para prestar atendimento ao Ludovico, a Lidia viu essa cicatriz”, enfatiza Francisca Schiroff.
Como o frei Bonaventura Einberger foi enfermeiro da Wehrmacht, Forças Armadas da Alemanha nazista, até o final da Segunda Guerra Mundial, pode ser que eles tenham se conhecido anos antes. “Não dá pra afirmar até que ponto o ‘frei Bona’ o conhecia, mas a partida do médico foi suspeita. Acho que o frei ficou com medo de alguma coisa e recomendou que o homem partisse para outro lugar”, supõe a pioneira.
“Ele preferia crianças, gêmeos e anões”
Nascido em 11 de março de 1911 em Günzburg, na Alemanha, Josef Mengele se tornou um dos personagens mais famigerados da Segunda Guerra Mundial. Discípulo do geneticista Otman von Verschuer, com quem trabalhou em Frankfurt, Mengele tinha um doutorado em antropologia e outro em medicina.
Em 1937, ingressou no Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) e se voluntariou para trabalhar na SS Medical Corps como pesquisador de genética no reassentamento da Província de Posen, na Polônia. O papel de Mengele consistia em preservar a pureza racial dos membros da Schutzstaffel (SS). Sendo assim, casamentos só eram aprovados após análises invasivas e estudos sobre a árvore genealógica da noiva.
Em 1942, enviaram Josef Mengele para atuar na Frente Leste como cirurgião da 5ª Divisão Panzer. Ferido em combate, teve de ser transferido para o Oeste. Na Alemanha, foi promovido a capitão e se juntou mais uma vez ao geneticista von Verschuer no Instituto Kaiser Wilhelm, onde se concentravam os maiores estudos de antropologia, hereditariedade e eugenia da Alemanha, temas com os quais Mengele se identificava muito.
No instituto, o médico seguiu uma hermética linha de pesquisa baseada na qualificação racial e limpeza étnica. O seu trabalho foi determinante na criação do Aktion T4, programa de eutanásia e esterilização voltado para a identificação de pessoas consideradas “inaptas a se reproduzir ou viver”.
Meses mais tarde, transferiram Mengele para a rede de campos de concentração de Auschiwtz-Birkenau, na Polônia. Com o apoio incondicional do governo alemão, realizou experiências com pessoas que ele mesmo escolhia e qualificava como fracas ou inúteis. Documentos do The National WWII Museum, de Nova Orleans, nos Estados Unidos, responsabilizam Josef Mengele pelo envio de 400 mil pessoas para as câmaras de gás dos campos de concentração. “Ele preferia crianças, gêmeos e anões, pessoas com quem ele fazia experiências sem qualquer tipo de remorso”, comenta o pesquisador e historiador estadunidense Tom Gibbs.
Von Verschuer e outros cientistas receberam de Mengele muitos cadáveres, órgãos, esqueletos e amostras de sangue de crianças judias e ciganas. “Ele gostava de ‘cortejar’ suas vítimas, tanto que oferecia melhores condições de moradia e alimentação. Também tinha o hábito de presentear crianças com leite e doces”, relata Gibbs.
Em janeiro de 1945, após a evacuação de Auschwitz-Birkenau, Mengele percorreu alguns campos menores até ser capturado. Ficou preso na Alemanha até junho do mesmo ano, quando conseguiu fugir para a Argentina com um nome falso. Mais tarde, partiu para o Paraguai e depois se mudou para o Brasil. Supostamente, Mengele morreu afogado em 7 de fevereiro de 1979 em Bertioga, no litoral paulista. No entanto, até hoje há pesquisadores que refutam o motivo e a data da morte.
Enterrado no Cemitério do Rosário, em Embu das Artes, na grande São Paulo, Josef Mengele teve os ossos exumados em 1985, quando uma equipe de especialistas do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo e da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP) confirmou a sua identidade. Em 1992, foi feita uma ratificação por meio de análise em DNA.
Saiba Mais
Há inúmeros relatos de moradores de Graciosa e de Paranavaí que viram o médico caminhando sozinho pelo Bosque de Graciosa em 1954.
O que também despertou a suspeita dos moradores de Graciosa é que o misterioso alemão raramente circulava pela área central do distrito.
A 137 quilômetros de Paranavaí, pioneiros de Mamborê, no Centro Ocidental Paranaense, afirmam que Josef Mengele, usando o nome de Josef Kanat, trabalhou como médico no então distrito de Campo Mourão em 1956.
No mundo todo, o médico nazista inspirou livros, filmes, documentários, músicas e programas especiais para a TV. No Brasil, a obra mais conhecida é o filme “Meninos do Brasil”, de 1978. Em 2013, a cineasta argentina Lucía Puenzo lançou o filme “Wakolda”, também inspirado na vida do médico, principalmente em sua passagem pelo Sul da Argentina.
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De Bamberg a Paranavaí
Enfermeiro da Segunda Guerra Mundial cumpriu missão e encontrou paz no Brasil
Depois de enfrentar as tragédias da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o padre e enfermeiro alemão Bonaventura Einberger veio a Paranavaí com a missão de construir um seminário em Graciosa, distrito de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Além de concluir o trabalho, adotou o Brasil como pátria e aqui viveu ao longo de 31 anos.
Em meados de 1953, o frei alemão Ulrico Göevert, que já vivia em Paranavaí, pediu para a Ordem dos Carmelitas na Alemanha enviar um padre apto a construir um seminário em Graciosa. “O frei Bonaventura mal chegou e já foi visitar propriedades nas imediações da igreja. Ali ele escolheu um sítio. No dia seguinte, começaram a derrubada da mata”, conta a pioneira Francisca Schiroff.
Entre o início da construção e a inauguração, passaram nove meses. A maior parte do investimento veio da Ordem dos Carmelitas da Alemanha. De acordo com Francisca, quase todos da comunidade ajudaram, mas o destaque maior foi o frei Bonaventura que viveu em função do Seminário Imaculada Conceição.
Antes de chegar a Graciosa, onde a quietude se contrastava apenas com o som preponderante da natureza, Einberger ainda mantinha fresca em suas lembranças os sons de bombas, metralhadoras e gritos exasperados, consequência de dores, na maioria das vezes, irremediáveis.
Tudo começou em meados da década de 1940, quando o frei Bonaventura foi convocado a compor um grupo de enfermeiros em um navio do Terceiro Reich. Segundo a pioneira, o padre cuidou de centenas de soldados alemães que se feriram na linha de frente.
A guerra fez com que Bonaventura Einberger perdesse o contato com os familiares, principalmente com os irmãos Otto Einberger, inspetor-chefe da SS (Schutzstaffel), unidade de elite da polícia nazista, e o caçula Heinrich Einberger, soldado do Exército alemão.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, Einberger desconhecia o paradeiro dos irmãos. “Otto, que tinha 38 anos, foi capturado pelo Exército soviético. Ele ficou oito meses em uma prisão russa próxima de Moscou, até que foi encontrado morto depois do fim da guerra”, revela Francisca, referindo-se ao fatídico dia 13 de outubro de 1945.
Bonaventura, inconformado com a morte do irmão, decidiu buscar o corpo para enterrá-lo em Bamberg, sua cidade natal. O corpo de Heinrich nunca foi encontrado e a única conjetura possível é a de que foi alvejado em um confronto terrestre com os soviéticos.
Em 1953, depois de perder os pais e os irmãos, surgiu uma oportunidade de deixar tudo para trás. Acompanhado pela cunhada e três sobrinhos, filhos do irmão Otto Einberger, o frei Bonaventura veio a Paranavaí. “Eles compraram um sítio de cinco alqueires aqui em Graciosa e fixaram residência, com exceção do frei que vivia no seminário”, garante Francisca.
Einberger era discreto e reservado
Quando chegou a Graciosa, o frei Bonaventura Einberger foi recebido por todos os moradores do distrito. “Ele falou muito obrigado em português”, relembra a pioneira Francisca Schiroff que durante décadas guardou um grande baú de madeira que pertenceu ao frei.
O objeto foi doado para a Fundação Cultural de Paranavaí e colocado em exposição no Museu Histórico de Paranavaí que funciona na Casa de Cultura Carlos Drummond de Andrade. “Ele trouxe grandes caixas de madeira. Veio com toda a mudança. A ideia dele já era se fixar aqui”, destaca Francisca.
Quando aprendeu a falar fluentemente em português, o frei Bonaventura visitou todas as capelas da região. “Ele ia a cavalo, não tinha pressa. Inclusive quando o animal ficava com fome e havia algo na beira da estrada, ele parava e deixava o cavalo comer. Tinha dó”, conta Francisca sorrindo. O equino foi o principal meio de transporte do frei durante sete anos, até que ganhou um jipe da Ordem dos Carmelitas.
Segundo a pioneira, Einberger era bastante amistoso e jamais teve qualquer tipo de inimizade. “Acho que todo mundo gostava dele justamente por não se envolver com política e assuntos familiares. Só ajudava quando lhe era solicitado, algo constante”, informa, referindo-se a uma época em que padre desempenhava papel de conselheiro.
No entanto, Bonaventura Einberger era bastante reservado e tímido. A pioneira conta que o padre era acanhado a ponto de evitar ser fotografado sozinho. “Me recordo também que festas para ele tinham de ser surpresa, do contrário, ele fugia”, enfatiza em tom de nostalgia.
Frei alemão adotou pátria brasileira
Quando, por curiosidade, questionavam o frei Bonaventura Einberger sobre as agruras vivenciadas durante a Segunda Guerra Mundial, a expressão do padre mudava na hora. Hesitante e apreensivo, se limitava a dizer que era algo horrível.
Einberger torcia para que qualquer guerra jamais chegasse ao Brasil, citando a experiência de ter visto tantas pessoas morrendo. “Falava também que viu muitas casas sendo bombardeadas, noite após noite”, reitera a pioneira Francisca Schiroff.
Quando o assunto era o Brasil ou nova pátria, como ele mesmo dizia, o frei Bonaventura, com um sorriso cândido e olhar profundo, afirmava que não errou em escolher um país que tem tudo para estar entre os melhores do mundo. “Dizia que aqui é muito bom para se viver. Era algo muito sincero, tanto que ele esteve com nós até o dia de sua morte”, lembra a pioneira Francisca Schiroff emocionada.
O frei Bonaventura Einberger faleceu em 14 de novembro de 1984, aos 80 anos, em decorrência de algumas complicações envolvendo rins, pulmão e coração. “Agradecemos por ele não ter ficado muito tempo acamado. Foi uma grande perda, ainda mais se tratando de uma pessoa que dedicou sua vida ao povo de Graciosa e de Paranavaí”, enfatiza Francisca.
Saiba Mais
O frei Bonaventura Einberger está enterrado na cripta da Igreja São Sebastião em Paranavaí.
Ele nasceu em Bamberg no dia 15 de fevereiro de 1904 e se tornou sacerdote em 29 de junho de 1929.
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