Você que é o vegano?
Uma amiga que eu não via pessoalmente há mais de três anos me convidou para ir até a sua casa na semana passada. Enquanto conversávamos na varanda, seu pai chegou com dois peões. Ele é pecuarista e estavam descarregando pedaços de um boi morto. Havia tanta carne que eu seria incapaz de dizer a quantidade. Encheram dois freezers. De repente, o homem tirou o chapéu da cabeça e sorriu.
— Você que é o vegano?
— Creio que sou um.
— No meu tempo não existia essas coisas.
— Tem certeza?
— Olhe que tenho.
— Acho que não, senhor. Sempre tivemos pessoas que não se alimentam de animais. A história da humanidade está repleta deles. A diferença é que essa faceta da vida de muitos foi ignorada. O veganismo, por exemplo, existe formalmente desde 1944. É um bom tempo, não?
— Hummm…é…mas não consigo entender o que tem de errado em comer carne. É parte de quem somos, da nossa história. Minha família cria gado há cinco gerações, e somos bons na lida com eles. Não deixamos faltar nada.
— Não duvido. Mas o senhor analisa a situação do ponto de vista humano ou não humano?
— Como?
— O senhor disse que é bom pra eles. Mas o que é bom pro gado? Será que o bom pro gado é o bom pra eles ou o bom pra nós?
— Aí você tá de sacanagem comigo.
— Não, de modo algum. Falo honestamente.
— Olhe, menino, a gente cuida bem deles a vida toda.
— Mas no final eles morrem?
— Claro, as pessoas precisam de carne.
— Precisam?
— O que você quer dizer com isso?
— Eu pareço doente para o senhor?
— Não, tá melhor que meus peões — comentou sorrindo.
— Então, e estou aqui vivo sem me alimentar de animais.
— Mas aí é uma opção sua. Tem gente que opta por comer os animais e o que eles oferecem.
— Sim, a princípio é uma opção, mas que deixa de ser vista dessa forma quando há o entendimento de que os animais não escolheram morrer. Veja bem, como comer animais pode ser uma opção se ninguém levou em conta os interesses deles?
— E boi lá tem interesse, rapaz? O boi é a gente que cria e molda do nosso jeito.
— Mas o senhor já viu um animal desejando a morte? Algum deles deita a cabeça calmamente para receber uma pancada ou um tiro de pistola pneumática? Eu nunca vi.
— Ai ai ai. Que conversa é essa. Acho que a gente pensa diferente.
— Pois é.
— Minha filha agora anda com essas conversas também. Você que andou fazendo a cabeça dela?
— Pare, pai. Que pergunta!
— Bom, eu não creio que eu faça a cabeça de ninguém, eu ofereço possibilidades de reflexão. Mostro outra face da realidade da exploração de animais, e sempre tenho o cuidado de fazer isso sem agredir ninguém.
— E você me acha ruim por ser pecuarista?
—Não, mas acho que seria interessante o senhor refletir um pouco sobre a pecuária de um ponto de vista que não envolva lucro, costume, essas coisas. Pense fora da sua zona de conforto. Te convido apenas a se colocar no lugar, por exemplo, desse boi que hoje se resume a porções dentro do freezer. Ele era dócil? Gostava de sentir o sol? O vento? Se relacionava com os outros animais? Uma vida, por mais que ela seja subestimada, nunca é somente uma vida, há todo um conjunto de fatores que a envolve. Quando um animal morre, eu me pergunto se ele tinha desejos, se alguém vai sentir sua falta. Imagino que o senhor já tenha acariciado alguns desses animais.
Um dos peões começou a rir e o homem chamou-lhe a atenção.
— Acaricio todos eles. Trato que nem gente da família.
— Hum, mas se o senhor trata como gente da família, por que mata eles?
— Eles vivem pra isso, menino. É a vida. Vamos deixar esse papo pra outro dia que tenho que dar tarefa pra esses peões. Mas fique à vontade, só não coloque minhoca na cabeça da minha menina — disse sorrindo.
— O senhor sabe que eles têm potencial para viver muito mais. É a objetificação que mata, o fato de resumir um ser vivo a pedaços de carne.
— Sei não, filho. Talvez. Outra hora a gente conversa. Mas te respeito por defender essa sua filosofia de vida e não abaixar a cabeça durante a conversa.
— Certo. Muito obrigado.