David Arioch – Jornalismo Cultural

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Anu-preto, o sentinela de cauda cor de canela

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Ele saltava e corria com astúcia, mantendo o bico levemente inclinado para cima e os olhos no horizonte

Coquinho que o anu marrom me deu quando eu ainda era criança (Foto: David Arioch)

Coquinho que Marrom me deu quando eu ainda era criança (Foto: David Arioch)

Acredito que tenho sorte de nunca ter sofrido nenhum acidente sério na infância. Nem mesmo quebrei braço, perna ou qualquer outro membro. O que era visto até como anormal na minha rodinha de amigos peraltas. Um dia nos encontramos e cada um disse de que forma já tinha se machucado e quais foram as maiores consequências.

Alguns se orgulhavam de suas cicatrizes e contavam histórias fantasiosas. Na realidade, bem duvidosas. “Ah! Essa aqui na minha perna eu ganhei depois de lutar com um doberman gigante que morava ao lado da casa da minha vó, na Rua Maranhão. Ele me mordeu e eu mordi ele. Ainda fiz dele o meu cavalinho. Hoje, sempre que me vê, ele abaixa o focinho em sinal de respeito”, narrou Henrique com sete anos em 1992.

Naquele ano, Júlio chamou eu e meu irmão Douglas para irmos à sua casa na Avenida Juscelino Kubitschek brincar de pega-pega. Numa das fugas, comecei a circular em torno de uma lixeira presa à calçada. Por descuido, bati a cabeça na quina de ferro e senti a astenia tomando conta do meu corpo. A visão ficou ligeiramente turva e o sangue escorreu pelos meus cabelos, rosto e blusa de moletom.

A poucos metros de distância, no cruzamento com a Rua Chozo Kamitami, enquanto o Seu Roberto, pai de Júlio, tirava o carro da garagem para me levar ao Hospital São Lucas, notei um anu-preto me observando e soltando um pio sibilante. As penas de sua cauda lustrosa se abriam e se fechavam. Quando saímos, olhei pela janela e ele ainda continuava lá, mas já não emitia nenhum som.

No hospital, deitei numa cama e tive a minha primeira experiência com a sutura. Em 15 dias, logo que os poucos pontos foram retirados, fiquei passando a mão, sentindo a lombadinha ainda sensível. Era a minha mais importante cicatriz e todos podiam ver a pequena área raspada com navalha. Curiosos, meus amigos pediam para que os deixasse encostar o dedo. “Que massa, David! Eu nunca tinha visto uma cicatriz na cabeça!”, comentou Thiaguinho.

Durante a minha recuperação, nos reuníamos todos os dias de manhã na Rua Artur Bernardes, no Jardim Progresso, perto da Sanepar. Sentávamos no meio-fio em frente de casa e assistíamos a revoada de um grupo de anus-pretos, moradores de um enorme terreno coberto por matagal. Havia tanta vegetação que nem o muro de quase dois metros de altura impedia que o verde se esforçasse para ultrapassar os limites do cercado de lajotas. Meu avô dizia que a família de anus estava lá antes do surgimento do bairro.

“Esses aí são descendentes dos primeiros que já viviam aqui quando tudo isso era floresta. Eles continuam morando aí porque é onde se sentem mais seguros”, contou. Às vezes eu pendurava sobre o muro para observá-los. Rapidamente notavam minha presença e se aninhavam, protegendo as fêmeas e seus ovos azuis-esverdeados. Suas penugens não eram simplesmente pretas e uniformes. Tinham tons amendoados por causa da terra que pincelava o capim-melado e por consequência suas penas em dia de chuva intensa.

O líder do bando possuía cauda cor de canela, e foi assim que o reconheci como o anu-preto que piou em minha direção no dia em que me machuquei. Ele não era o maior, mas nas muitas vezes que o assisti sempre me pareceu o mais observador. Os outros companheiros nem se incomodavam quando ele saltava e corria com astúcia sobre eles, mantendo o bico curvado levemente inclinado para cima e os olhos no horizonte.

Sempre que algum pássaro estranho ou outro bando de anu invadia o terreno, ele emitia um sinal sonoro curto e estrídulo, preparando os companheiros para uma ofensiva. Ao se deparar com até 15 anus-pretos em estado de alerta, o invasor, em grupo ou sozinho, normalmente não ficava mais de um minuto no terreno, um pedacinho de bosque que contrastava com a urbanidade ainda plácida das quatro vias que o cercava.

Não foram poucas as ocasiões em que vi os anus empoleirados sobre uma árvore se comunicando como se estivessem conversando. Suas vozes mudavam com tanta frequência que eu tinha a impressão de que faziam pilhérias. À tarde, sempre que o sol se lançava sobre os galhos e ramagens de uma sete copas, facilmente observada da janela da sala de casa, eu via três ou quatro anus-pretos se banhando com a luz solar.

Ocasionalmente levantavam a cabeça, abriam as asas e as chacoalhavam. As penas lucilavam com tanta graça que eles reconheciam o seu esplendor ao verem o próprio reflexo no bico reluzente do companheiro mais próximo. Daí estufavam o peito e cantavam em sequência, cobrindo as lacunas de silêncio deixadas pela ausência do vento. Só partiam quando a brisa se intensificava ou o sol se distanciava.

Mais tarde, mudamos para a Rua Sílvio Meira e Sá Bezerra. A minha nova rotina me impedia de ver os anus-pretos com frequência, tanto que cheguei a ficar quase um mês sem visitar o lugar. Num sábado, retornei ao terreno, subi em uma ripa e pendurei sobre o muro. Tive uma grande surpresa. Não havia nenhum anu-preto ou vegetação, apenas um enorme vazio que marcava o fim de uma história iniciada antes da chegada do primeiro pioneiro àquela área.

Percorri as ruas do Jardim Progresso e Jardim Paulista até ser vencido pela estafa. Queria encontrar o bando de Marrom, apelido que dei ao líder dos anus-pretos por causa da sua cauda acanelada. Não encontrei nenhuma pista. Era como se eles nunca tivessem vivido naquele lugar. Fiquei confuso e não me conformei com o fato de que nunca mais ouviria seus cantos maviosos ou veria seus olhos negros – ora escabreados, ora complacentes.

Bati palmas em algumas casas das redondezas para pedir informações. A maioria não se importava ou não fazia questão de me ajudar. “Isso aí traz coisa ruim, mau agouro, morte. Não é coisa de Deus. Foi bom que sumiram daqui”, declarou uma senhora que morava numa casa branca na esquina da Rua Artur Bernardes.

Meses depois, em uma tarde, escorreguei no piso molhado e bati a cabeça no chão quando minha mãe e minha tia Paula estavam lavando a garagem. Levantei estonteado, só que tive a impressão de que estava tudo bem apesar da pancada. Ledo engano. Coloquei a mão na cabeça e senti o sangue fluindo aos pouquinhos. Então chamaram meu pai, abriram o portão e me levaram ao Pronto Socorro.

Curativo feito, retornei para casa e sentei na calçada com as costas escoradas no portão. De repente, ouvi um canto curto e intervalado vindo de uma árvore do outro lado da rua. Olhei para o alto e vi Marrom. Me aproximei e notei que seu bico estava levemente deformado, mas cicatrizado, como se tivesse sido ferido há bastante tempo.

Cheguei mais perto e estendi a mão direita. No mesmo instante o pássaro abriu o bico e me lançou um coquinho que caiu na palma da minha mão. A fechei e desci da árvore. Continuei lá um bom tempo enquanto Marrom estufava o peito e cantava sozinho para o seu único espectador. Me contentava em saber que ele estava vivo, mesmo que eu estivesse imerso no desconhecimento de seu destino.

Antes de partir, emitiu um último som agudo que fez algumas folhas vibrarem e voou. Cada vez mais alto, se afastou do meu diminuto campo de visão. E sua cauda acanelada pelo capim-gordura, banhado em água de chuva e solo arenoso, desapareceu na esquina da Rua Sílvio Meira e Sá Bezerra, onde Marrom foi visto pela última vez.

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A arte de esculpir com restos

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Antonio de Menezes cria escultura para conscientizar sobre o câncer de mama

Obra "Toque Feminino" destaca a universalidade feminina (Foto: David Arioch

Obra “Toque Feminino” destaca a universalidade da mulher (Foto: David Arioch

Já tem alguns anos que o artista plástico Antonio de Menezes Barbosa, de Paranavaí, no Noroeste Paranaense, descobriu em galhos caídos e restos de madeira uma forma bem peculiar de fazer arte. Desde então, concebeu dezenas de peças que instigam reflexões e transmitem as mais diversas mensagens – algumas bem simples e objetivas, outras mais reflexivas e subjetivas.

As obras do artista já foram vistas e elogiadas em cidades do Paraná e da Itália. Motivado pela repercussão do trabalho, Barbosa ampliou o acervo. Dentre as peças mais novas está a escultura “Toque Feminino”, criada à base de raiz de guaritá, sibipiruna e jabuticaba. “Os restos de guaritá me deram em Mirador [também no Noroeste do Paraná]. O seio da personagem fiz com raiz de angico”, diz.

Antonio de Menezes: "Quis retratar a preocupação feminina na hora do toque. É um momento de sensibilidade."

Antonio de Menezes: “Quis retratar a preocupação feminina na hora do toque. É um momento de sensibilidade.” (Foto: David Arioch)

A iniciativa de criar a escultura sem rosto transmite a ideia da universalidade feminina, já que independente da aparência, das características físicas, todas as mulheres precisam se cuidar para evitar o câncer de mama. “Quis retratar a preocupação feminina na hora do toque. É um momento de sensibilidade”, conta Antonio de Menezes que fez o acabamento dos cotovelos e mãos da personagem com cola e pó de serra, ressignificando o caráter físico de unidade.

A peça, que sob formas rústicas evidencia a força em um momento de fragilidade, levou um mês para ficar pronta. “Foi feita aos poucos. Poderia ter concluído em uma semana, mas optei por uma criação com intervalos”, admite. O artista aproveitou a inspiração para conceber com raiz de angico branco a escultura isolada de um seio gotejando vermelho, branco, verde, preto e marrom, numa simbologia pluri-semântica de amor, força, alimento, carinho, aconchego e luto, além de outros sentimentos e emoções que ficam a critério do espectador.

Artista plástico trabalha com matérias-primas que muitos consideram "restolhos".

Escultor trabalha com matérias-primas que muitos consideram “restolhos”. (Foto: David Arioch)

“É uma representação modesta e fragmentada da mulher como heroína e sobrevivente. Trata-se do legado feminino ao longo da existência”, explica Barbosa que se pautou no tema com a intenção de despertar a conscientização. Falando sobre sentidos, uma peça que chama atenção é a inominada orelha híbrida de castanha-do-pará, jabuticaba e sibipiruna, criada num misto de homem e gado da raça gir. “É só olhar para baixo que você vê ainda um pé humano e um pé de dinossauro”, sugere sorrindo e apontando para a base. A obra explora a relação do homem com o animal em uma caminhada de amor e ódio com direito a se observar, se ajudar e se devorar.

As criações não param por aí. Mesmo quem visita o artista plástico regularmente se surpreende com a sua facilidade em criar esculturas a partir de sobras, matérias-primas consideradas “restolhos”. Não é à toa que o atelier ficou pequeno em meio a diversidade de dezenas de peças. “Quando se trata de criar algo, não sigo nada. Simplesmente sento e faço”, confidencia em referência a motivação espontânea para produzir.

Sem se preocupar com a reação do público, Barbosa encara as próprias obras como extensões materiais de sua concepção e interpretação de mundo, além de sonhos, visões e reminiscências. Em momento de nostalgia, lembra que se apaixonou por objetos voadores aos cinco anos, quando viu pela primeira vez um garoto soltando pipa em meio a uma ventania. Isso justifica porque criou tantas réplicas de aviões e helicópteros em miniaturas e até em tamanhos reais.

Barbosa se apaixonou por objetos voadores aos cinco anos (Foto: David Arioch)

A paixão por objetos voadores surgiu aos cinco anos (Foto: David Arioch)

Exibe com orgulho algumas peças que remetem aos brinquedos de madeira de antigamente. Sobre uma pequena mesa, faz questão de desempoeirar e alinhar cuidadosamente um 14-Bis. Não quer que o avião feito de sobras de peroba, coco da bahia, macaúba, guaiçara, amarelinho e cumaru saia mal na foto. O mesmo vale para o biplanador e helicópteros confeccionados com coco, garapa, pau-brasil, peroba, bambu, coquinho e raio de motocicleta.

No dia 16 de outubro, quarta-feira, o artista inaugura uma nova exposição em Inajá [a 66 quilômetros de Paranavaí]. “Gostaria que as pessoas reconhecessem nas artes plásticas um aliado para despertar as habilidades dos jovens para as áreas profissionais. Por meio de uma simples peça, um estudante pode demonstrar dom para algum ramo da engenharia, por exemplo”, comenta.