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Reclus: “Quais são os alimentos que parecem corresponder melhor ao nosso ideal de vida e beleza? Tudo aquilo que é obtido sem a necessidade de matar”
“Quais são os alimentos que parecem corresponder melhor ao nosso ideal de vida e beleza, tanto em sua natureza como em seus métodos de preparação?
São aqueles que desde sempre foram apreciados pelos homens de vida simples – grãos, vegetais, frutos, etc. Tudo aquilo que é obtido sem a necessidade de matar.
O cavalo e a vaca, o coelho e o gato, o cervo e a lebre, o faisão e a cotovia têm condições de nos agradar mais como amigos do que como carne. Por isso queremos preservá-los como companheiros que gozam os prazeres da vida e da amizade.”
Excerto de “À propos du végétarisme“, do francês Elisée Reclus, considerado um dos maiores geógrafos do século 19. A obra foi publicada originalmente em 1901.
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Élisée Reclus :“Não é um equívoco relacionar os horrores da guerra com o massacre do gado”
“A porca chorava sem cessar, e de vez em quando soltava gemidos tão desesperadores que parecia simular a fala humana”
Considerado um dos maiores geógrafos do século 19, o francês Élisée Reclus é o autor da obra-prima “Nova Geografia Universal: a Terra e os Homens”. Composto em 19 volumes, o trabalho exigiu quase 20 anos de dedicação. Embora sua principal contribuição tenha sido na área da geopolítica, Reclus foi um ativista vegetariano que em 1901 publicou “À propos du végétarisme”, um ensaio impactante sobre o vegetarianismo e os direitos animais.
Modesto, Élisée Reclus diz que escreveu o ensaio para transmitir suas impressões pessoais que, de algum modo, coincidem com a de muitos vegetarianos. “Me moverei dentro do círculo de minhas próprias experiências, parando aqui e ali para fazer alguma observação sugerida pelos pequenos incidentes da vida”, informa.
Quando o francês ainda era um garotinho, ele foi enviado para buscar um pedaço de carne no açougue da aldeia. Com toda sua inocência, procurou alegremente fazer o que lhe pediram. “Entrei no pátio onde estavam os matadouros. Ainda me recordo desse lúgubre quintal onde homens assustadores andavam de um lado para o outro com grandes facas. Eles enxugavam o sangue em suas próprias blusas. Pendurada sob um alpendre, uma enorme carcaça me parecia ocupar um espaço extraordinário. De sua carne branca, um líquido avermelhado escorria pelas sarjetas”, conta.
Tremendo, Reclus notou que o pátio estava repleto de sangue. Se viu incapaz de seguir adiante ou de fugir. Mais tarde, soube apenas que desmaiou e um açougueiro o levou até sua casa. O francês narra que ele não pesava mais do que um dos cordeiros que o homem abatia todas as manhãs. As cenas vividas no matadouro jamais foram esquecidas, assim como as lembranças dos porcos criados pelos camponeses que atuavam como açougueiros amadores. Segundo Reclus, eles conseguiam ser mais cruéis que os açougueiros profissionais. “Lembro-me de um deles sangrando o animal lentamente, de modo que o sangue escorria gota a gota, pois para fazer pudins negros, eles dizem que é preciso que o animal tenha sofrido bastante. A porca chorava sem cessar, e de vez em quando soltava gemidos tão desesperadores que parecia simular a fala humana. Era como ouvir uma criança”, relata.
Élisée Reclus não conseguia evitar de enxergar o ser humano como um animal traiçoeiro na sua relação com os animais. Cita como exemplo os porcos criados como membros de família por um ano ou um pouco mais antes de serem enviados para o abate. “Mimado, ele cresce gordo e retribui com afeição sincera todo o cuidado dispensado a ele. Mal sabe que sua criação tem apenas um objetivo – muitos centímetros de tiras de bacon.[…] Quando o afeto é retribuído pela boa mulher que cuida do porco, acariciando-o, e conversando carinhosamente com ele, ela é considerada ridícula, como se fosse absurdo e até degradante amarmos um animal que nos ama”, reclama.
O francês dizia que não era necessário ir longe para contemplar os horrores dos massacres que constituem a diária alimentação humana. Segundo o geógrafo vegetariano, especialmente quem viveu em cidades provincianas, teve a oportunidade de ver esses atos bárbaros cometidos em nome do consumo de carne. Se a princípio são imagens que chocam na tenra idade, com o tempo tal sentimento desaparece. As pessoas cedem diante da infeliz influência da educação diária, que tende a conduzir o indivíduo a reconhecer como normal algo que não deveria ser.
“Isso tira tudo o que se destina à formação de uma personalidade original. Os pais, professores, oficiais, médicos, amigos, para não falar do poderoso indivíduo que chamamos de ‘todos’, trabalham juntos para endurecer o caráter da criança com respeito a este alimento de quatro patas que, no entanto, ama como nós, sente como nós e, sob nossa influência, progride ou regride como nós”, defende.
Os animais reduzidos à carne estão tão distantes de sua vocação natural que muitos deles talvez nem se reconheçam como parte genuína de uma espécie. Para corroborar essa reflexão, Reclus faz referência ao bovinos que, com muitas dificuldades de locomoção, habitam os pastos do mundo: “Eles foram transformados pelos criadores de gado em massas ambulantes de formas geométricas, como se projetados de antemão para a faca do açougueiro. É para a produção de tais ‘monstruosidades’ que aplicamos o termo ‘reprodução’. É assim que o homem cumpre a sua missão como educador, em relação aos seus irmãos, os animais.”
Observando e estudando o comportamento animal, o geógrafo francês chegou à conclusão de que para a manutenção do nosso hábito de comer carne, até mesmo a inteligência animal é visceralmente degradada. É inevitável por causa do estilo de vida antinatural imposto a eles. Ademais, Reclus via uma grande contradição estética nos açougues. Em tempos de festas, era comum se deparar com carcaças desarticuladas e pedaços de carne decorados com guirlandas rosas.
“Não é um equívoco relacionar os horrores da guerra com o massacre do gado e os banquetes de carne. A dieta dos indivíduos corresponde precisamente às suas maneiras. O sangue exige sangue”, declara Élisée Reclus, referindo-se à ferocidade humana e a irreflexão na hora de suplantar o inimigo. Traçando um paralelo, ele faz menção ao fato de que na guerra é muito comum os feridos serem mortos e os prisioneiros serem obrigados a cavarem suas próprias sepulturas antes de serem alvejados a tiros.
“Quem são esses espantosos assassinos? São homens como nós, que estudam e leem como nós, que têm irmãos, amigos, esposa ou namorada. Mais cedo ou mais tarde, corremos o risco de encontrá-los, de tomá-los pela mão sem ver nenhum vestígio de sangue nela. Mas não há alguma relação direta de causa e efeito entre os alimentos desses carrascos que se chamam de agentes da civilização?”, questiona.
Valendo-se de suas pesquisas, o geógrafo vegetariano argumenta que aqueles que incentivavam as guerras tinham o hábito de elogiar a carne que sangra, a considerando geradora de saúde, força e inteligência. Essas mesmas pessoas entravam nos matadouros, onde o pavimento era sempre vermelho e escorregadio, sem sentir qualquer repugnância. Lá, respiravam o doentio e doce odor do sangue.
“Existe então tanta diferença entre o cadáver de um novilho e o cadáver de um homem? Os membros amputados, as entranhas que se misturam umas às outras, são muito parecidos. A matança do primeiro facilita o assassinato do segundo, especialmente quando a ordem de um líder soa, de longe, como as palavras de um mestre coroado: ‘Seja impiedoso!’”, enfatiza Reclus.
No ensaio “À propos du végétarisme”, quando discorre sobre a violência nas guerras, o geógrafo compara o racismo com o especismo. Usa como referência as invasões ocidentais no oriente, principalmente na Ásia, onde a vida de um oriental não tinha o mesmo valor que a vida de um homem branco, na perspectiva predominantemente europeia. “Não é nossa moralidade, como aplicada aos animais, igualmente elástica? Ouvir cães rasgando uma raposa ensina ao cavalheiro como fazer seus homens perseguirem um fugitivo chinês. Os dois tipos de caça pertencem a um mesmo ‘esporte’”, lamenta.
Saiba Mais
Élisée Reclus nasceu em 15 de março de 1830 em Sante-Foy-la-Grande, no Departamento de Gironde, e faleceu em Torhout, na Bélgica, em 4 de julho de 1905 em decorrência de uma doença cardiovascular.
Referências
Reclus, Elisée. À propos du végétarisme (1901). Mazeto Square (2016).
Cornuault, Joël. Élisée Reclus, géographe et poète. Eglise-Neuve d’Issac (1995).
Chisholm, Hugh. Reclus, Jean Jacques Elisée. Encyclopædia Britannica. Cambridge University Press (1911).
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