David Arioch – Jornalismo Cultural

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Jean Vigo, um dos cineastas que mais me emocionou

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Jean Vigo faleceu com apenas 29 anos em decorrência de tuberculose (Foto: Reprodução)

Jean Vigo, um dos cineastas que mais me emocionou, é praticamente desconhecido por quem não conhece o realismo poético, o cinema francês pré-nouvelle vague. Houve uma época da minha vida que fiquei tão imerso em suas obras que assisti tudo que ele produziu e comprei todos os livros de referência sobre a sua vida.

Lembro que me comprometi em escrever sobre ele, mas fiquei tão comovido que acabei fazendo justamente o oposto – nada. Até hoje, não escrevi nada sobre ele. Me senti mal mesmo pelo seu trágico final. Jean Vigo era um sonhador, morreu com 29 anos e não teve nenhum tipo de reconhecimento em vida.

Aquilo me surpreendeu sobremaneira. Quando terminei de assistir e de ler tudo que encontrei sobre ele, refleti: “Sim, Jean Vigo era um artista intenso, e por isso vocês não podem resumi-lo a quatro obras e dizer que aquilo era o que ele tinha a oferecer ao mundo. O cara estava apenas começando. Ele exalava vida, sublimidade, alegorias, simbologias, lirismo. Em seu tempo, era o mais genuíno dos poetas do cinema francês, Ademais, quem exala vida não poderia morrer dessa forma.”

Ele deixou trabalhos promissores, que provavelmente teriam revolucionado muito mais o cinema. Vigo faleceu depois de lançar “L’Atalante”. Este filme, que marcaria o princípio da sua carreira profissional, a sua própria estilística cinematográfica, foi eleito um dos melhores da história do cinema em algumas pesquisas.

O mais paradoxal disso tudo é que “L’ Atalante”, que narra uma história de amor e seus conflitos, passou por modificações, alterações que não foram feitas nem desejadas por ele. Logo é uma obra descaracterizada, não fidedigna. Sim, Vigo está ali, mas não puramente ou tão liricamente. Não se mexe em um poema audiovisual. Isso é obliteração.

Vigo influenciou outro de meus cineastas preferidos – François Truffaut, que eternizou uma das mais belas cenas do cinema – aquela em que os estudantes correm pelas ruas de Paris e são acompanhados pela câmera, num dos momentos mais bucólicos e eletrizantes de “Les 400 Coups”. Esta referência vem do primeiro filme ficcional de Vigo. intitulado “Zéro de conduite”.

O jovem Jean Vigo viveu intensamente, mas não colheu os frutos de seu trabalho. No leito de morte, foi tratado como um ninguém, um pária. Morreu da mesma forma que nasceu, como um rejeitado, um injustiçado indesejado em um mundo já conturbado e ensoberbado. Acabou vitimado por uma tuberculose que o perseguia desde a infância, gestada no seio das precárias condições de vida.

Apesar de tudo, é curioso reconhecer como somos capazes de mergulhar na vida de uma pessoa com quem nunca tivemos contato direto. É o poder da arte. O tempo passou, mas sinto como se Vigo ainda fosse muito real, e continuasse exalando vida, vivendo imaterialmente, mesmo que ele tenha partido em 5 de outubro de 1934.

Written by David Arioch

December 4th, 2016 at 4:45 pm

O incompreendido e seminal Truffaut

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Les quatre cents coups, uma autobiografia à François

Antoine Doinel, uma criança que se refugia em livros (Foto: Reprodução)

Les quatre cents coups, que no Brasil ganhou o título de Os Incompreendidos, é um filme de 1959, do surpreendente François Truffaut. Ícone da Nouvelle Vague, a obra mostra os conflitos vivenciados por uma criança dividida entre uma existência pueril, alimentada por sonhos, e uma contumaz e gélida realidade doméstica.

A obra de François Truffaut, subjetivamente autobiográfica, mostra as belezas e as dificuldades que volatilizam o universo de um garoto em constante conflito familiar. O protagonista, Antoine Doinel, interpretado por Jean-Pierre Léaud, é uma criança que se refugia em livros para se sentir mais humana e mais viva, como se fizesse parte da casta dos literatos que tanto admira, entre eles o prolífico realista Honoré de Balzac.

Filme se tornou ícone da Nouvelle Vague (Foto: Reprodução)

Na história, o cineasta apresenta uma figura paterna impotente, fragilizada e subserviente. Em suma, às raias da insignificância. Já a materna, é alheia ao contexto familiar, rendida à superficialidade, egoísmo, egocentrismo e individualismo. No filme, François Truffaut rompe o paradigma de um mundo em que os pais vivem em função dos filhos, o que acidentalmente justifica o título brasileiro.

Para saturar a inexistência de qualquer distinção entre crianças e adultos, Truffaut mostra pais e professores conversando com seus filhos e alunos de forma igualitária, como se não houvesse distinção de faixa etária –  o que também remete ao clássico Zéro de conduite (Zero de Conduta), de Jean Vigo, assim como a cena antológica dos estudantes correndo pelas ruas de Paris. A natureza bucólica e espontânea das crianças ganha espaço apenas nos momentos em que estão sozinhas, oclusas em um universo de complacência e liberdade.

Les quatre cents coups é um grande marco do cinema francês e dignifica de modo seminal a estética cinematográfica de Truffaut, autor que jamais precisou apelar para o sentimentalismo ou recursos sofisticados para encantar os espectadores.