David Arioch – Jornalismo Cultural

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Um filme sobre o fim da liberdade romani

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A história de uma família roma que foi perseguida durante a Segunda Guerra Mundial 

Korkoro se passa na França em 1943 (Foto: Reprodução)

Korkoro se passa na França em 1943 (Foto: Reprodução)

Lançado em 2009, Korkoro, palavra romani que significa sozinho, é um filme do cineasta franco-argelino Tony Gatlif que retrata a realidade de uma família roma que perdeu a liberdade enquanto viajava pelo interior da França em 1943, quando o país estava sob o domínio Vichy.

Logo no início, a música, a paisagem bucólica e o lirismo introduzem o espectador a uma cena em que as notas de um piano são representadas pela movimentação de arames farpados em paralelo. A princípio, a única perspectiva real que se tem é de um primeiro plano enuviado pelas incertezas de não sabermos o que há antes e depois daquela divisa. É um prólogo referencial do estilo de vida nômade.

Tony Gatlif apresenta uma família romani composta por pessoas de personalidades bem distintas, mas que carregam na essência algumas afinidades que envolvem companheirismo, abnegação, hospitalidade, amor à música, fé e desapego material. Não é uma obra que se limita a combater estereótipos ou simplesmente construir uma imagem bonita sobre a cultura cigana. É bem mais do que isso. Em alguns casos, Gatlif ironiza os clichês justamente para reforçar uma ideia ou parodiar um pensamento comum obtuso.

Tony Gatlif não se limita a combater estereótipos (Foto: Reprodução)

Tony Gatlif vai além do combate aos estereótipos (Foto: Reprodução)

Em uma das viagens, o cigano Taloche (James Thiérrée) percebe que estão sendo seguidos por um garoto – Claude (Mathias Laliberté). Sem família, o menino se junta a eles. Durante o percurso, colocam saquinhos de estopa nas patas dos cavalos para não deixarem rastros. Quando chegam a um vilarejo, onde montam acampamento, são informados de que o nomadismo está proibido em todo o território francês, sob pena de prisão.

Então uma professora, Mademoiselle Lundi (Marie-Josée Croze) – partisan, integrante da resistência francesa, sugere que eles parem de viajar até o fim da guerra. Por ora, continuam no local, embora não tenham planos de fixar residência. Na escolinha, um dos estudantes comenta com Claude, a quem Taloche chama ironicamente de Chororo (garoto pobre), que os romani roubam crianças. Admirador dos ciganos, o ignora.

O filme é pautado por muita música do início ao fim, corroborando a ideia de que não há vida sem música no mundo roma. Bem comunicativos, os ciganos vão até o centro comercial do vilarejo vender produtos e oferecer serviços. Na tentativa de ganhar algum dinheiro consertando panelas, Taloche diz em tom bem humorado: “Todos têm utensílios com buracos em casa, o que acontece é que às vezes os buracos estão escondidos.”

Mademoiselle Lundi é uma professora que faz parte da resistência francesa (Foto: Reprodução)

Mademoiselle Lundi, professora que faz parte da resistência francesa (Foto: Reprodução)

Em uma cena, o médico veterinário e prefeito do vilarejo, Théodore Rosier (Marc Lavoine), socorre um dos cavalos do acampamento na ausência dos ciganos. Por azar, Rosier é mordido pelo animal e cai com o braço ensanguentado. Pouco tempo depois, chegam para socorrê-lo. Enquanto uns cuidam de seu ferimento, outros prestam atendimento ao equino. Movidos pela fé, tradição e superstição, tratam do braço do veterinário com uma pasta de estrume. Ao mesmo tempo, oram pelo cavalo caído que em um rompante se levanta como se jamais tivesse adoecido.

Mais tarde, Rosier, o prefeito que deu abrigo a petit Claude, evitando que os ciganos tivessem problemas por terem entre os seus um jovem de origem desconhecida, pede ao garoto para perguntar qual foi o remédio usado em seu tratamento. “Foi estrume de cavalo. Mas diga a ele que até uma vassoura pode lançar fogo se for o desejo de Deus”, enfatiza um dos roma.

James Thiérrée interpreta o cigano Taloche (Foto: Reprodução)

James Thiérrée interpreta o cigano Taloche (Foto: Reprodução)

É profunda a relação dos ciganos com outras formas de vida não humanas. Em outra situação, a família toca uma canção festiva para elevar o ânimo de dezenas de galinhas. No filme, a música ajuda a superar muitos problemas – um recurso que manifesta uma liberdade frugal.

Em contraste ao paisagismo rústico, Gatlif parte de uma condição coletiva para a individual quando aborda o lirismo de Taloche, personagem cuja inocência, aparente dislexia e hiperatividade, parece experimentar um incessante conflito existencial. Há uma exaltação da hipersensibilidade do cigano que destoa da idade e, por vezes, remete ao humor pastelão dos tempos do cinema mudo.

Mas não há nada mais bem representado em Korkoro do que a necessidade de liberdade, até nas cenas mais simples. Outro momento inesquecível surge quando Taloche vai até a casa de Rosier. No banheiro, ele se inebria com a água que sai da torneira. Enche a pia e a faz deslizar por todo o cômodo, como se a conduzisse à emancipação. Quando a água desce em abundância, Taloche se lança escada abaixo, sem o menor temor de se ferir.

Rosier explica que uma lei francesa proíbe o nomadismo durante a guerra (Foto: Reprodução)

Rosier explica que uma lei francesa proíbe o nomadismo durante a guerra (Foto: Reprodução)

O filme assume um caráter documental em algumas cenas-chave. Traídos pelo amigo Pierre Pentecôte (Carlo Brandt), um simpatizante dos nazistas, a família é levada para um campo de concentração, onde há centenas de romani. Lá, Darko (Arben Bajraktaraj) pergunta a Pentecôte por que estavam trancando eles como cachorros. O traidor então responde: “Para livrar a França de seus vermes.”

Ao saberem o que houve, Rosier e Mademoiselle Lundi decidem intervir. O prefeito transfere a escritura de uma propriedade familiar para o patriarca roma. Em seguida, os dois vão até o campo de concentração e apresentam o documento, obrigando que a família seja libertada. Quando retornam ao vilarejo, os ciganos se surpreendem com a nova morada. Alguns concordam em viver provisoriamente no local, já outros preferem partir. No fim, prevalece a decisão do patriarca que considera mais prudente continuar no povoado.

Taloche é o último a entrar na casa. Para ele, a ideia de viver entre paredes é uma forma de privação, embora não manifeste isso com palavras. Dias depois, Rosier os visita e encontra a propriedade abandonada. Novamente na estrada, rumam para a Bélgica, acompanhados mais uma vez por Claude. Não chegam tão longe. São surpreendidos pelos homens do Governo Vichy, a serviço dos nazistas.

Na obra, os romani são perseguidos pelo Governo Vichy (Foto: Reprodução)

Um dos momentos da perseguição do Governo Vichy (Foto: Reprodução)

Enquanto são obrigados a formarem uma fila e apresentarem registros de identificação, Taloche se esconde. O arrastam, mas ele estapeia o líder da operação – uma versão de Adolf Hitler, em uma cena caricata digna de Charlie Chaplin. Foge em direção à floresta e sobe em uma árvore enorme. É alvejado a tiros, até que numa queda poética e acrobática cai sobre um córrego. Deitado, mas ainda vivo, é vítima de um tiro certeiro na testa.

A morte de Taloche simboliza o fim da liberdade romani e a iminência do Porajmos, o genocídio cigano perpetrado na Segunda Guerra Mundial. O desespero da família é geral, mas, apesar dos prantos, nada pode ser feito diante de tantos homens armados. O corpo é abandonado, assim como os animais e os pertences. Dali, não levam nada. Um longo tempo passa em questão de segundos. Aquela família não retorna mais. Em uma cena estática, tudo se esvai: o som, o fogo, a fumaça, a luz e a vida.

É muito interessante o cuidado que Tony Gatlif teve aos detalhes das expressões e particularidades de alguns personagens, embora talvez fosse mais impactante tornar outros romani da obra igualmente menos anônimos. De qualquer modo, fica clara a intenção de não deixar o individual, por mais peculiar que seja, se sobressair ao coletivo. O cineasta não tem intenção de se aprofundar na guerra. O foco é outro. É um filme sobre pessoas tentando exercer o direito de existir, não apenas habitar o mundo. Há uma bela construção do espaço em profundidade.

Korkoro se divide em dois ritmos. Onde existe alegria, há movimento e velocidade. Onde há tristeza, prevalece a lentidão de retratos quase estáticos das agruras de um tempo nefasto. Outro diferencial é a trilha sonora sempre pontual, um belíssimo trabalho capitaneado por Gatlif e a compositora Delphine Mantoulet.

Cena em que os roma chegam ao centro comercial do vilarejo (Foto: Reprodução)

Cena em que os roma chegam ao campo de concentração (Foto: Reprodução)

Tony Gatlif é um dos poucos cineastas que se dedica a produzir obras que evidenciam ou flertam com a cultura romani. Como autor de filmes de longa-metragem, o primeiro grande destaque surgiu com Latcho Drom, de 1993; seguido por Mondo (1995), Gadjo Dillo (1997), Je Suis Né D’une Cigogne (1998), Vengo (2000), Swing (2001), Exils (2004), Transylvania (2006), Korkoro (2009) e Indignados (2012). Vale a pena se aprofundar um pouco mais na filmografia desse autor de origem roma.

Saiba Mais

Não há dados precisos, mas acredita-se que de 250 a 500 mil ciganos foram assassinados pelos nazistas até o fim da Segunda Guerra Mundial.

Curiosidades

Korkoro é baseado em uma história real. A professora Lundi é inspirada na combatente da resistência Yvette Lundi.

James Thiérrée que interpreta Taloche é filho de Victoria Chaplin e neto de Charlie Chaplin.

A fábula de Amélie Poulain

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Jeunet e a beleza embutida de simplicidade

Amélie Poulain, contraponto no universo de criações sombrias de Jeunet (Foto: Reprodução)

Amélie Poulain, contraponto no universo de criações sombrias de Jeunet (Foto: Reprodução)

Lançado em 2001, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, é um filme popular de estética leve e colorida do cineasta francês Jean-Pierre Jeunet que aborda a beleza da natureza humana a partir de uma jovem que tenta se distanciar das complexidades da vida.

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain é um contraponto no universo de criações sombrias de Jeunet. O filme transmite beleza e uma peculiar pureza do início ao fim, tendo como elemento central da história a graciosa Amélie Poulain (Audrey Tautou), uma jovem que após a morte da mãe se muda sozinha para o boêmio Montmartre, em Paris, onde consegue um trabalho como garçonete.

Um filme humanista com predicados de fábula (Foto: Reprodução)

Um filme humanista com predicados de fábula (Foto: Reprodução)

O maior hobby de Amélie é observar pessoas; a ela, seres tão desconhecidos, mas ao mesmo tempo fantásticos. O passatempo surge a partir de um episódio vivido na infância. O pai, Raphael Poulain (Rufus), após realizar alguns exames com a filha, a diagnosticou com um problema cardíaco crônico, a privando de ir ao colégio, ter amigos e até mesmo sair de casa. Poulain nunca soube que o coração de Amélie sempre acelerava justamente pela sua presença, um contato tão raro.

Amélie poderia ter se tornado alguém com graves distúrbios psicológicos e emocionais. Mas nada disso acontece. Já adulta, deixa de ser uma espectadora para se tornar protagonista da própria vida. A cena em que entrega um relicário com brinquedos ao ex-proprietário do apartamento onde mora é uma das mais memoráveis. A satisfação do homem é transcendental.

Amélie deixa de ser uma espectadora para se tornar protagonista da própria vida (Foto: Reprodução)

Amélie deixa de ser uma espectadora para se tornar protagonista da própria vida (Foto: Reprodução)

Amélie percebe algo que conjugado a sua sensibilidade não é comumente notado pela maioria das pessoas: pequenas coisas tornam a vida mais rica e a inflam de sentido não pelo que são, mas pelo que representam. A partir daí, o mundo da personagem se materializa num espectro de ações altruístas.

Sobre a estética usada por Jeunet, é destacável o uso e abuso de cores nos planos de filmagens, o que proporciona vivacidade surreal e representa a exteriorização da beleza interior de Amélie. Em cor pastel, os tons leves da fotografia remetem à pureza existencial da garçonete. Além disso, a presença de um narrador em off garante um caráter didático e descritivo.

Há também muitas cenas de cortes rápidos, flertando com a edição objetiva usada em videoclipes, além de outras em plano-sequência; tudo contribuindo para tornar a obra mais dinâmica. No mais, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain é um filme humanista com características de fábula que cria uma ponte entre a realidade física e a fantasia psicológica.

Trilha Sonora

Após o lançamento do filme, a trilha sonora do compositor francês Yann Tiersen ganhou projeção mundial, sendo regravada por centenas de artistas e usada como background de milhares de espetáculos por todo o mundo, além de programas televisivos. Sem dúvida, a canção mais popular da soundtrack é Comptine d’Un Autre Été que recebeu várias versões do próprio Tiersen.

Le Salaire de La Peur e a poesia da degradação humana

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Filme aborda a mercantilização da vida em uma missão suicida

Imigrantes europeus aceitam a missão de transportar nitroglicerina pelas precárias estradas do Terceiro Mundo (Foto: Reprodução)

Imigrantes europeus aceitam a missão de transportar nitroglicerina pelas precárias estradas do Terceiro Mundo (Foto: Reprodução)

Obra-prima do cineasta francês Henri-Georges Clouzot, Le Salaire de La Peur, que chegou ao Brasil tardiamente sob o título O Salário do Medo, conta a história de quatro imigrantes europeus contratados por uma companhia petrolífera dos EUA para transportar uma carga de nitroglicerina pelas estradas precárias de um país do Terceiro Mundo.

Quando Le Salaire de La Peur foi lançado em 1953, a França vivia o apogeu do existencialismo de autores como Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Georges Arnaud, pensadores que influenciaram Henri-Georges Clouzot a criar um filme que mostra homens como indivíduos desorientados em um mundo cada vez mais caótico e aberrante, onde os valores são deglutidos pela esperança de sobrevivência.

Na história, Mario (Yves Montand), Bimba (Peter Van Eyck), Luigi (Folco Lulli) e Jo (Charles Vanel) são personagens desgastados pela miséria que vivem no vilarejo de Las Piedras, onde decidem mercantilizar a vida em uma missão suicida que pode render dois mil dólares a cada um. Os quatro são contratados por uma empresa estadunidense de petróleo para garantir que um carregamento de nitroglicerina chegue ao destino.

Clouzot emociona com cenas influenciadas pelo realismo poético (Foto: Reprodução)

Clouzot emociona com cenas influenciadas pelo realismo poético (Foto: Reprodução)

Embora a missão seja na Guatemala, o filme de Clouzot deixa claro que a história poderia se passar em qualquer país de Terceiro Mundo, onde a dominação econômica dos EUA é quase sempre proeminente, deixando graves consequências como a degradação social e o esgotamento dos recursos naturais.

Ironicamente, em um dos diálogos da obra, o personagem Mario parece visualizar tanto o presente quanto o futuro quando diz: “Onde tem petróleo, tem americanos.” Além de fazer severas críticas ao capitalismo, mostrando que ninguém sofre mais com as ações dos países ricos do que as nações subdesenvolvidas, o cineasta francês ainda consegue emocionar o espectador com uma estética baseada no realismo poético.

Logo na abertura, somos introduzidos por uma criança a um mundo de insetos mergulhados em uma poça de lama, metáfora que amarra toda a trama de Le Salaire de La Peur. Muitas cenas como a mencionada se repetem no decorrer do filme, transmitindo um sem-número de mensagens que flertam com o niilismo.

São imagens capazes de instigar reflexões e emoções conflitantes. Também é interessante a forma como Henri-Georges Clouzot aborda a perda da identidade dos personagens. Sem sobrenomes, se atêm a pequenos sonhos e devaneios de um dia se encontrarem novamente como parte de um algo concreto.

Godard e a Virgem Maria

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Je Vous Salue, Marie propõe discussão entre matéria e espiritualidade

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Marie convive com as tentações da modernidade e incertezas do futuro (Foto: Reprodução)

Em 1985, o cineasta francês Jean-Luc Godard lançou o polêmico filme Je Vous Salue, Marie que anos depois chegou ao Brasil com o título original, baseado na oração católica. A obra é uma interpretação contemporânea da história da Virgem Maria e se sustenta em diálogos e imagens que propõem uma discussão com requinte de ensaio entre matéria e espiritualidade.

Famoso pela audácia, desinteresse pela objetividade e despreocupação em agradar o público, Godard apresenta duas histórias paralelas em Je Vous Salue, Marie. Na primeira, Marie (Myriem Roussel) é uma esportista adolescente em crise existencial, convivendo com as tentações da modernidade e as incertezas sobre o futuro.

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Joseph se recusa a crer que é o pai do filho de Marie (Foto: Reprodução)

A jovem tem um relacionamento conturbado com o materialista Joseph (Thierry Rode), um cético e imaturo taxista que decide ter relações sexuais com outra mulher após as muitas recusas de Marie. Entre o casal subsiste um antagonismo sutil.

O anjo Gabriel (Philippe Lacoste), sem qualquer característica física ou psicológica de arcanjo, é a materialização do pragmatismo. Jean-Luc criou um personagem frágil e dotado de inúmeros defeitos que, em vez de voar, viaja de avião. Em pleno século 20, assume a missão de fazer Joseph crer que o filho de Marie, com quem jamais teve uma relação sexual, é dele.

Em contraponto a breve história de Maria, sustentada em fé inominável, é apresentada a realidade de um racionalista professor de ciências que refuta a religiosidade em favor da ufologia, gerando assim um embate envolvendo estética e dialética.

Um pai incomunicável

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O dilema de uma família fragmentada pela instabilidade paterna

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Crise existencial faz Victor abandonar a filha e a mulher (Foto: Reprodução)

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Pamela só volta a ser procurada pelo pai na adolescência (Foto: Reprodução)

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A beleza de Tout Est Pardonné está na simplicidade das cenas (Foto: Reprodução)

Lançado no Brasil como Tudo Perdoado, Tout Est Pardonné, de 2007, é um filme da cineasta francesa Mia Hansen-Løve que conta a história de uma família fragmentada pela instabilidade paterna.

O primeiro longa-metragem de Mia Hansen-Løve apresenta três personagens: o pai Victor (Paul Blain), a mãe Annette (Marie-Christine Friedrich) e a filha Pamela (Constance Rousseau). Victor é egocêntrico e vive uma crise existencial alimentada pelo uso abusivo de drogas. A dependência química é o estopim que culmina no abandono da mulher e na perda da filha.

O filme aborda a incomunicabilidade ao mostrar um homem que mesmo tendo uma família é incapaz de se responsabilizar por ela. Egoísta, Victor reconhece como real apenas a própria dor, ignorando os problemas vivenciados pelos familiares. Mais tarde, a solidão do personagem vai além da interiorização e se torna uma experiência de dor absoluta.

Após 12 anos, Victor se recupera e decide procurar a filha adolescente. Pamela tem a oportunidade de rever o pai, um desconhecido com quem aos poucos estabelece afinidade singular. Apesar do drama central, a beleza de Tudo Perdoado está na simplicidade das cenas. Há momentos triviais que se tornam singulares pelo poder de identificação com o público.

O filme inspira ao naturalismo e ao realismo de maneira tão sublime que se torna desnecessário o uso de metáforas e simbologias. É uma obra sobre as possibilidades do ser humano recomeçar a vida, bastando a ele reunir forças para discernir sobre suas prioridades. Por Tout Est Pardonné, Mia Hansen-Løve recebeu em 2007 o tradicional Prêmio Louis Delluc.

Curiosidade

A atriz que faz Pamela na infância é Victoire Rousseau, irmã da atriz Constance Rousseau que interpreta a personagem adolescente.

Uma garota de programa em paradoxo

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Godard e a perspectiva humanista sobre uma personagem marginalizada

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Musa de Jean-Luc vive a prostituta Nana (Foto: Reprodução)

Vivre Sa Vie, Lançado no Brasil como Viver a Vida, é um clássico da Nouvelle Vague de 1962, do controverso cineasta francês Jean-Luc Godard. O filme conta a história de Nana, uma garota de programa que sonha em ser atriz e vive o paradoxo de preservar a própria integridade.

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Natureza de Nana revela humanismo em crise (Foto: Reprodução)

Viver a vida é protagonizado por Anna Karina que empresta beleza a personagem Nana. Por si só, o rosto angelical e expressivo da atriz propõe um paradoxo ao encarnar uma meretriz. Sem cenas tórridas de lascívia, exibicionismo, exaltação da sexualidade ou até mesmo beijos quentes, o filme é uma perspectiva humanista sobre uma personagem marginalizada. Na obra, a garota de programa assume uma notoriedade idiossincrásica em que citações literárias e filosóficas determinam o cotidiano.

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Protagonista assiste ao enlace entre a modernidade e a decadência (Foto: Reprodução)

Embora depreciada pela sociedade, Nana é uma caricatura expressionista vivendo sob um prisma de valores criados por ela mesma, totalmente desvinculada do caráter maternal imposto às mulheres. O contexto, quando imaterial, se resume a um universo reflexivo, onde a objetividade e o concreto só existem em razão da subjetividade. Tudo é transmitido no filme por etapas, já que Viver a Vida se divide em doze atos.

Do início ao fim, é permitido invadir a intimidade de Nana, representante de um ideal de liberdade que tenta ignorar tudo a sua volta. Mas nem sempre consegue. A protagonista se mostra frágil ao entregar o corpo por exigência do ofício. Sente que algum tipo de emoção e sentimento nasce ou morre antes de cada relação sexual.

O espectador, que assume os olhos de Godard, presencia muitas das cenas como testemunha; alguém o tempo todo ao alcance de Nana. A primeira cena em que a câmera, de uma posição privilegiada, destaca as costas e os ombros da personagem, mantendo o rosto oculto enquanto conversa em um café, é o exemplo primordial.

A natureza de Nana ratifica a ideia de que o humanismo está em crise há muito tempo. Como sobrevivente do submundo parisiense, ela assiste ao enlace entre a modernidade e a decadência. Na capital francesa, surgem cinemas, cafés e máquinas de fliperama enquanto morrem pessoas, sonhos e ideais.

O incompreendido e seminal Truffaut

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Les quatre cents coups, uma autobiografia à François

Antoine Doinel, uma criança que se refugia em livros (Foto: Reprodução)

Les quatre cents coups, que no Brasil ganhou o título de Os Incompreendidos, é um filme de 1959, do surpreendente François Truffaut. Ícone da Nouvelle Vague, a obra mostra os conflitos vivenciados por uma criança dividida entre uma existência pueril, alimentada por sonhos, e uma contumaz e gélida realidade doméstica.

A obra de François Truffaut, subjetivamente autobiográfica, mostra as belezas e as dificuldades que volatilizam o universo de um garoto em constante conflito familiar. O protagonista, Antoine Doinel, interpretado por Jean-Pierre Léaud, é uma criança que se refugia em livros para se sentir mais humana e mais viva, como se fizesse parte da casta dos literatos que tanto admira, entre eles o prolífico realista Honoré de Balzac.

Filme se tornou ícone da Nouvelle Vague (Foto: Reprodução)

Na história, o cineasta apresenta uma figura paterna impotente, fragilizada e subserviente. Em suma, às raias da insignificância. Já a materna, é alheia ao contexto familiar, rendida à superficialidade, egoísmo, egocentrismo e individualismo. No filme, François Truffaut rompe o paradigma de um mundo em que os pais vivem em função dos filhos, o que acidentalmente justifica o título brasileiro.

Para saturar a inexistência de qualquer distinção entre crianças e adultos, Truffaut mostra pais e professores conversando com seus filhos e alunos de forma igualitária, como se não houvesse distinção de faixa etária –  o que também remete ao clássico Zéro de conduite (Zero de Conduta), de Jean Vigo, assim como a cena antológica dos estudantes correndo pelas ruas de Paris. A natureza bucólica e espontânea das crianças ganha espaço apenas nos momentos em que estão sozinhas, oclusas em um universo de complacência e liberdade.

Les quatre cents coups é um grande marco do cinema francês e dignifica de modo seminal a estética cinematográfica de Truffaut, autor que jamais precisou apelar para o sentimentalismo ou recursos sofisticados para encantar os espectadores.