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Toto Wanje: “Todos nós nascemos veganos”
O queniano Toto Wanje nasceu em uma pequena aldeia no Quênia, na África Oriental, onde vivia sem televisão, eletricidade e sem água encanada. Ele conta que a vida era simples e que a carne era considerada um item de luxo que fazia e ainda faz parte apenas da realidade dos ricos, ou pelo menos daqueles que podem pagar pelo seu alto preço no Quênia: “Em muitos lugares na África, a carne é dada apenas aos homens. As mulheres e as crianças seguem uma dieta vegetariana. Nem todas as aldeias no Quênia ou na África são assim. Na minha aldeia, as mulheres e as crianças sempre tiveram muito a dizer à sociedade, embora não sejam considerados tão importantes quanto os homens. Então os homens comiam carne e as mulheres e as crianças se alimentavam com vegetais.”
Toto cresceu rodeado de animais como vacas, galinhas, cabras e ovelhas, mas raramente eles comiam animais. A maioria era criado com a finalidade de ordenha, ou então para serem vendidos para pessoas de outras aldeias. Ainda assim, o destino desses animais não era tão auspicioso. Uma vez por mês um animal era morto para ser consumido em um casamento ou algum outro grande evento. Além disso, no Quênia há um costume antigo de presentear um convidado com uma galinha. Esse mesmo animal é abatido e servido no jantar. Os homens se alimentam das “melhores partes”, e as mulheres das sobras. Com “sorte”, as crianças ganham algum pedacinho para sentir o “gosto”.
Na infância, imerso nessa realidade, Wanje corria até a mesa onde seu tio estava reunido com outros homens e implorava por um pedaço de frango ou do bode que haviam abatido mais cedo. “Eu era travesso e aventureiro, e sempre queria sentir o gostinho do que as pessoas mais velhas estavam comendo. As outras crianças tinham que comer sopas de vegetais e arroz. Parecia um tratamento especial, e até encantador, receber um pequeno pedaço para saborear”, relata.
Mesmo vivendo em uma realidade bastante difícil, a família de Wanje conseguia cultivar milho, castanhas de caju, abacates, laranjas, mangas, tomates, páprica e repolho. A comida estava sempre ao alcance das mãos, bastando selecioná-la e prepará-la. Eles consumiam todos os tipos de comida vegetariana, mas principalmente sopas, saladas e feijões preparados de diversas maneiras. Não havia necessidade de muito dinheiro. Na realidade, o dinheiro só era usado na aquisição de três itens – açúcar, arroz e óleo. “Éramos uma comunidade autossustentável. Tínhamos diferentes papéis em nossa pequena comunidade. As garotas cuidavam dos vegetais, as mulheres cozinhavam, e os garotos se responsabilizam pelos animais. Brincávamos com as cabras, com as galinhas e sempre tentávamos montar no lombo das vacas”, narra.
Naquele tempo, nada incomodava mais as crianças da aldeia de Toto do que a presença de um açougueiro que vinha de outra aldeia quando chegava a hora de abater um boi, uma vaca, uma cabra ou uma galinha para uma festa ou outra ocasião especial. Com a chegada do açougueiro, as crianças fugiam e se escondiam atrás dos arbustos ou das cabanas de barro enquanto o ouviam matando um dos animais.
Segundo Toto Wanje, a princípio era horripilante, mas com o tempo acabaram se acostumando, porque a matança, mesmo que não tão frequente, fazia parte dos hábitos culturais do povo de sua aldeia: “Se nunca tivéssemos visto isso sendo feito, provavelmente nunca quereríamos carne [quando soubéssemos a verdade]. As crianças fazem o que os adultos fazem e querem o que os adultos têm. Se uma criança não for ensinada a matar e não for ensinada a comer animais, elas nascerão veganas e crescerão como veganas. Elas não iriam querer ferir qualquer animal ou qualquer ser vivo.“
Suas irmãs e primas jamais assistiam o abate dos animais, e simplesmente porque era chocante demais testemunhar um dos animais com quem eles brincavam e se divertiam no cotidiano ser morto brutalmente. “Mesmo que estivéssemos nos escondendo e observando de longe, como garotos, sentíamos que precisávamos ver como ele os matava. Quanto mais animais vimos sendo mortos, mais ficamos condicionados e acostumados”, reconhece.
Depois de adulto, Toto Wanje percebeu que aquele cheiro estranho do açougueiro da aldeia não era raro. Na realidade, era mais comum do que ele imaginava. Afinal, o mesmo cheiro poderia ser encontrado em qualquer açougue: “Se você é vegano há algum tempo, provavelmente sabe o que quero dizer. Quando você passa por algumas seções de carne, ou quando entra no açougue e passa pelo lugar onde eles cortam a carne, você reconhece que o cheiro é terrível. Você se pergunta como alguém pode comer essa carne morta. Era esse mesmo cheiro de morte, sangue e carne que o açougueiro tinha. Reconheço o cheiro e sei agora que era assim o seu cheiro, e era horrível. Ele estava sempre cercado de animais mortos e matava animais diariamente para ganhar a vida. Matar animais era a sua profissão. Hoje, acredito que quanto mais alguém mata e fere animais, mais ele ou ela perde um pedaço da sua verdadeira natureza humana e dignidade.”
Como Toto e sua irmã não tinham futuro vivendo em sua terra natal, eles foram adotados por uma missionária irlandesa enviada ao Quênia pela Igreja Católica. A mulher se tornou amiga da mãe de Wanje e se ofereceu para educá-los na Irlanda. Na Europa, o jovem queniano se surpreendeu em ver como as pessoas consumiam e ainda consomem muita carne. Logo no café da manhã, Toto e a irmã comiam bacon e ovos. No almoço, consumiam peixe, frango, carne vermelha ou costeletas de porco. Também nunca faltava carne no jantar. “Começamos a comer carne três vezes ao dia. Isso, com o tempo, mudou nossa maneira de pensar. Nos acostumamos a comer carne e literalmente nos apaixonamos pela carne. Tornou-se tão normal para nós que mal podíamos comer uma única refeição sem carne. Ainda me recordo de como eu não queria comer meus vegetais a menos que me dessem um pedaço de carne para acompanhar a minha comida”, revelou, em referência ao fato de que embora vivesse em uma realidade mais esperançosa, é estranho reconhecer que a matança de animais mais do que nunca fazia parte de sua rotina.
Toto Wanje notou que enquanto pessoas com pouco poder aquisitivo se alimentavam com mais vegetais no Quênia, e normalmente alimentos cultivados por eles mesmos, na Europa, muitas pessoas viam como um retrato de uma vida próspera e digna consumir muita carne e produtos sobre os quais pouco conheciam a procedência: “Lembro-me de dizer, como outras crianças dizem, que odiava vegetais. A maioria de nós quando crianças empurra os vegetais para o lado do nosso prato e só come a carne, o arroz, as batatas ou o macarrão. Minha nova mãe irlandesa me faria sentar à mesa até que eu tivesse comido todos os meus legumes e verduras. Agora, como vegano, é engraçado pensar nesses dias em que me recusei a comer verduras e legumes, e mais engraçado ainda quando volto mais atrás e recordo-me que essa era a dieta padrão no Quênia.”
Toto, que hoje é um empreendedor vegano e ativista dos direitos animais em Upsália, na Suécia, cita os episódios em que implorava por um pedaço de carne ao seu tio como um exemplo comum do condicionamento vivido pelas crianças. Para o queniano, ser vegano é como nascer de novo, reconhecer um novo mundo.
“Ser vegano é ter meus olhos e meu coração abertos novamente para abraçar todos os seres vivos como iguais a nós mesmos. Ser vegano é reconhecer o espírito e o amor que eu tinha pelos animais quando criança. É reviver e abraçar mais uma vez a compaixão que eu tinha pelo mundo e por tudo que é belo na natureza. Um véu foi levantado dos meus olhos e do meu coração. Agora sou capaz de ver os verdadeiros espíritos e as almas dos animais mais uma vez. Acredito que todos nós nascemos veganos, exceto que de alguma forma ao longo da vida, nosso amor e compaixão pelos outros seres vivos são doutrinados e condicionados. ”
Referência
Wanje, Toto. We Are All Born Vegan (22 de novembro de 2016).