Archive for May, 2014
A incursão dos Chicos
Macacos-prego deixam o bosque para garantir a sobrevivência na área urbana
Perto das 11h, não é difícil perceber uma movimentação tímida, curiosa e rasteira na Rua Benedito Brambila, na Vila Operária. O cheiro de comida na panela faz dezenas de macacos-prego, que desde os anos 1990 receberam o nome de Chico, migrarem da então infrutífera mata do Bosque Municipal de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, para as casas mais próximas.
Nem o asfalto quente, capaz de grelhar um pão em tempo recorde, intimida um bando liderado por um macaquinho experiente que passa as coordenadas aos menores. Eles parecem treinados para ocuparem posições estratégicas na incursão pela área urbana. Por segurança, a maioria atua somente em grupo. Mantendo certa distância para não atrapalhá-los, registrei as ações de um bando de cinco Chicos.
Enquanto o mais alto, de pelagem um pouco acinzentada e olhos arregalados, avaliava o movimento na Rua Benedito Brambila, com o corpo ligeiramente oculto sobre um gramado íngreme, os demais, e aparentemente mais jovens, observavam o entorno, escondidos atrás de alguns carros no estacionamento do bosque. A autorização para atravessar a rua foi um sinal sonoro acompanhado de gestos ligeiros. Mesmo com alguns vizinhos conversando em frente uma das casas, o líder dos macaquinhos não hesitou. Talvez porque sejam pessoas com as quais se acostumaram depois de tanto tempo de visitas diárias.
Tão logo o primeiro macaco-prego apressou o passo sobre o asfalto, saltou em cima de um muro, correu e lançou-se sobre o telhado, os demais repetiram o percurso, como se fossem ensinados a seguir sempre o mesmo trajeto. Juntos, logo desapareceram por entre as casas onde o aroma que vinha da cozinha era mais acentuado. Parecia que sabiam em quais residências a comida ficaria pronta mais rápido. Ou seja, em cinco anos de três incursões diárias, se tornaram especialistas na “hora do rango”.
A primeira visita ocorre sempre das 6h às 7h30, seguida pela segunda – das 11h às 12h30, e a terceira – das 17h às 18h30. “Moro aqui faz 20 anos e eles começaram a vir aqui em casa com frequência tem dez. Só que a situação se intensificou mesmo há cinco anos”, conta o empresário Gilberto Serafim Matos que mora em frente ao Bosque Municipal e relata as peripécias dos macacos com um grande sorriso.
Hoje, os Chicos são quase membros da família, tanto que a liberdade chega a ponto de passarem bons momentos diários na casa do seu Gilberto, onde conhecem todos os cômodos. Lá, fuçam na TV e em outros aparelhos eletrônicos, deitam no sofá e pulam sobre as camas. Até mesmo as mamães que transportam as suas macaquinhas nas costas frequentam a residência e se dão o direito de abrir o armário e pegar um pacote de biscoito recheado.
Só que a liberdade no local exige um certo controle, até porque alguns animais são mais geniosos. A dona de casa Maria de Fátima Santos cita o episódio em que um Chico pegou o tapete da cozinha e ficou rolando sobre ele em frente ao portão. Só parou com a algazarra quando foi recompensado com um pedaço de pão. “Se não desse, acho que ele teria sumido com o tapete”, comenta. No bairro, entre os alimentos levados pelos Chicos estão arroz, feijão, carnes, frutas, pães, bolos, ovos, biscoitos, bolachas, chips, rações de gato e cachorro, manteiga, margarina, óleo e azeite.
Os macacos furtam ou roubam qualquer alimento ao alcance das mãos. Se a fome for muito grande, eles consomem no local. Do contrário, levam para o bosque e comem em cima das árvores. Um dia, um dos Chicos foi iludido pela própria fome quando furtou uma fruteira com alimentos de plástico. Inconformado, passou horas batendo as “frutas” contra o tronco da árvore, na ilusão de extrair algo comestível. “Eles adoram pão caseiro. Teve um que abraçou um do tamanho dele e sumiu em direção ao bosque”, lembra a dona de casa Maria José Rodrigues Barros que em outra oportunidade teve de interromper o café da manhã por causa de uma saraivada de pedras.
O ataque só cessou quando dona Maria os convidou à mesa. Embora não sejam muito exigentes quanto a comida, há alimentos que os Chicos odeiam tanto que fazem questão de urinar em cima. Exemplo é a horta de salsinha e cebolinha da dona Maria, um dos alvos prediletos da macacada. Novas histórias surgem a cada dia. Entre as mais recentes está a de um garoto que andava em frente ao bosque e teve o pacote de chips roubado.
Outra vítima foi o vizinho de dona Fátima. O rapaz chegou em casa com dois quilos de bife e minutos depois se surpreendeu com um bando correndo e rindo bosque adentro com a sacola de carne. Inusitado também foi o episódio em que levaram um gatinho preto para o topo de uma árvore, pensando que o animalzinho era filho de uma das macaquinhas do bando. “Eles fazem maldade também de vez em quando. Tem uns 15 dias que um grupo pegou o meu galo e o enforcou até matar. O bichinho não teve chance nenhuma”, revela dona Fátima.
Se tiver comida dentro, nem panelas, recipientes plásticos e canecas passam despercebidos. Muitos utensílios domésticos foram encontrados presos em galhos de árvores. “Daqui de casa, levaram até fatura de energia elétrica e água. Só tivemos certeza quando vimos os papéis balançando lá no bosque”, confidencia seu Gilberto. Uma vez a família de dona Maria pensou que a casa tivesse sido invadida por ladrões porque encontrou praticamente tudo revirado. Só descobriram mais tarde que a bagunça foi provocada pelos Chicos.
“Agora é engraçado, mas não vou negar que na hora a gente fica com raiva e até ódio. Acontece sim. Só que ninguém judia porque sabe que estão nessa situação por falta de comida”, pondera dona Fátima. Outros vizinhos endossam a opinião da dona de casa. É fácil notar o carinho dos moradores da Vila Operária pelas dezenas de macacos que vivem no Bosque Municipal de Paranavaí. Espertos e persuasivos, os primatas conquistaram até a simpatia de gatos e cães da Rua Benedito Brambila. Chegam até a montarem a sobre alguns cachorros. “Até pitbull se acostumou com eles”, enfatiza dona Maria.
Os moradores já passaram por situações em que os Chicos levaram embora compras de alimentos que deveriam durar mais de um mês. E mais, beberam todos os ovos de uma casa invadida e depois fizeram caretas e riram dos moradores. “Eles sabem o que fazem. Então tem situações que gostam de provocar mesmo”, avalia dona Fátima antes de cair na gargalhada.
Outra curiosidade é que nas casas situadas no entorno do bosque não se vê sacos ou sacolas de lixo. A explicação é uma só – evitar bagunça. Seu Gilberto, por exemplo, esconde o lixo dentro de uma kombi até a hora da coleta. A macacada não dá trégua nem aos domingos. Dona Maria não se recorda quando foi a última vez que dormiu bastante no final de semana. Por volta das 6h, é sempre surpreendida por cinco ou seis Chicos correndo sobre o telhado. “O barulho é tão intenso que parece uma boiada passando”, exagera a dona de casa enquanto ri.
Preocupados com a situação dos macacos-prego do Bosque Municipal, os moradores do bairro são unânimes em afirmar que os animais passam fome há anos. Um reflexo dessa realidade é a imagem que registrei de um Chico bebendo azeite de oliva extravirgem. Uma solução para o problema pode ser a criação de uma parceria entre a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, responsável pelos animais e também pela manutenção do local, com supermercados, hipermercados e frutarias de Paranavaí. Sabemos que qualquer empresa do ramo recebe uma parcela de alimentos com aspecto comprometido, fora de condições de comercialização. Em vez de descartarem, eles poderiam destiná-los aos macacos. Neste caso, o papel da secretaria seria disponibilizar um veículo para o transporte dos alimentos.
Um homem marcado pela tragédia
Quando a riqueza material ofusca a importância da vida
Na infância, meu avô me contou uma história que jamais esqueci. É sobre um homem que teve a vida transformada por uma sucessão de tragédias em 1958 e 1959. Até o ano passado, sempre me questionei se o que ouvi quando criança era verdade ou não. A confirmação chegou até mim há alguns meses, quando encontrei uma sobrinha do protagonista desta sinistra e pitoresca história.
Hésio Oscar Azeredo era um investidor de grandes posses que vivia com a família em uma fazenda a pouco mais de 20 quilômetros da área urbana de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Passava o tempo todo ocupado, tentando encontrar novas formas de multiplicar os lucros. Havia época em que dormia menos de três horas porque achava que repousar mais o impediria de alcançar seus objetivos. “Ele tinha uma boa família e era uma boa pessoa, mas colocava o dinheiro e a ambição acima de tudo”, diz a sobrinha Maria Aparecida Lorelli.
Hésio Oscar era filho único de um falecido casal de multimilionários que até as primeiras décadas do século XX administrava investimentos de capital estrangeiro no Brasil. Ainda jovem, já possuía propriedades rurais em sete estados, além de fazendas no Paraguai e Argentina. Algumas eram maiores do que muitas cidades do Brasil. Também investia em beneficiamento de grãos e cereais, telefonia e transportes fluviais. Era muito influente, tanto que na sua biblioteca particular, um ambiente inspirado no gabinete do presidente dos Estados Unidos – o Salão Oval, deixava em destaque uma grande foto em que aparecia ladeado pelo ex-presidente Dwight Eisenhower.
“A moldura do quadro era de ouro maciço. Poucas pessoas podiam entrar lá. Somente alguns familiares conheciam o lugar. Meu tio ainda pedia que por discrição ninguém falasse sobre o que viu lá dentro”, declara Maria que na infância e adolescência teve três oportunidades de visitar o local. Apesar do apego aos bens materiais, o investidor era considerado pelos empregados como um patrão rigoroso, mas justo. Fazia questão de acompanhar de perto todos os seus negócios. Ainda assim, muitos boatos se espalhavam sobre o Tymbara, apelido que um místico colono de origem kaingang deu a Hésio Azeredo. “Era o único índio da nossa turma. Ele inventou esse apelido e não explicou o significado. Só que ninguém nunca teve coragem de chamar o ‘Dr. Hésio’ de Tymbara, então isso ficava mais entre a gente”, comenta o ex-colono aposentado Inácio Durval Reis que naquele tempo era mais conhecido como Mizim.
Em 1957, já circulava entre os colonos um boato de que Azeredo se referia ao dinheiro como se fosse um tipo de deidade. “Falavam que ele tinha um altar cheio de dinheiro e que não saía de lá sem se ajoelhar e rezar pra ganhar mais um punhado a cada dia”, conta Mizim, acrescentando que talvez tenha sido apenas conversa fiada de gente à toa.
Há quem diga que uma cozinheira da fazenda jurou ter visto paredes forradas com notas de cem dólares em alguns dos cômodos da casa principal. “Todo mundo ouvia falar. Só que não conheço ninguém que testemunhou isso. Sei que tinha cômodos da casa que o ‘Dr. Hésio’ não permitia a entrada de ninguém, nem das empregadas”, enfatiza Reis. Embora as lembranças não estejam mais tão frescas na memória, Maria se recorda com carinho da tia Clara e dos primos Tadeu e Joaquim. “Eram bem espertos e adoravam correr pelo campo. Na fazenda, perto de uma bica de mina, tinha um morrinho coberto por uma grama bem verdinha onde eles adoravam escorregar e rolar. Às vezes eu e uma babá cuidávamos dos dois”, comenta.
Tadeu, de cabelos negros que chegavam a azular com a incidência do sol vespertino, era bem comunicativo e agitado. Já Joaquim, de cabelos loiros, era calmo e parcimonioso. Os dois sofriam de heterocromia. “Tadeu tinha um olho preto e um azul. Joaquim possuía um olho preto e um verde. Por causa disso, eu ficava sabendo de muitas bobagens ditas pelos mais ignorantes”, lembra Maria Lorelli. Hésio Azeredo pouco participava do cotidiano familiar. Assistia ao desenvolvimento dos filhos como um espectador desatento. Tinha o hábito de viajar antes do amanhecer, retornando apenas semanas mais tarde e normalmente de madrugada. A pressa era tanta que nem se despedia dos filhos. Se o lucro fosse muito alto e exigisse mais tempo fora de casa, não se importava em se ausentar por alguns meses. Uma vantagem é que o empresário sempre teve pessoas de sua confiança para garantir o bom andamento dos seus muitos empreendimentos.
Criado em uma família que há várias gerações se dedicava a multiplicar riquezas, Azeredo foi o primeiro a romper o ciclo, e não por vontade própria, mas por uma sucessão de acontecimentos que transformaram sua vida. Em dezembro de 1958, após uma séria discussão com o marido, Clara chamou os dois filhos e disse a eles que iriam passar alguns dias na casa da avó em Curitiba. “Ajudei eles a arrumarem as malas e os acompanhei até o aeroporto da família, onde um avião e um piloto estavam sempre à disposição”, relata Maria. No último momento, apesar da resistência em deixá-los partir, Hésio Oscar achou que contrariar a mulher poderia piorar a situação. No início da noite, se arrependeu amargamente ao receber a notícia de que o piloto Julião Martins Bastina sofreu um mal súbito e perdeu o controle da aeronave. O avião que caiu na região dos campos gerais foi encontrado por um caminhoneiro que viu uma criança ensanguentada acenando e gritando por socorro.
“A tia Clara, o Joaquim e o piloto não resistiram aos ferimentos. Acho que morreram na hora do impacto. O Tadeu sobreviveu por um milagre. Ele teve só escoriações e não precisou ficar internado”, destaca Maria Aparecida. A maior parte do sangue sobre o corpo do garoto era do irmão e da mãe que o envolveu nos braços instantes antes da queda. Pelo menos por dois meses após o enterro, a tragédia fez de Azeredo um homem incomunicável, agressivo e ostracista. Não tinha vontade de ver ninguém, nem mesmo o filho sobrevivente. Depois retornou à rotina sem avisar ninguém. E não aceitava que falassem das mortes da mulher e do filho, negando a si mesmo a partida dos dois, mesmo tendo participado da cerimônia fúnebre.
Sem saber como lidar com a vida pessoal, até mesmo esquecendo que tinha família, se afundou ainda mais em trabalho. Esqueceu muitas vezes que Tadeu continuava morando na mesma casa. “O pai dele tinha atitudes de alguém que perdeu tudo. Em vez de se basear naquele exemplo para mudar de vida, fez exatamente o contrário. Fiquei muito nervosa com a situação”, desabafa a sobrinha. Isolado por Hésio Oscar, Tadeu começou a agir como se o irmão Joaquim continuasse com ele. Maria Lorelli foi a primeira a perceber que o primo divagava e tinha alucinações. Parecia falar com outras pessoas, mesmo quando estava sozinho. Quem o via de longe, pensava que havia alguém acompanhando o garoto.
“Ele corria lá pelos lados das plantações. Se embrenhava no meio do cafezal e brincava de se esconder. Lembro que perguntei se tinha mais alguém com ele. Me respondeu que era o irmão. Achei que fosse uma traquinagem inocente, nem comentei com ninguém”, revela Mizim. Episódio semelhante se repetiu uma semana mais tarde, quando Tadeu estava sozinho no quarto, escondido e cochichando dentro do guarda-roupa. Com a insistência dos mais próximos, Azeredo concordou em procurar um tratamento psiquiátrico para o filho. Tadeu foi diagnosticado com transtorno do estresse pós-traumático. Mesmo com acompanhamento médico, o estado do garoto só piorou. Embora se preocupasse com a situação, Hésio preferia deixá-lo aos cuidados de familiares e empregados.
Um dia, quando se machucou ao saltar sobre uma cerca, a perna de Tadeu começou a sangrar. Ele se aproximou do pai e disse: “Por que o senhor não gosta de mim? É por que o que sai do meu corpo é um líquido vermelho sem valor? Mas e se fosse amarelo e brilhante como ouro?” Azeredo não respondeu. Surpreso, se calou e abraçou o filho, clamando por perdão. A cena foi testemunhada ao longe pela prima Maria. Na semana seguinte, três dias antes de completar 12 anos, Tadeu foi encontrado deitado na própria cama, abraçado a uma foto em que ele aparecia brincando com a mãe e o irmão. Havia um pequeno frasco de estricnina ao seu lado. Tadeu estava morto e com os olhos fechados, como se estivesse se preparando para dormir. Quando viu o filho de pijama e sem vida, Hésio saltou pela janela do quarto que ficava no andar superior. O impacto provocou apenas um corte na cabeça, escoriações e um desmaio que durou cerca de duas horas. Ao acordar, teve uma cefaleia intensa que desapareceu só no fim da noite.
Maria Lorelli tentou conversar com o tio sobre a necessidade de velar e enterrar Tadeu, mas Hésio não quis dialogar. Deixou claro que não precisava da ajuda de ninguém, assumindo o compromisso de fazer tudo sozinho. Só exigiu que dois empregados levassem um enorme refrigerador horizontal, que estava na maior despensa da casa, até um quarto ao lado do seu. Mandou que todos saíssem, tomou Tadeu nos braços e o carregou para a sua suíte. Chaveou a porta do quarto e disse aos familiares que retornaria em algumas horas. Antes que alguém fizesse alguma pergunta, entrou em um jipe Land Rover e desapareceu na escuridão, retornando antes do amanhecer, acompanhado de um húngaro misterioso e com um forte sotaque a quem chamava de Gazda. Transferiram Tadeu para o quarto ao lado da suíte e não permitiu que ninguém entrasse no local.
No dia seguinte pela manhã, Azeredo estava mais calmo e convidou parentes e amigos mais próximos para participarem de enterro do filho no cemitério particular da família. Estranharam a atitude porque Hésio nem mesmo havia planejado o velório. Por comiseração e até por medo de uma má interpretação, ninguém cogitou questioná-lo por não deixar ninguém ver Tadeu antes de fechar o caixão. Algumas das pessoas que participaram da cerimônia, segundo Maria Lorelli, comentaram que Azeredo parecia mais lúcido e provavelmente, após o rompante de desespero, logo entraria na fase de aceitação. Quando todos os parentes foram embora, Azeredo dispensou parte dos empregados, justificando que como estava sozinho não precisava mais de tantas pessoas trabalhando na casa principal. Maria insistiu em continuar com o tio por mais alguns dias, mesmo ciente de que talvez não fosse mais bem-vinda. “Desconfiei de algo estranho acontecendo porque o tal húngaro que ninguém conhecia ficou na casa quase uma semana. Além disso, ele não parecia o tipo de pessoa com quem o tio costumava negociar”, argumenta.
Algumas horas antes de Gazda partir, Maria o ouviu cochichando algumas palavras ininteligíveis a Hésio. Sem motivo para prolongar a estadia, a jovem partiu para Curitiba, onde ingressou no curso de medicina da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nas férias, Maria sempre passava alguns dias na fazenda do tio para saber como ele estava e também para reviver lembranças do tempo em que ajudava a tia Clara e os primos Tadeu e Joaquim. Azeredo estava mais comunicativo e não viajava com muita frequência. Na realidade, raramente deixava a fazenda. A propriedade do empresário se tornou o seu mundo, tanto que as negociações diminuíram consideravelmente. Em 1962, apenas nove dos empregados continuaram trabalhando na propriedade. Era o suficiente para manter a operacionalização das atividades locais.
No final daquele ano, por intermédio dos pais, Maria ficou sabendo que Hésio, sem dar explicações, desfez de grande parte dos imóveis e empresas que possuía. Mas a surpresa maior veio em janeiro de 1963, quando Maria encontrou a fazenda abandonada. As plantações estavam morrendo e não havia ninguém no campo. Na casa principal, a sobrinha sentiu um forte mau cheiro vindo da cozinha, onde muitos alimentos estragaram há bastante tempo. Maria também se deparou com móveis cobertos por lençóis brancos. Nada disso pareceu tão estranho quanto uma bem disposta e linear trilha de notas de cruzeiro que começava no cemitério particular da família e terminava no quarto de Hésio Azeredo.
Maria Lorelli seguiu as notas e quando abriu a porta do quarto viu o tio deitado na cama abraçado com o filho Tadeu. Mesmo sem vida, o garoto estava com a aparência do dia em que foi encontrado morto. “Como participei do enterro dele três anos antes, pensei que eu estivesse louca. Até a expressão no rosto de Tadeu ainda era a mesma”, comenta. Após o susto, Maria viu que Hésio também estava morto. Ao lado do corpo, somente um frasco quase vazio de estricnina. Preocupada com a repercussão, a família de Maria evitou comentários e fez o possível para impedir que a história fosse divulgada. Até mesmo no registro de óbito consta que a causa da morte foi um ataque cardíaco. O caixão onde supostamente colocaram o corpo de Tadeu em 1959 sempre esteve vazio. O substituíram por outro e realizaram uma nova cerimônia fúnebre para pai e filho. Desta vez, com a participação de cinco pessoas. Antes de morrer, Hésio Azeredo deixou um testamento destinando 80% da fortuna para orfanatos, asilos e entidades sociais que cuidavam de crianças de rua.
O restante foi dividido entre sete familiares e dois irmãos de criação. Em um bilhete queimado no mesmo dia em que foi lido, Hésio explicou brevemente que o húngaro Gazda era um artista da matéria humana que lhe proporcionou, mesmo que por pouco tempo e com certo requinte ilusionista, se comunicar e se despedir do filho de uma maneira que ninguém jamais entenderia. Anos depois, Maria Lorelli ouviu novamente falar de Gazda em São Paulo. Então soube que o homem misterioso foi um dos mais revolucionários taxidermistas do Leste Europeu, onde trabalhou para czares, aristocratas e líderes socialistas. Se mudou para o Brasil nos anos 1940, fugindo da perseguição nazista aos ciganos.
Curiosidade
Tymbara é uma palavra de origem tupi-guarani que significa “aquele que enterra”.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
O poder de identificação de Louie
Série de Louie C.K. surpreende ao mostrar um comediante como uma pessoa comum
Há três anos, eu estava procurando uma nova série de comédia e me surpreendi com o que encontrei. Quando li a sinopse pela primeira vez, admito que hesitei, até porque hoje em dia é difícil pensar logo de cara em originalidade ou criatividade quando falamos sobre sitcoms protagonizadas por comediantes de stand up. Ainda mais se você passou a adolescência assistindo séries como Seinfeld, The Cosby Show, The Bob Newhart Show, Home Improvement, Roseanne e só pra citar um exemplo até recente – Everybody Loves Raymond. São programas feitos por artistas que marcaram a história da TV norte-americana ao migrarem das casas de shows para as comédias de situação.
Fizeram a diferença, incrementaram e foram copiados até mesmo por comediantes brasileiros que só não admitem isso porque sabem que a maior parte da população brasileira desconhece esses programas. Mas voltando ao principal, a série que me chamou a atenção é Louie, sobre o estilo de vida e o cotidiano de um comediante de quem eu jamais tinha ouvido falar até 2011. Acho que passei cerca de três meses adiando até o dia de assistir ao primeiro episódio.
Me arrependi de não ter assistido antes. A abreviação do nome do comediante, Louis C.K., é uma brincadeira com o sobrenome húngaro Székely que em português significa guarda da fronteira. É uma palavra até curiosa se levar em conta que Louie, como é mais conhecido, é um estadunidense de origem mexicana com um sobrenome magyar. Além de protagonizar a série lançada em 2010, C.K. é o criador, roteirista e diretor desse programa que se tornou uma das melhores aquisições do canal FX dos últimos anos.
Quando comecei a assistir a primeira temporada da série em 2011, um ano após o lançamento, o primeiro elemento que me chamou a atenção foi a estrutura de obra audiovisual independente e intimista. É interessante ver uma abertura de série em que o protagonista passa despercebido pelas ruas de Nova York, a meca do stand up comedy, em direção a uma pequena casa de shows, um ambiente que moldou e transformou Louie em quem ele é hoje.
O programa foge da glamourização e realça fatos pouco conhecidos sobre o vasto universo do stand up comedy nos Estados Unidos. Usa a ironia para instigar risos e reflexões sobre uma parcela da realidade do universo do entretenimento norte-americano. Na série, Louie não é celebrado como um comediante de sucesso. Muito pelo contrário. Também é um sujeito reservado e bem solitário quando não está acompanhado das duas filhas.
Há situações em que nem mesmo é respeitado. Por um lado, é uma forma de entrar em concordância com uma proposta peculiar de humor negro e satirização. Por outro, evidencia com certa pessoalidade as dificuldades vividas por centenas de comediantes que apenas lutam para se manter na ativa, sobreviver e garantir o sustento familiar.
S.K. é alvo das suas próprias piadas e das casualidades do cotidiano. Exemplos são os momentos em que é sacaneado por adolescentes e até por prestadores de serviços do prédio onde mora. Quem assiste Louie, percebe que o humor e o riso estão acima de tudo; são prioritários. Se necessário, o autor é capaz de desconstruir a própria imagem para surpreender o público, até porque o ser humano, independente de qualquer coisa, é suscetível à metamorfose. No programa, Louie C.K. se coloca numa posição de homem comum que simplesmente tem como diferencial o fato de ter escolhido trabalhar com a comédia. Tanto que assim como em qualquer profissão vive situações em que é enganado e passado para trás pelas pessoas com quem se relaciona, inclusive colegas de trabalho.
Logo na primeira temporada, Louie brinca que trilhou esse caminho porque provavelmente não saberia fazer outra coisa da vida. A hipocrisia é um tema recorrente nas piadas do comediante e agrada porque não recai na obviedade. Quando decide ser mais crítico e ácido, se volta para as consequências do capitalismo, hipermodernidade, excessos de urbanização, fobias sociais, paroxismos, estereótipos, falhas do american way of life, xenofobia e preconceito contra imigrantes e minorias étnicas. Aborda com criatividade singular a indiferença, apatia, ausência de sensibilidade e de solidariedade.
Em menos de 23 minutos, e ao melhor estilo single-camera, Louie consegue fazer o espectador viajar por situações corriqueiras e insólitas que o fazem rir e refletir sobre as mais simples e imprevisíveis razões. Em uma das cenas de um episódio, o protagonista brinca com a inevitabilidade de envelhecer ao citar um aniversário em que confundiu a própria idade. Em outra, explora uma situação de intimidade com uma garota que tinha fetiche por homens velhos. Para o comediante, não há matéria-prima mais rica do que a própria condição existencial e as experiências do cotidiano.
Na série, o ato de fazer piada de si mesmo não tem uma conotação pejorativa, desrespeitosa ou apelativa. Na realidade, revela uma certa maturidade e até capacidade de aceitação. Quem o faz com sabedoria demonstra autoconhecimento e mais flexibilidade para encarar as dificuldades cotidianas, principalmente se tratando de relações sociais, sejam casuais ou não.
Até uma desconfortável dor nas costas entra para o script de uma cena em que a realidade flerta com o seu potencial inventivo. A situação faz rir porque explora uma perspectiva fantasiosa de um diálogo entre médico e paciente. Na ocasião, o comediante busca amenizar o seu problema. Em vez de apresentar uma solução plausível, o médico diz que o jeito é Louie começar a se locomover na horizontal, já que o homem não foi feito para andar em pé. Cenas como essa fazem parte de uma proposta de humor surreal, baseado na imprevisibilidade. A intenção é subverter as expectativas do público.
Outro exemplo pode ser visto nos minutos iniciais de Back, o primeiro episódio da quarta temporada, iniciada no dia 5 de maio, em que garis passam em frente ao prédio do comediante recolhendo o lixo. Louie não consegue dormir com o barulho. Para piorar, o nível de desconforto sofre uma gradação acelerada. Assim o autor e protagonista explora uma situação de identificação. Ou seja, qualquer espectador já deve ter vivido um momento em que queria dormir, mas o barulho nas imediações era tão incômodo que se tornava cada vez mais extenuante com o passar do tempo.
Louie usa o humor surreal como intensificador. Logo os lixeiros começam a arremessar as latas de lixo e também a batê-las no chão. Quando o espectador pensa que aquele é o ápice da cena, ele é surpreendido de novo. Dessa vez, com a imagem dos garis chutando a janela do comediante, que não fica nos andares mais baixos do edifício, recolhendo objetos do seu quarto, batendo lata e pulando em sua cama. A ideia é materializar a sensação de perturbação através do surrealismo. Afinal, quem nunca pensou em algo como: “Putz, que barulheira! Parece até que estão aqui no quarto comigo!”
A graça está no fato de que Louie C.K. não se coloca numa posição de comediante de aceitação universal, o que deixa tudo mais engraçado. No episódio Model, da quarta temporada, ele é convidado por Jerry Seinfeld, que também aparece na terceira temporada, para fazer uma breve apresentação em um evento beneficente. Em vez de tentar agradar a um público formado por multimilionários, ele faz piada deles, arrancando risos apenas de uma mulher da plateia. Surge uma situação tão desconfortável quanto cômica.
Louie é tão leve quanto denso, reflexo da sua formação heterogênea como um comediante que além de voyeurista por natureza não esconde suas influências que incluem George Carlin, Richard Pryor, Bill Cosby, Steve Martin, Robert Downey e Jerry Seinfeld. Como a maior riqueza do programa são os diálogos, fica impossível não notar as referências a Woody Allen, o que também se estende à qualidade estética minimalista e trilha sonora, já que tanto o cineasta quanto o comediante partilham do mesmo amor pelo jazz, um recurso que reforça o simbolismo nova-iorquino.