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Curly Howard, um astro do passado que ajudava animais abandonados
Talvez você já tenha ouvido falar de Curly Howard, ou não. Até hoje ele é considerado pela crítica e pelos espectadores norte-americanos como o mais engraçado dos atores e comediantes de um dos grupos de comédia mais bem-sucedidos da história da TV mundial – “The Three Stooges”, ou “Os Três Patetas” ou “Os Três Estarolas”, que começou a ganhar espaço no cinema norte-americano a partir de 1922, mais tarde migrando para a TV e conquistando popularidade mundial.
No entanto, mesmo gozando de muita fama e muito dinheiro, não era isso que mais proporcionava prazer a Curly, o mais jovem dos comediantes do grupo que trazia também no elenco clássico seus dois irmãos – Moe Howard e Shemp Howard, além de Larry Fine. Curly gostava de agradar amigos, colegas e conhecidos – ou quem simplesmente precisasse de alguma coisa. Não se importava tanto com dinheiro, e preferia mais gastar o seu dinheiro com os outros do que consigo mesmo.
Inclusive por tal motivo quase chegou à falência, se não fosse por intervenção do seu irmão Moe Howard. De acordo com o documentário “The Making of The Stooges”, lançado em 1984 e narrado por Steve Allen, o que Curly realmente mais gostava de fazer era ajudar animais abandonados.
Durante anos, quando “Os Três Patetas” excursionaram pelos Estados Unidos, ele dedicava o seu tempo fora dos palcos e dos estúdios procurando e recolhendo animais abandonados. Sempre que necessário, Curly os levava de uma cidade até a outra, e no próprio veículo do grupo, em busca de um abrigo seguro ou um novo lar para eles. Quando não conseguia, Curly Howard dava abrigo temporário aos animais até conseguir um lar definitivo. Infelizmente, Howard faleceu com apenas 48 anos em 18 de janeiro de 1952, vítima de hemorragia intracerebral.
“Você é um ladrão de ar, um ladrão!”
No banco, enquanto eu aguardava a minha vez, um senhor perscrutou um rapaz:
— Você não tem ideia do mal que está fazendo.
— Como?
— Isso mesmo!
— Isso mesmo o que?
— Você inspira e respira alto, com uma intensidade absurdamente desconfortável e desrespeitosa. Isso é ultrajante!
— Como?
— Isso mesmo!
— Isso mesmo o que?
— Você não acha que deveria inspirar e respirar um pouco menos? Não se dá conta de que está me roubando um pouco de ar? Não só meu, mas de todos que estão próximos de nós.
— Respiro normalmente. De boa.
— Não mesmo. Sinto que o ar não está fluindo corretamente desde que você se aproximou. Você é um ladrão de ar, um ladrão! — bradou o homem, chamando a atenção das pessoas mais próximas.
Assustado, o rapaz se levantou e caminhou até o outro lado do banco, temendo que o homem se aproximasse.
O sujeito de meia-idade ainda o assistia à segura distância com um olhar reprovador, ajeitando os óculos sobre o nariz. Cutucou o vizinho e disse:
— Agora ele vai roubar o ar daqueles outros infelizes, é um tremendo ladrãozinho de ar.
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“Pare de fazer essa vozinha tosca”
De manhã, enquanto eu observava os gatos brincando no quintal, escutei uma voz esquisita se projetando a centímetros do chão.
— Ô David, pare de fazer essa vozinha tosca, nhim nhim nhim. Coisa tonta, mano! Você acha que tá falando com quem? Por que vocês fazem isso? Sou adulto! Nem filhote eu sou. Olhe o meu tamanho, louco! Só não faço filho porque você mandou arrancar as minhas bolinhas.
— Quê?
— É isso aí! Você tem problema? Não gosto dessa vozinha. Vá falar assim com as crianças, mano. Aqui não! Vamos conversar de igual pra igual.
— Como?
— É, tem problema sim – disse Porthos, um dos gatos daqui de casa me observando com um olhar enviesado e expressão carrancuda enquanto lambia as próprias patas.
— Outra coisa, você tá de bobeira, né? Porque você tirou o lixador de unhas do nosso quartinho? Você acha que sou o Zé do Caixão? Seu egoísta!
— Que isso! Sempre tratei vocês bem.
— Será? Será mesmo? Tem certeza? Absoluta?
— Então reclame, ora.
— Deixa quieto. Pode ir pra lá. Não quero mais conversar. Quando eu precisar, eu chamo.
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Sete pãezinhos e um fujão
Na padaria do mercado, peço sete pães e aguardo a atendente selecioná-los na sua rotineira cordialidade. De repente, escuto um som fofo e morredouro na sua sutilidade – do tipo “ploft” suave. O pãozinho agoniza no chão. Gerado há pouco tempo, já não tem mais razão de ser, caído sem chance de se restabelecer. Posso ver nos olhos da atendente que ela discorda. Me observa de soslaio, esperando apenas uma distração e, quem sabe, numa plena desatenção, uma oportunidade de enfiar no saco o “pãozinho sujo”, privado da própria vocação.
Não tiro os olhos dela. Ela reage virando as costas para mim, e manipula o saco de pão com uma astúcia que parece sem fim. Não desiste! E meus olhos continuam mirando-a. Escuta meus passos. Sei disso porque vejo suas orelhas vibrando e seus olhos titubeando. Estamos mais próximos do que antes. E minha sombra desarmoniza suas intenções. Ela disfarça por mais um ou outro segundo, sorri em minha direção, e encosta o pãozinho na parte externa do saco marrom.
Há um ou dois minutos, ele era igual aos outros. Ninguém pode negar, mas foi maculado, e aos seus irmãos já não pode se juntar. Que assim seja feita a justiça do alimento! Juro que por um segundo vi um traço que parecia um sorriso. Um pão sorrindo? Impossível! Ou não? A moça da padaria me entrega o saco de pão quente. Ruborizada, me dá um último sorriso, sem velar o ar de derrota.
Quando abro o saco, e, descuidado, inalo a fumaça que me esbraseia o salão, vejo sete irmãozinhos parifomes repousando. Do outro lado, o pãozinho fujão se esconde de baixo de um segundo balcão, e desaparece em um buraco do tamanho de minha mão.
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Uma declaração de amor
Sim, sua suavidade incorporava a própria graça da existência
É sempre difícil se declarar assim para alguém, mas não tenho vergonha de admitir o que sinto por você. Me apaixonei desde a primeira vez que a vi. Foi subitâneo, instantâneo. Ninguém esperava. Você ainda tinha cabelos bem curtos de azeviche. Era reservada e não conseguia velar a timidez. Mas eu pensava em você a maior parte do tempo. A primeira vez que dormimos juntos e a senti acariciando meu rosto e minha boca foi inacreditável, ilimitável. Claro, mesmo com um pouquinho de aspereza de sua parte.
Com o tempo, você se fez cada vez mais presente, e permitiu que nos tornássemos um. Quantas vezes depois de quase um ano amanheci a sentindo em minha boca, percorrendo meus lábios, massageando meu peito? Você fazia tudo no silêncio das sensações; sem falar nada, simplesmente se insinuando como se sua existência se pautasse somente na frugalidade do momento.
Realmente, mergulhamos na mais figadal das experiências insólitas. Você sempre gostou de brincar com minhas reações. Não nego que tive pesadelos em que amarguei o irreal desespero de sua partida. Sim, eu acordava com o rosto úmido, os olhos marejados, receoso em ter de aceitar a famigerada despedida, que por bem jamais aconteceu. Para me animar, você se achegava, se movia de maneira ímpar, extraordinária, como se acompanhasse a aragem serena que invadia a janela de meu quarto.
Você se lembra quando eu confundia sua leveza com o próprio vento nas noites mais frescas? Sim, sua suavidade incorporava a própria graça da existência. Você sempre me fez feliz, um sonhador nesses quase 14 meses em que estamos juntos. Saiba que às vezes ainda fico enciumado quando olham demais para você nas ruas, mas aprendi a aceitar que o seu brilho é independente, único, resplandecente; e que devo tão e somente orgulhar-me de ti.
Sei que sua ternura subsiste em mim depois de compartilhamos tantos momentos inimagináveis. E nada é capaz de abalar isso, nem as manhãs em que você amanhece arredia e indisposta, sem querer ver ninguém. Mas todo bom relacionamento funciona assim, na compreensão do silêncio, no olhar sem ciceronear, na partilha do que deve ser partilhado e no respeito do que deve ser ignorado. Muito obrigado por tudo, Minha Barba.
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A barba
Nunca imaginei que passaria por situação tão imprevisível e desconfortável
Acordei e continuei deitado na cama, com sensação estranha. Mesmo que eu não o visse refletindo no teto, notei meu rosto menor. Quando encostei o polegar e o dedo indicador da mão direita no queixo, estremeci. Ele estava liso. Não havia nenhum fio da minha barba volumosa, fechada e preta. Saltei da cama e corri até o banheiro, sem sentir a barba raleando o peito nu.
Diante do espelho, meu rosto parecia tão pequeno. “Não! Este não sou eu! Não está certo! O que aconteceu?” Até minha cabeça tinha encolhido. Cabeça de pombinha, cabeça de alfinete – julguei-me. E para piorar, rejuvenesci pelo menos dez anos, o que me incomodava sobretudo.
Sem pelos, o rosto lucilava tanto que precisei fechar parcialmente os olhos e me proteger com as palmas das mãos em direção ao espelho. Nunca imaginei que passaria por situação tão imprevisível e desconfortável. Saí do quarto e bati a porta. Senti a brisa tocando a pele desacostumada com a ausência de pelos.
Minha face estava vulnerável, extremamente sensível, desprotegida. Enleado, fui ao banheiro e lancei um pouco de água sobre o rosto. “Como é estranho perceber a água tocando a pele com tanta facilidade.” Escovei os dentes e voltei para o quarto. Sentado na cama, pensei, sem velar melancolia.
Definitivamente não fiz a barba na noite anterior. Nem me aproximei de qualquer tipo de lâmina ou barbeador. De onde surgiu a face lisa, como de alguém que nunca teve pelos faciais? Fiquei irritado, crente de que algum cobiçoso tivesse me furtado os pelos na calada da noite.
Lembrei dos invejosos desbarbados, que não eram poucos. Sempre havia um ou outro em cada esquina, observando de soslaio a minha barba à altura do peito, tremulando com os afagos da aragem. Mostravam os dentes fingindo cordialidade. Patifes! Devem ter-se unido na noite passada.
Me debrucei no chão e comecei a observar atentamente o piso, tentando encontrar pelo menos um fio de barba. Não havia nada. Nada! Nada! A conspiração foi tão bem planejada que não restou sequer um vestígio. “Como? Como? Como? Que pesadelo terrível!”, monologuei, desconcertando o sobrecenho.
Vesti calça jeans, camiseta, par de tênis e saí às ruas na tentativa de amenizar a agitação que me consumia. O céu persistia claro e o sol espalhava sua luz sem reservas. Um belo dia. Para minha surpresa, amigos e conhecidos não me reconheciam. Abordei um camarada, ele franziu a testa, cuspiu no chão e esbravejou que nunca me viu.
— Afaste-se, senhor, afaste-se ou chamarei a polícia – advertiu outro.
Tudo bem. Cruzei a Rua Marechal Cândido Rondon e entrei no Banco do Brasil da Rua Getúlio Vargas. Atravessei a porta com detector de metais e, como sempre fiz, me aproximei do segurança para cumprimentá-lo. O homem se esquivou e ameaçou me golpear.
— Nunca mais se aproxime desse jeito! Nunca mais, senhor! Eu poderia machucá-lo – declarou.
Sem dizer palavra, recuei, peguei uma senha para atendimento no caixa e sentei em uma poltrona azul, observando o painel eletrônico. Preocupado com o tempo, abri minha carteira, mas não encontrei o cartão do banco. “O que vou fazer? Mais tempo perdido, francamente…” Ansioso e irritadiço, respirei profundamente e mirei meus olhos num ponto fixo em um pequeno espaço transparente da divisória que separa a clientela dos guichês do caixa.
Não acreditei no que vi. Condenei-me à insanidade. Algo peludo e esguio na sua pequenez caminhou do outro lado da divisória carregando um cartão alaranjado. Não tinha mãos humanas, mas improvisava dedos com os próprios pelos. Quando percebeu que eu o observava, adiantou-se numa correria fremente por entre as pernas do segurança. Era como um pequeno rei das balizas.
Bastardo! Ingrato! Desgraçado! Seu pequeno filho da puta! Como pôde fazer isso comigo? – gritei dentro da minha própria consciência, sentindo comichão na boca.
Era a minha barba! Na saída do banco, balançou o meu cartão e correu em disparada com seus pés pelosos que mantinham higiênica distância do chão, como se flutuassem. Com receio de chamar atenção, ou com medo do constrangimento de ser ignorado, caminhei disfarçadamente. Lá fora, minha barba corria com ligeireza, quase desaparecendo na esquina.
Desesperado, levei as mãos à cabeça e vociferei:
— Parem! Parem essa barba aí na esquina! Olhem! Parece um homenzinho felpudo! Mas não é! Está fingindo! É um ser dissimulado! É uma barba! Não deixem esse bandido de pelos fugir! Ele furtou meu cartão! Seu pilantra maldito!
Quase ninguém me ouviu. Os poucos que assistiram meu clamor, gargalharam e gritaram: “Mais um bêbado nesta cidade! Sai daí, seu louco! Era só o que faltava! Estou de saco cheio desses estrupícios!” Um deles chamou uma viatura da polícia enquanto eu corria pela calçada. Perto de encostar minhas mãos na barba fujona, senti alguém me puxar pelo braço.
O aroma da barba se desvaneceu como a mais efêmera das ilusões. Travessa, ela parou de correr e começou a caminhar lentamente, chacoalhando meu cartão e fazendo troça da minha situação. Antes de entrar na Casa do Cabeleireiro, esticou as extremidades do longo bigode, empinou a bunda peluda e a balançou diante da soleira.
Minha vontade era esganá-la e afiná-la a socos e pontapés, mas eu não poderia fazer isso com a minha barba. Eu precisava dela inteira. Dela? Não sei! Como definir um substantivo feminino de forma masculina? Tanto faz! Fui levado para a delegacia. Fizeram o boletim de ocorrência, qualificando-me como infrator, perturbador do sossego. Encontrei três colegas de trabalho e, mais uma vez, não fui reconhecido por ninguém.
— Não, nunca o vi. Conheço uma pessoa com esse nome, mas não é ele. Deve ser mera coincidência – comentou um dos camaradas.
Paguei a fiança e fui liberado. Sem nada a perder, narrei ao investigador tudo que aconteceu naquela manhã. Ele recomendou uma consulta com seu cunhado, um psiquiatra. Enfezado, voltei para casa reconhecendo a derrota e decidi escrever uma história sobre o desaparecimento da minha barba. O jornal não quis publicá-la, qualificando-a como inverossímil. Tudo bem. Me contentei em publicar uma nota nos classificados online.
Procura-se barba preta, volumosa e fechada. Tem perfil independente, forma masculina, porte atlético, andar espaçoso, bigode alongado, tipo handlebar, e oculta entre os pelos um cartão alaranjado do Banco do Brasil. Paga-se boa recompensa.
Somente os mais ardilosos oportunistas responderam ao anúncio, trazendo-me barbas de terceiros e das mais variadas cores e formas. A maioria, provavelmente colhida do chão das barbearias.
Ao final da tarde, desisti de procurá-la. Na manhã seguinte, quando levantei e cocei o queixo, corri em direção ao espelho do banheiro. Apenas sorri. Ela voltou para casa. Ao lado da cama, havia um pente e uma série de produtos. Pois é. Deveria ter cuidado mais da minha barba.
Fargo, poesia audiovisual do absurdo
Uma série de TV sangrenta com requinte satírico de tragédia grega
Para quem gosta de séries de anti-heróis, e que misturam drama, suspense e humor mórbido, vale a pena conhecer a série Fargo, da FX, que estreou em 2014. Melhor ainda para quem já assistiu ao filme homônimo dos Irmãos Coen, lançado nos Estados Unidos em 1996. Vale a pena investir algumas horas na série e no filme, já que como a storyline é diferente, assim como atores e personagens, um se soma ao outro nas suas mais diversas perspectivas.
Intrigante e envolvente, a primeira temporada da série tem como ponto alto um elenco composto por atores de séries como Sherlock, Breaking Bad e Dexter, além do tarimbado Billy Bob Thornton no papel de um mercenário enigmático, metódico, idealista e desdenhoso. Quem assiste ao primeiro episódio já fica na ânsia de acompanhar os demais.
Na segunda temporada, de 2015, Fargo recomeçou com um novo elenco e sem qualquer associação com o desenvolvimento da primeira temporada. Após um acidente fatal provocado pela esposa Peggy Blumquist (Kirsten Dunst), o incauto assistente de açougueiro Ed Blumquist (Jesse Plemons), o Todd de Breaking Bad, se vê às voltas com a máfia. Sem se dar conta das próprias ações, causa uma guerra entre mafiosos. A situação só não se torna pior do que já é porque tem como atenuante o policial Lou Solverson (Patrick Wilson) e o xerife Hank Larsson (Ted Danson).
Embora as histórias das duas temporadas sejam completamente distintas, alguns padrões são mantidos. Por exemplo, sempre há a moral, o imoral e o amoral, além de personagens que banalizam a vida e se colocam acima da lei para alcançar qualquer objetivo. Outras similaridades entre os personagens incluem prevaricação, comportamento sociopata e negação dos fatos e da realidade, além de anseios eversivos e autodestrutivos.
E o mais curioso é que tudo isso se mistura também à ingenuidade, irreflexão e descomedimento. Excessos de confiança e de profissionalismo também são apresentados como nocivos. São características que cegam os personagens para as falhas e vulnerabilidades percebidas apenas por quem não compõe aquele cenário ou contexto belicoso.
Um exemplo é a cena em que Hanzee Dent (Zahn McClarnon) planeja executar o casal Blumquist, crente de que, por serem pessoas comuns, eles não mostrariam nenhum tipo de resistência. É cômico reconhecer que a experiência também pode levar à tolice e à subestimação, e o que deveria ser uma vantagem se torna uma desvantagem.
Por pior que seja, a ideia da morte em Fargo não chega ao espectador de forma pesarosa, a não ser a de Betsy Solverson (Cristin Miloti), a esposa do oficial Solverson que sofre de câncer. No mais, o passamento parece inevitável e até incentivado como um recurso maior. Ele reforça os desdobramentos meândricos e tresloucados de uma obra cruenta com requinte satírico de tragédia grega.
A desgraça é apresentada em Fargo como uma poesia do absurdo, do tout est possible, mergulhada numa estética carmesim. E nela quase tudo de significante ou insignificante soa mais valoroso que a própria vida – quase relegada a recurso de figuração em meio a um caos de degenerescências.
O poder de identificação de Louie
Série de Louie C.K. surpreende ao mostrar um comediante como uma pessoa comum
Há três anos, eu estava procurando uma nova série de comédia e me surpreendi com o que encontrei. Quando li a sinopse pela primeira vez, admito que hesitei, até porque hoje em dia é difícil pensar logo de cara em originalidade ou criatividade quando falamos sobre sitcoms protagonizadas por comediantes de stand up. Ainda mais se você passou a adolescência assistindo séries como Seinfeld, The Cosby Show, The Bob Newhart Show, Home Improvement, Roseanne e só pra citar um exemplo até recente – Everybody Loves Raymond. São programas feitos por artistas que marcaram a história da TV norte-americana ao migrarem das casas de shows para as comédias de situação.
Fizeram a diferença, incrementaram e foram copiados até mesmo por comediantes brasileiros que só não admitem isso porque sabem que a maior parte da população brasileira desconhece esses programas. Mas voltando ao principal, a série que me chamou a atenção é Louie, sobre o estilo de vida e o cotidiano de um comediante de quem eu jamais tinha ouvido falar até 2011. Acho que passei cerca de três meses adiando até o dia de assistir ao primeiro episódio.
Me arrependi de não ter assistido antes. A abreviação do nome do comediante, Louis C.K., é uma brincadeira com o sobrenome húngaro Székely que em português significa guarda da fronteira. É uma palavra até curiosa se levar em conta que Louie, como é mais conhecido, é um estadunidense de origem mexicana com um sobrenome magyar. Além de protagonizar a série lançada em 2010, C.K. é o criador, roteirista e diretor desse programa que se tornou uma das melhores aquisições do canal FX dos últimos anos.
Quando comecei a assistir a primeira temporada da série em 2011, um ano após o lançamento, o primeiro elemento que me chamou a atenção foi a estrutura de obra audiovisual independente e intimista. É interessante ver uma abertura de série em que o protagonista passa despercebido pelas ruas de Nova York, a meca do stand up comedy, em direção a uma pequena casa de shows, um ambiente que moldou e transformou Louie em quem ele é hoje.
O programa foge da glamourização e realça fatos pouco conhecidos sobre o vasto universo do stand up comedy nos Estados Unidos. Usa a ironia para instigar risos e reflexões sobre uma parcela da realidade do universo do entretenimento norte-americano. Na série, Louie não é celebrado como um comediante de sucesso. Muito pelo contrário. Também é um sujeito reservado e bem solitário quando não está acompanhado das duas filhas.
Há situações em que nem mesmo é respeitado. Por um lado, é uma forma de entrar em concordância com uma proposta peculiar de humor negro e satirização. Por outro, evidencia com certa pessoalidade as dificuldades vividas por centenas de comediantes que apenas lutam para se manter na ativa, sobreviver e garantir o sustento familiar.
S.K. é alvo das suas próprias piadas e das casualidades do cotidiano. Exemplos são os momentos em que é sacaneado por adolescentes e até por prestadores de serviços do prédio onde mora. Quem assiste Louie, percebe que o humor e o riso estão acima de tudo; são prioritários. Se necessário, o autor é capaz de desconstruir a própria imagem para surpreender o público, até porque o ser humano, independente de qualquer coisa, é suscetível à metamorfose. No programa, Louie C.K. se coloca numa posição de homem comum que simplesmente tem como diferencial o fato de ter escolhido trabalhar com a comédia. Tanto que assim como em qualquer profissão vive situações em que é enganado e passado para trás pelas pessoas com quem se relaciona, inclusive colegas de trabalho.
Logo na primeira temporada, Louie brinca que trilhou esse caminho porque provavelmente não saberia fazer outra coisa da vida. A hipocrisia é um tema recorrente nas piadas do comediante e agrada porque não recai na obviedade. Quando decide ser mais crítico e ácido, se volta para as consequências do capitalismo, hipermodernidade, excessos de urbanização, fobias sociais, paroxismos, estereótipos, falhas do american way of life, xenofobia e preconceito contra imigrantes e minorias étnicas. Aborda com criatividade singular a indiferença, apatia, ausência de sensibilidade e de solidariedade.
Em menos de 23 minutos, e ao melhor estilo single-camera, Louie consegue fazer o espectador viajar por situações corriqueiras e insólitas que o fazem rir e refletir sobre as mais simples e imprevisíveis razões. Em uma das cenas de um episódio, o protagonista brinca com a inevitabilidade de envelhecer ao citar um aniversário em que confundiu a própria idade. Em outra, explora uma situação de intimidade com uma garota que tinha fetiche por homens velhos. Para o comediante, não há matéria-prima mais rica do que a própria condição existencial e as experiências do cotidiano.
Na série, o ato de fazer piada de si mesmo não tem uma conotação pejorativa, desrespeitosa ou apelativa. Na realidade, revela uma certa maturidade e até capacidade de aceitação. Quem o faz com sabedoria demonstra autoconhecimento e mais flexibilidade para encarar as dificuldades cotidianas, principalmente se tratando de relações sociais, sejam casuais ou não.
Até uma desconfortável dor nas costas entra para o script de uma cena em que a realidade flerta com o seu potencial inventivo. A situação faz rir porque explora uma perspectiva fantasiosa de um diálogo entre médico e paciente. Na ocasião, o comediante busca amenizar o seu problema. Em vez de apresentar uma solução plausível, o médico diz que o jeito é Louie começar a se locomover na horizontal, já que o homem não foi feito para andar em pé. Cenas como essa fazem parte de uma proposta de humor surreal, baseado na imprevisibilidade. A intenção é subverter as expectativas do público.
Outro exemplo pode ser visto nos minutos iniciais de Back, o primeiro episódio da quarta temporada, iniciada no dia 5 de maio, em que garis passam em frente ao prédio do comediante recolhendo o lixo. Louie não consegue dormir com o barulho. Para piorar, o nível de desconforto sofre uma gradação acelerada. Assim o autor e protagonista explora uma situação de identificação. Ou seja, qualquer espectador já deve ter vivido um momento em que queria dormir, mas o barulho nas imediações era tão incômodo que se tornava cada vez mais extenuante com o passar do tempo.
Louie usa o humor surreal como intensificador. Logo os lixeiros começam a arremessar as latas de lixo e também a batê-las no chão. Quando o espectador pensa que aquele é o ápice da cena, ele é surpreendido de novo. Dessa vez, com a imagem dos garis chutando a janela do comediante, que não fica nos andares mais baixos do edifício, recolhendo objetos do seu quarto, batendo lata e pulando em sua cama. A ideia é materializar a sensação de perturbação através do surrealismo. Afinal, quem nunca pensou em algo como: “Putz, que barulheira! Parece até que estão aqui no quarto comigo!”
A graça está no fato de que Louie C.K. não se coloca numa posição de comediante de aceitação universal, o que deixa tudo mais engraçado. No episódio Model, da quarta temporada, ele é convidado por Jerry Seinfeld, que também aparece na terceira temporada, para fazer uma breve apresentação em um evento beneficente. Em vez de tentar agradar a um público formado por multimilionários, ele faz piada deles, arrancando risos apenas de uma mulher da plateia. Surge uma situação tão desconfortável quanto cômica.
Louie é tão leve quanto denso, reflexo da sua formação heterogênea como um comediante que além de voyeurista por natureza não esconde suas influências que incluem George Carlin, Richard Pryor, Bill Cosby, Steve Martin, Robert Downey e Jerry Seinfeld. Como a maior riqueza do programa são os diálogos, fica impossível não notar as referências a Woody Allen, o que também se estende à qualidade estética minimalista e trilha sonora, já que tanto o cineasta quanto o comediante partilham do mesmo amor pelo jazz, um recurso que reforça o simbolismo nova-iorquino.
A versão sulista do poema Odisseia
Filme conduz três condenados por importante etapa da história dos EUA
Lançado em 2000, o filme O Brother, Where Art Thou? (E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?), dos irmãos Joel e Ethan Coen, é uma comédia que mostra três foragidos de uma prisão no Mississippi fazendo o possível para manterem-se livres e voltarem para casa.
Inspirado no poema épico Odisseia, do poeta grego Homero, E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? tem como cenário o Sul dos EUA durante a Grande Depressão. No filme, um cego faz a introdução das aventuras que estão por vir. “Vocês três acorrentados encontrarão fortuna, mas não a que procuram. Vão viajar por uma estrada repleta de perigos. Verão coisas maravilhosas, até mesmo uma vaca no telhado de uma fazenda de algodão. A estrada pode dobrar-se e seus corações podem se abater, mas mesmo assim sigam pela estrada que os levará à salvação”, profetiza.
Os três protagonistas são interpretados por George Clooney, John Turturro e Tim Blake Nelson que fazem os papeis de Ulysses, Pete e Delmar. São personagens azarados que conduzidos pela história incorporam com muito bom humor a cultura sulista estadunidense. O trio conhece Tommy Johnson, o rapaz que foi até uma encruzilhada vender a alma ao diabo para se tornar um músico virtuoso, e confronta a organização racista Ku Klux Klan. Curiosamente, o diabo descrito por Johnson tem as mesmas características do xerife que os persegue ao longo do filme.
Uma clara referência ao poema Odisseia é o personagem Big Dan, interpretado por John Goodman, um vilão que tem apenas um olho, assim como o ciclope mitológico. Enquanto no poema os homens de Odisseu abatem o gado, na obra dos Irmãos Coen o gângster Baby Face Nelson quem atropela uma vaca. Além da bela fotografia e das tomadas que remetem ao realismo fantástico, outro ponto alto de E Aí, meu irmão, cadê você? é a antológica trilha sonora regionalista que pauta os acontecimentos, dialogando perfeitamente com o enredo do começo ao fim.
O retorno de Brancaleone
Quando Monicelli ironizou os cavaleiros cruzados
Seguindo a fórmula de L’armata Brancaleone (O Incrível Exército de Brancaleone), o cineasta italiano Mario Monicelli lançou em 1970 o clássico Brancaleone Alle Crociate (Brancaleone Nas Cruzadas). O filme é uma anti-heroica e bem-humorada crítica a visão romântica sobre os cavaleiros cruzados.
Em Brancaleone Alle Crociate, o protagonista anti-herói Brancaleone (Vittorio Gassman) é líder de um exército de perdedores que viaja rumo à Terra Santa. Logo no início da jornada, a ausência de um estratagema, que dá a tônica da falta de hierarquia e de propósitos coletivos, termina em massacre. Então o trapalhão Brancaleone decide formar uma nova armada, composta pelos sobreviventes; nada mais que derrotados com anseios totalmente individualistas. Tudo isso soma para ratificar com muita ironia o extremo da contradição existencial do homem.
No segundo filme da franquia Brancaleone, Mario Monicelli novamente faz críticas escrachadas e satíricas sobre o perfil do cavaleiro medieval, figura muito humana e caricata na obra. A ideia do autor é justamente antagonizar a imagem clássica do cavaleiro – o que muitos livros e filmes épicos vendem como exemplo de fidalguia. O cineasta não poupa nem a Igreja Católica ao mostrar uma briga de egos entre os papas Gregório e Clemente. Um ordena o genocídio de seguidores do outro, quando na realidade a religião deveria cumprir o seu papel de valorizar a vida.
Há também, como de costume na filmografia de Monicelli, o clássico humor pastelão. Exemplos são as cenas em que Brancaleone confronta o seu companheiro e teimoso pangaré Aquilante, uma paródia do cavalo Rocinante, de Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes Saveedra. Brancaleone Alle Crociate é uma comédia de gradação em que o espectador é estimulado a rir de situações corriqueiras e subjetivas.