Archive for May, 2015
O universo de Mateus
Inocência e fantasia na praça da Igreja São Sebastião
Em uma terça-feira, às 9h50, eu estava na praça em frente à Igreja São Sebastião aguardando a chegada de uma equipe de uma emissora de TV para dar uma entrevista sobre a história e o trabalho do artista plástico húngaro Bálint Fehérkúti. Enquanto eu esperava, uma criança de três anos se aproximou e segurou minha mão.
Quando olhei para o lado, o garotinho de cabelos castanhos emitiu alguns sons com a boca, mas não o entendi. Então perguntei a moça, sua tia que o acompanhava, se ela sabia o que ele queria. Surpresa, me explicou que nunca o viu se aproximar de um estranho, mas que de alguma forma o menino simpatizou comigo, gostou de mim.
Com um olhar fixo e um sorriso largo e fácil, o garotinho apontou para uma construção do outro lado da rua Getúlio Vargas. Sua atenção foi atiçada por sons graves e agudos emanados de trás de um paredão enorme de tapumes. Conforme o barulho aumentava, a sua excitação também. Vez ou outra apertava minha mão com força, puxava meu braço e levantava o seu dedo indicador da mão direita num gesto reflexivo digno de Arquimedes de Siracusa.
Descobri que Mateus fala poucas palavras, mas com ajuda profissional está aprendendo a formular as primeiras frases. Tem grandes chances de conseguir falar perfeitamente antes de ingressar no ensino fundamental. Por enquanto, quando fica muito ansioso, os sons se tornam indecifráveis para quem não o conhece bem. Ainda assim, pelo menos durante o período em que esteve próximo de mim o vi sorrindo quase toda hora. Cheio de energia, andava de um lado para o outro, batia palmas e sempre que ouvia um novo som chamava minha atenção querendo saber se eu também partilhava a mesma sensibilidade e audição apurada.
Me recordo que Mateus me pediu 13 ou 14 vezes para levá-lo até a obra do outro lado da rua. Com o tempo a sua curiosidade só aumentava. A cada pedido me vi obrigado a pensar rápido e encontrar uma forma de convencê-lo que ele poderia se distrair com outras coisas. Com palavras diferentes, expliquei várias vezes que não permitem a entrada de crianças em áreas de construção, nem mesmo de adultos, já que os tapumes também servem para coibir a presença de desconhecidos. Além disso, ele poderia se machucar.
Depois de observar atentamente tudo que eu dizia, Mateus ficava em silêncio e aceitava a explicação por alguns minutos. O que ajudava a minimizar sua ânsia era o barulho que ocasionalmente cedia ao silêncio e permitia que os cantos dos pássaros e os galhos balançados pelo vento fossem notados. No entanto, estava tão atento e curioso que logo um som diminuto e esparso vindo das ferramentas dos pedreiros fazia com que ignorasse até o barulho intempestivo de motos, carros e caminhões.
Parecia que não havia mais nada ao seu redor, a não ser a própria inocência cativada pela curiosidade. Para a maioria das pessoas uma obra costuma ser apenas uma obra, ou seja, um evento ordinário. Mateus via muito mais do que isso. Foi o que eu percebi quando vi seus olhos amendoados se agigantarem. Talvez imaginasse até batalhas por trás dos tapumes, pedreiros voadores, martelos e marretas que trabalham sozinhos, buracos que funcionam como portais para outros mundos, máquinas falantes e um universo multicolorido digno do desenho animado “Bob, o Construtor”. Afinal, a imaginação e a criatividade de uma criança é inestimável.
Por um momento consegui redirecionar o seu foco de atenção quando mostrei quatro homens instalando corrimãos na escadaria da Igreja São Sebastião. Rapidamente descrevi para ele o que estavam fazendo. Ao perceber que dois homens usavam ferramentas elétricas a pouco mais de 30 metros de distância, deu um grito abafado e ao mesmo tempo extasiado, seguido por um sorriso e um aperto de duas mãos na minha mão direita.
Mais uma vez não tenho dúvida de que aquela cena, para mim trivial, representava no universo de Mateus muito mais do que eu possa imaginar. Mostrei a ele mais algumas situações comuns do cotidiano que estavam ao nosso redor. Para cada descrição, aquele garotinho tinha uma nova reação de satisfação. É o tipo de experiência que surge com o acaso e faz qualquer adulto se questionar sobre a forma como encara a vida e o mundo.
Antes de eu me despedir, Mateus levantou os dois braços para que eu o pegasse no colo. Ficou o tempo todo sorrindo e olhando fixamente para mim. Quando o desci, segurei na sua mão mais uma vez, me despedi e caminhei em direção ao interior da igreja. Mateus me acompanhou, com os olhos.
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Uma manhã em algum lugar da Vila Alta
Um breve relato de histórias e experiências inusitadas na periferia de Paranavaí
Ligo à noite para o artista plástico Luiz Carlos Prates e combinamos de conversar pela manhã na sua casa, na Vila Alta, periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. O papo seria sobre a Oficina do Tio Lú, um projeto de recuperação de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Chego antes das 9h e percebo que o portão está cadeado. Um vizinho acena e grita que o “Seu Luiz” pegou a “magrela” e foi ao centro. Faço outra ligação para o Tio Lú e ele pede que eu o aguarde. Enquanto isso fico em frente à Casa 10 da Rua B observando o movimento de pessoas, veículos e animais. À esquerda, uma estrada de terra que dá acesso à Farinheira Cassava possui o maior fluxo de veículos do bairro. Carros, caminhões, picapes e motos circulam dia e noite pelo local. Do outro lado, é possível ver o Bosque Municipal de Paranavaí, inclusive alguns macacos e pássaros que se aproximam da cerca de arame que separa a mata nativa da rua.
Nos primeiros minutos após a minha chegada, três garotinhas com idade entre 12 e 13 anos me chamam a atenção enquanto percorrem uma estrada de terra. Se esforçam para se defender das cortinas de poeira deixadas por uma sequência de caminhões. Tenho a impressão de ver cada uma carregando uma boneca enquanto conversam. Só percebo o engano quando ouço um choro intervalado. Não eram bonecas, mas sim bebês. Quando as três descem um pouco mais, um rapaz me diz que duas das meninas já têm dois filhos. “Essas novinhas engravidaram dos vizinhos lá da rua de baixo. Isso não é anormal aqui, acontece com frequência”, explica. Quando o rapaz vai embora, a simpática Dona Lindinalva, namorada do Seu Luiz, estaciona a bicicleta, me cumprimenta e faz questão que eu pegue uma cadeira para não precisar esperar em pé.
Assim que ela se despede para cuidar dos afazeres domésticos, chega R.D.S., um garoto de 13 anos que conheci em 2012. “Vi você descendo de carro lá na rua de cima, então vim pra cá”, diz sorridente enquanto segura uma gaiola com um coleirinho chamado Maverick. O passarinho foi capturado por R.D.S. que gosta de domesticá-los. Ocasionalmente os vende pela melhor oferta. Depois de mudar a gaiola de posição três ou quatro vezes, evitando expor a ave ao sol, ele grita para um vizinho. “Ô véi, quer comprar coleirinho?” O rapaz então pergunta o preço e R.D.S. responde que aceita R$ 30. A negociação se estende por um bom tempo, até que o vizinho diz que paga pelo coleirinho o que tiver no bolso. “E aí, topa ou não? É pegar ou largar”, desafia.
R.D.S. fica tentado em aceitar, mas tem receio de que o rapaz não tenha dinheiro algum. Na Vila Alta, quem concorda com esse tipo de transação não pode desfazer o negócio se a surpresa for desagradável. “Sei não, viu? Acho que você tá me ‘zuando’”, desconfia o garoto. O sujeito gargalha e se cala. O silêncio sincronizado parece atrair a atenção de Maverick que começa a cantar e voar de um lado para o outro da gaiola. Ao ver a agitação do coleirinho, pergunto a R.D.S. por que ele prende o passarinho dentro da gaiola. “Pra cuidar dele. Ensino a cantar melhor ainda. Sou bom nisso, tanto que eles andam em cima do meu ombro, braço e cabeça”, argumenta e acrescenta que com o tempo abre a gaiola e deixa o pássaro livre.
R.D.S. tem boas lembranças da época em que passava horas observando as aves numa área conhecida como “barragem”, bastante frequentada pelos jovens do bairro. Para chegar ao local é preciso ir até o final da Vila Alta e atravessar um brejo a pé. “A ‘barragem’ foi abandonada quando começaram a matar gente lá. O pessoal ficava com medo. Depois de muito tempo melhorou de novo”, garante R.D.S. que brincava no lugar quase todos os dias. Em seguida, o garoto assobia para o coleirinho que retribui cantando em um tom ainda mais elevado. R.D.S. confidencia que muita gente também gostava de fumar maconha na “barragem”. Jovens com idade entre 8 e 15 anos recebiam o produto de um mesmo fornecedor. “A gente pagava R$ 5 em três cigarros grandes de maconha. Tinha época que queria fumar toda hora. Não dava vontade de fazer mais nada. Ficava ‘relaxadão’”, revela.
Para sustentar o vício, R.D.S. percorria o lixão da Vila Operária e o da Vila Alta procurando fios de cobre. Com a venda, ia até uma “boca de fumo” e comprava maconha. Por vontade própria e incentivo de bons amigos, o garoto parou de fumar há seis meses e já está se preparando para voltar a estudar. O que motivou o adolescente a passar a maior parte do tempo nas ruas e também a se tornar usuário de drogas ainda na infância foi o mau relacionamento familiar. R.D.S. mora com os avós e desde que aprendeu a andar teve de aceitar a ausência da mãe e a convivência com um avô alcoólatra que o xinga diariamente. “Sempre diz que sou lixo, que atrapalho a vida dele e nunca vou ser ninguém. Pra ele, eu não sirvo pra nada”, reclama em tom de mágoa.
Um dia o garoto teve uma intoxicação alimentar e precisou ser socorrido pelo artista plástico Luiz Carlos Prates. No Pronto Atendimento Municipal explicaram que o caso era grave e se tivessem demorado um pouco mais o adolescente poderia ter morrido. “Meu pai é legal. Gosta de me dar presentes. A gente mora na mesma cidade, mas ele só vem me buscar uma vez a cada dois meses”, explica. O relacionamento com a mãe sempre foi tenso. Por isso, apesar dos conflitos, R.D.S. ainda prefere morar com os avós.
Enquanto conversamos, uma senhora com pelo menos 60 anos desce a rua da Farinheira Cassava equilibrando um botijão de gás sobre a cabeça. Ao lado, um cãozinho mestiço de pelagem escura a acompanha como se fosse um guarda-costas. Minutos mais tarde, Seu Luiz chega de bicicleta e quatro jovens se aproximam. Depois de sentar em uma cadeira sobre a calçada, o artista plástico mostra uma mulher caminhando ao lado do Bosque Municipal. Aparentando ter no máximo 30 anos, a jovem já teve mais de 15 filhos. “É uma moça que poderia ter se esforçado e seguido por um caminho diferente. Ela comandava uma casa de prostituição em São João do Caiuá [a menos de 30 quilômetros de Paranavaí]. Veio pra cá porque a expulsaram de lá. Teve uma época em que o trabalho dela era aliciar as meninas do bairro para se tornarem prostitutas”, confidencia Seu Luiz.
Pela mesma rua percorrida pela moça chega à esquina um senhor com cerca de 70 anos conhecido como Didi. Espancado na noite anterior, o idoso perdeu quase todos os dentes. Restaram apenas dois ou três e algumas lascas ainda presas à gengiva. Visivelmente bêbado e com as pernas trêmulas, Didi tenta articular algumas frases confusas enquanto sorri e levanta os braços em direção ao céu. Parece viver o seu momento em um mundo tão pequeno que fica alegre ao perceber que é observado por algumas pessoas. “Meu nome é Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgina Mufumbbo. Isso mesmo! Mufumbbo com b duplo e Mocó com acento no segundo o!”, comenta aparentemente “anestesiado” pela embriaguez. Quando falam com ele, o homem fica eufórico, sente-se importante por receber um pouquinho de atenção.
Com a partida de Didi, Seu Luiz relata a história do dia em que pediu a um dos seus alunos para lhe arrumar um cachorro preto. “Expliquei que queria um animalzinho com essa descrição para me fazer companhia”, enfatiza. Uma semana depois do pedido atendido, o artista plástico estranhou que o cachorro estava com a pelagem opaca e ficando esbranquiçado. Foi quando se deu conta que como o garoto não conseguiu encontrar nenhum cachorro preto, ele pegou um cão branco e o pintou. “A tinta foi desaparecendo. Nem acreditei no que tinham feito”, lembra rindo.
Antes de eu ir embora, dois adolescentes começam a falar baixo durante a passagem de um homem de não mais que 20 anos. O rapaz de sorriso enviesado, estatura mediana, magro e cabeça raspada só anda pelo bairro em horários estratégicos. Marcado para morrer por uma facção criminosa, o jovem segue a vida enquanto pode. “Não chama o doido aqui não. Se os caras ‘emparelharem’ ele aqui, todo mundo vai levar bala junto”, reclama um rapaz alto e corpulento que abandonou o crime há alguns anos. Sem demora, o jovem dobra a esquina e não o vemos mais. No chão por onde passou, ficam apenas as marcas irregulares da sola do par de chinelos. Ninguém sabe se ele vai sobreviver a mais um dia ou se vai ser encontrado assassinado em algum lugar da periferia de Paranavaí.
Por volta das 11h30, uma picape Ford F-350 preta cruza a Rua B. Mais adiante, uma moça desce do veículo e rapidamente entra dentro de casa. “Aqui é assim. Muitos homens ricos, principalmente de meia-idade, vêm aqui pra iludir e se aproveitar dessas meninas. São sujeitos casados, com filhos e que ‘vendem mentiras’. Sonhadoras, elas acreditam que eles gostam delas, que vão mudar de vida, mas quase sempre são descartadas como se fossem lixo”, critica Tio Lú, acrescentando que não são poucos os homens de alto poder aquisitivo que procuram garotas menores de idade no bairro.
Pouco antes das 12h, dou uma carona para o Seu Luiz até o centro de Paranavaí. Deixamos a Rua B e subimos em direção à Vila Operária. Faltando 200 metros para sair da Vila Alta, vemos um senhor aparentando ter entre 55 e 65 anos abrindo a porta de uma picape Hilux branca para uma adolescente entrar. “Essa menina tem 15 ou 16 anos”, revela o artista plástico. Alguns segundos depois o homem acelera e a picape desaparece em uma curva a 100 metros do Centro da Juventude de Paranavaí.
Uma noite no fliperama
Frequentar a Play Time me garantia uma aula semanal de “experiência mundana”
Em 1993, meu pai levava eu e meu irmão mais velho, Douglas, uma vez por semana na Play Time, uma famosa casa de fliperamas situada na Rua Manoel Ribas, no centro de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Chegando ao local, um paraíso juvenil de mais de 20 máquinas do tipo arcade que mais lembrava o cenário de um filme teenager estadunidense dos anos 1980, ele falava para formarmos uma concha com as mãos e distribuía dez fichas para cada um. Enquanto jogávamos, nosso pai ficava ao lado, no Bar Toyokawa, mais conhecido como Bar do Kengo.
Eu era pequenino, tinha menos de dez anos e estudava na Escola Vicentina São Vicente de Paulo numa época em que as professoras, principalmente freiras, colocavam os alunos de castigo por mau comportamento. O meu mundo era tão minúsculo quanto eu fui na infância. Cheio de limites, me fazia ter uma visão bem canhestra da realidade, embora eu fosse muito curioso. Por isso o fliperama significava mais do que diversão baseada em jogos eletrônicos.
Foi nas idas noturnas à Play Time que conheci crianças da minha idade que já bebiam, fumavam e se drogavam. Tinham uma linguagem própria que fazia eu me sentir um pouco estrangeiro. Era um universo que me intrigava e ao mesmo tempo me amedrontava. Eu os via de longe e às vezes deixava de jogar apenas para observá-los. Encostavam suas caixas ao lado das máquinas e acompanhavam os jogadores com os olhos. Davam palpites na tentativa de ganhar a confiança, uma oportunidade e quem sabe até uma ficha.
Lembro quando um desses garotos se aproximou de mim. Era um engraxate de não mais que 12 anos. Eu estava entretido com um jogo de tiros com cowboys chamado Sunset Riders, um dos mais disputados do lugar. De repente, ele cutucou meu ombro e disse: “Ei, você pode me deixar jogar? Sou bom nisso. Passo fácil essa fase aí. Deixa, vai!” Acabei cedendo. Era um garoto negro, franzino, de cabeça raspada e com as unhas cheias de vestígios de graxa. Conforme ele jogava, eu prestava atenção em suas mãos e expressões faciais. Era melhor que eu. Jogava com muita vontade.
A impressão que tenho até hoje daquele momento é de que enquanto aquele garoto não vencia na vida ele merecia pelo menos vencer no jogo. E era o que acontecia. A verdade é que não o deixei jogar pensando se ele passaria de fase ou não. Tanto que depois comecei a dividir metade das minhas fichas com ele, independente do desempenho. Em troca, conheci um pouquinho do seu mundo numa permuta não declarada. Me contou que trabalhava das sete até as oito da noite – nem sempre recebia pelo serviço que prestava. Às vezes tinha que fugir para não apanhar dos clientes mais abusivos.
O chamavam de Graxinha e me recordo, numa reminiscência enuviada e parcial, quando revelou que nasceu e foi criado na Vila do Sossego, atual Vila Alta, na periferia de Paranavaí. “É um lugar pra lá do buracão. Moro do lado, numa barraca. Mas nem dá nada. Não vou pra casa sempre. Acostumei a dormir por aí, em banco de praça ou na rodoviária. Assim não preciso ir e voltar todo dia”, relatou. Ficou atônito, ou pelo menos fingiu, quando um dia me pediu um isqueiro e expliquei que não tenho. “Ué, você não fuma? Vai me dizer que também não bebe?”, questionou. Quando respondi sem jeito que não, Graxinha fez uma expressão mimética de surpresa, se calou por segundos e soltou uma gargalhada. Fiquei envergonhado. Só balancei a cabeça e dei um sorriso acanhado.
Desinibido, mas cuidadoso, circulava por Paranavaí só em turma. Dizia que era perigoso andar sozinho porque “de noite a vida do marginal vale menos do que durante o dia”, algo assim. O grupo era formado por sete ou oito engraxates, todos menores de idade. Meu pai conhecia cada um e sempre pagava algo para eles comerem e beberem. Acho que fazia muito mais do que isso. Com o tempo, me dei conta que meu pai, que um dia também foi engraxate, não me levava apenas para jogar, mas também para aprender mais sobre a vida e o mundo. O contato com esses garotos garantia isso. Era como uma aula semanal de “experiência mundana”.
No mesmo período eu soube que muitos dos engraxates de Paranavaí que tinham essa faixa etária inalavam cola de sapateiro, tíner e benzina. Uns diziam espontaneamente que era o jeito de suportar a vida na rua ou o frio rigoroso que chegava no final de junho, ainda que pudesse afetar a mucosa do nariz. Ingenuamente outros se “fantasiavam” de adultos com um cigarro em uma mão e um copo de cerveja na outra. Na ausência de referências, eram precoces que viviam à sua maneira numa época em que crianças podiam tranquilamente comprar bebida alcoólica ou tabaco.
Apesar disso, sempre vi esses garotos como bastante amigáveis. Apenas tentavam sobreviver com o que conseguiam engraxando sapato até tarde da noite. Me pareciam destemidos, mesmo quando estavam agachados e cabisbaixos nas esquinas, armazenando suas ferramentas de trabalho dentro de caixas personalizadas com palavras aleatórias, frases e desenhos feitos à caneta. Na Play Time e em muitos outros estabelecimentos comerciais, alguns clientes os desprezavam tanto que os xingavam e iam embora quando eles chegavam. Os engraxates não gostavam de briga, então só ignoravam. Felizmente, o Eduardo, proprietário da casa de fliperamas, sempre os recebia com cordialidade e respeito.
Um dia, sem avisar ninguém, Graxinha desapareceu. A última vez que o vi ele estava sorrindo e acenando enquanto pegava carona no estribo de uma Caloi Cross branca como a cor do seu boné. Uns afirmam que foi embora de Paranavaí, outros comentam que o assassinaram. Quase 20 anos depois, conheci o lugar onde o jovem engraxate viveu. Não havia mais nada. No local, só um vazio, alguns restos mortais de cães e gatos, uma placa com um trecho do salmo 22, um pouco de lixo e um céu que parecia mais baixo e nebuloso do que em qualquer outra parte da cidade.
Funk faz jovens da Vila Alta sonharem com o sucesso
Adolescentes cantam sobre desejos de riqueza e a difícil realidade da periferia de Paranavaí
Foi numa terça-feira às 9h que estacionei o carro em frente a uma casa da Rua B, na Vila Alta, periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Danilo Medeiros França, de 15 anos, estava ansioso, sentado em uma cadeira sobre a calçada aguardando a minha chegada para uma entrevista. Como o conheço há anos, o jovem logo ficou à vontade para conversar sobre uma transformação cultural que tem chegado a todos os bairros marginalizados de Paranavaí. Estou falando da expansão do funk e o que o gênero representa para uma juventude cada vez mais suscetível ao mundo do crime e das drogas.
Na internet e nas rodinhas de discussões de quem não vive a realidade da periferia, o gênero é bastante criticado. Não faltam pessoas se empenhando em desqualificá-lo culturalmente. O acusam de ser imoral, contraventor, de objetificar as mulheres, de usar linguagem obscena, de fazer apologia ao crime e também de abordar temas superficiais. Em meio a tanto preconceito por se identificarem com um estilo musical ainda impopular em Paranavaí, jovens que moram na Vila Alta estão se unindo para mostrar que o funk vai muito além do senso comum. É um gênero com muitas ramificações e algumas surgiram da necessidade de sonhar e lutar contra a invisibilidade social.
Em Paranavaí, desde os anos 1990 o rap era o gênero preferido dos jovens da periferia, realidade que começou a mudar no final da década passada. Dois fatores podem ser apontados como determinantes para o crescente interesse local pelo funk. Um é a facilidade de acesso à internet, o que permitiu que os jovens da Vila Alta acompanhassem e se identificassem com o mundo dos funkeiros das periferias de São Paulo e Rio de Janeiro que viviam na pobreza e conquistaram o sucesso. O outro é a influência de migrantes paulistanos e cariocas que constantemente chegam aos bairros periféricos de Paranavaí. Junto com suas aspirações econômicas, ou seja, de um futuro melhor, trazem também uma bagagem cultural que desperta sonhos e admiração.
Hoje o funk é adotado por esses jovens como símbolo de contestação social. E até mais do que o rap porque tem um poder de popularização ainda maior, além de garantir um retorno financeiro mais rápido e maiores chances de ascensão social. Ainda assim, é unânime o desejo dos funkeiros da Vila Alta de Paranavaí, onde a cultura paranaense se mistura e se confunde com a paulista, de não abandonarem a periferia. “Se pudesse, ‘fechava’ lá pra São Paulo e ‘caía’ pra show. Já era! Depois é só voltar pra cá, construir uma casa e continuar morando aqui”, diz o funkeiro Danilo França, mais conhecido como MC Neguin da VL.
Garoto prodígio das rimas e considerado uma das promessas do funk local, Neguin começou a cantar com dez anos quando seu irmão mais velho lhe mostrou “os piás das quebradas mandando a letra”. “Pensei comigo: ‘Po, tenho o dom. Por que não vou cantar? Comecei aqui mesmo, também com o incentivo do MC Luan”, explica. Para “destravar”, termo que os funkeiros usam em referência ao momento em que conseguem rimar sem gaguejar, Neguin, que na época era chamado apenas de Danilo, ia todos os dias até o Bosque Municipal de Paranavaí, onde aproveitava a solitude e o anonimato garantido pela mata densa para cantar sem constrangimento.
Quando perdeu a timidez e ganhou a habilidade de fazer “rima na hora”, começou a escrever as primeiras músicas. “Quem trouxe as ideias pra gente foi o MC Caíque, de São Paulo. Ele ensinava a gente sobre o funk. Falava como era, como funcionava e incentivava a cantar. Se hoje temos isso na Vila Alta, foi graças a ele”, garante e acrescenta que o amigo retornou para São Paulo. Da primeira parceria entre MC Luan, MC Neguin e MC Caíque, nasceu a composição “Vem com nós, bandida”, uma música que convida uma moça para um passeio. “O refrão é assim: ‘Vem com nós, bandida! Vem com nós, bandida! Esbanjar de Santa Fe e se preferir na Captiva’. Fizemos essa, mas depois não quis mais saber desse funk não”, comenta Neguin que escreveu a letra quando ainda trabalhava fazendo fretes com uma carroça.
Sobre a vertente ostentação, o funkeiro gosta de falar de automóveis, motos e casas que sonha em ter um dia. Cita como exemplos Lamborghini Gallardo, carros de luxo da Mercedes-Benz e motos Honda CB 600 (Hornet), Suzuki Hayabusa, Yamaha R1 e Honda CBR 1000 Repsol. São veículos que Neguin costuma ver enquanto navega pela internet. “No mundo que a gente vive, você só existe e é respeitado pelo que tem”, destaca o adolescente, justificando porque os jovens da periferia gostam de falar de ostentação.
Enquanto converso com o funkeiro, outros garotos com idade entre 12 e 15 anos se aproximam e dão depoimentos que confirmam o fato de que conversar sobre riquezas e ouvir músicas sobre o tema faz com que se sintam melhor, esperançosos de uma vida completamente diferente da atual. “Acho que falar de riqueza atrai riqueza, né? São coisas boas”, frisa o menor da turma que usa um chinelo de cada cor e de tamanhos diferentes. De acordo com MC Neguin da VL, que atualmente está no primeiro ano do ensino médio e ocupa o tempo com cursos e oficinas gratuitos, o funk é mais uma chance de conquistar melhores oportunidades. “Com dinheiro, dá pra estudar até em faculdade particular. Respeito a gente já tem, pelo menos aqui na ‘quebrada’. Só falta o dinheiro”, pontua com uma risada expansiva.
Com apenas 15 anos, o MC tem conquistado popularidade na periferia por cantar sobre a realidade da Vila Alta. Neguin une a sonoridade do funk com a consciência social do rap. Quando o pai estava preso, costumava visitá-lo no Setor de Carceragem Temporária (Secat) da 8ª Subdivisão Policial (SDP) de Paranavaí. Lá, o adolescente ouvia histórias sobre a vida dos presos. “Comecei perguntando pro meu pai como era a vida lá dentro. Então trazia na ‘mente’, chegava aqui e ‘destravava’. Eu era muito curioso sobre a rotina desses caras”, argumenta. Uma das preferidas do MC Neguin da VL e de muitos moradores da Vila Alta é a música “Essa é a vida do Magrão” que fala de um homem que deixou Foz do Iguaçu, veio a Paranavaí praticar um assalto e acabou preso. “O Primeiro Comando da Capital [PCC] pegou o ‘bonde’ pra ir pro presídio e os outros ficaram. Daí planejaram uma fuga, houve rebelião e ele acabou morto”, confidencia Neguin.
Se um dia surgir uma oportunidade de gravar uma música em estúdio, o adolescente diz que “Essa é a Vida do Magrão” deve ser a primeira a ser lançada. “Vou te passar um trecho: ‘A minha coroa chora toda noite. É só decepção. E nessa vida louca é só momento de tensão. Não é fácil não. Não é fácil não’ e vai indo. Falo também da mulher dele que agora ficou sozinha”, exemplifica e ressalta que as suas maiores distrações são um caderno e uma caneta.
Além do homem conhecido como Magrão, MC Neguin da VL escreveu mais seis músicas sobre presos que estão no Secat da 8ª SDP. “O dia que cantei pra eles, alguns choraram e falaram: ‘Ô louco, que som da hora!’ Meu caminho é mostrar que o mundo do crime não vale a pena. É pura ilusão e não traz nada de bom. Por isso falo das coisas da cadeia e da vivência, principalmente quando tudo acaba mal”, defende o adolescente que escreveu 46 composições de funk em cinco anos. Cada letra levou de duas a três horas para ficar pronta.
Entre as músicas do MC que agradam principalmente os adolescentes da Vila Alta também estão “Os magnatas”, “Será que nasci pra folgar”, “Minha história em cima do funk”, “As minas do poder” e “Os mais mais da quebrada”. “Aqui em Paranavaí a gente fica mais na Vila Alta. Não temos onde ir pra mostrar o nosso funk. A chance só aparece quando tem comício, essas coisas. Daí ficamos o tempo todo perto do palco pedindo um tempinho pra cantar”, relata Neguin da VL.
O MC gosta de percorrer as ruas do bairro incentivando a garotada ociosa a “soltar a rima”. O objetivo é fazer com que percam a vergonha e se ocupem com alguma atividade que os afaste do mundo das drogas e do crime. “Vejo a molecada à toa e falo: ‘Rapaz, vamos mandar uma rima aqui pra ver’. Tem muito piá aqui com 10, 11 anos que já ‘manda bem”, avalia. Alguns ficam empolgados com a iniciativa, outros demonstram descrença. Se queixam que em Paranavaí ninguém vai querer ajudar na divulgação. “Pensam que isso só dá certo em São Paulo. Tento animar eles e digo: ‘Mas por que o Paraná não pode? Não! Isso tá errado. Tem que ter aqui também”, enfatiza Neguin.
A primeira experiência do MC se apresentando fora da Vila Alta foi no Jardim Oásis, em uma lanchonete. “Me perguntaram se não tinha putaria na música. Expliquei que não e subi pra cantar. Foi bem legal. No final, o dono da lanchonete me deu os parabéns e disse que ajudei com a freguesia”, comemora. Na Vila Alta, até quem não é afeiçoado ao funk admira o empenho de Neguin que detém o recorde de 16 minutos rimando sem parar. O funkeiro treina todos os dias e de vez em quando participa de disputas de rimas com MCs de outros bairros. “Lá no Jardim Santos Dumont, a gente geralmente marcava encontro em uma lan house. É divertido participar desses duelos”, afirma. Além da Vila Alta, o cenário do funk em Paranavaí tem representantes no Jardim Santos Dumont, Ipê, Renascer, Morumbi, Coloninha e Matarazzo.
Sem dinheiro para investir em produção profissional, Neguin da VL se reúne com Leonardo Matheus Alves, o MC Leozinho, e Rodrigo Weslley Silva Bento, o MC Rodrigo, para improvisarem nas gravações. Juntos, percorrem uma estrada de terra até chegaram ao fim do bairro, onde tiram os telefones celulares dos bolsos, entram no aplicativo MPC, selecionam uma das nove bases musicais oferecidas pelo programa e iniciam a gravação. “É fácil, mas a qualidade não é boa. A gente também coloca uns vídeos no YouTube, filmados com a câmera do celular. Conecta um cabo em uma caixa pra dar mais batida, liga o microfone e manda ver. Depois edita no Video Trim e já era. Só no improviso”, esclarece Neguin.
O que também pode ajudar o adolescente a ganhar projeção é a parceria com funkeiros de outras cidades e estados. Há pouco tempo o rapaz recebeu um convite para gravar com um conhecido grupo de São Paulo. “Ainda não posso divulgar o nome, mas a vantagem é que isso pode chamar atenção pra minha música”, acredita. Outro diferencial é que Neguin da VL mantém contato com MC G3, MC Boy do Charmes, DJ Perera e DJ Wilton, nomes famosos entre funkeiros de todo o Brasil. “Tô na luta, não posso parar não”, reforça.
“Nossa, louco aí, ó. Só escutando o MC Guimê e pá, vixi”
Quando eu estava terminando de conversar com o MC Neguin da VL, chega Rodrigo Wesley Silva Bento, o MC Rodrigo, de 15 anos, que encosta a bicicleta personalizada rente ao meio-fio. Com um cabelo trançado e um estilo inconfundível, o adolescente conta: “Comecei junto com o Neguin. Eu tinha uns 12 anos. Nossa, louco aí, ó. Só escutando o MC Guimê e pá, vixi. Curtia, né?”, lembra enquanto ajeita o corpo sobre o banco de uma bicicleta vermelha que traz no quadro uma arte feita com barbante. No bairro, a garotada usa a criatividade para se destacar das mais diversas formas. Sem dúvida, um jeito de mostrar que é possível ser original mesmo sem grana.
Rodrigo é quem produz as músicas de Neguin. Se considera um curioso e está sempre pesquisando na internet sobre edição de som. “A primeira dele que produzi foi no ano passado. Antes ele só cantava por aí, daí dei a ideia da gente gravar com o celular até surgir um recurso melhor. O pessoal do bairro curte e incentiva pra fazer as músicas mais ‘massa’”, assegura e faz questão de definir o funk do amigo como suave, ‘de boa’, ‘não pesadão’. O adolescente está aprendendo a usar o Fruity Loops Studio, um aplicativo de edição profissional. “É difícil, mas estou me esforçando. Não podemos gravar as músicas em celular pra sempre. Eu e o Danilo ajudamos um ao outro. Só que quem tem o dom para o funk é ele, né?”, avisa.
Estudante do primeiro ano do ensino médio e aluno de um curso técnico de informática, Rodrigo sonha com dias melhores. “Nos reunimos todo sábado e domingo pra cantar, gravar alguma coisa ou compartilhar o que aprendemos. Tomara que venham boas oportunidades pra gente”, frisa o jovem que tem preferência pelo funk que fala da “realidade das quebradas”. Outro adolescente, também de 15 anos, que chega animado à Rua B para falar do assunto é Leonardo Matheus Alves, o MC Leozinho. Incentivador, é o responsável por gravar alguns vídeos do MC Neguin da VL.
“Já faz um tempo que estou aí com os moleques. A gente filma, dança e se vira como pode. Tem que ajudar pra ver no que vai dar na vida aí, né, não, Neguin?”, diz sorrindo. Leozinho se esforça para divulgar o trabalho do amigo no YouTube e no Facebook. Admite que apesar das limitações técnicas fica feliz quando as pessoas curtem, compartilham e comentam os vídeos. “O funk é ‘massa’, né, ‘véi’? Curtição, né? É legal quando fala de ostentação, mas é melhor ainda quando é sobre a realidade do povo da periferia”, enfatiza.
Ao final da entrevista, quando eu estava indo embora, ouvi um homem gritando: “Danilo, chega aí! Rapidinho!” O convite era para ajudar a empurrar um carro em uma estrada de chão, no cruzamento com a Rua B. Enquanto sonha com a ostentação, Danilo Medeiros França, o MC Neguin da VL, faz questão de mostrar que quem busca o sucesso não pode virar as costas para os amigos e os problemas da comunidade. “Tem que ajudar, valorizar as origens, né?”, assinala.
“A inspiração vem da ‘quebrada’ mesmo. O que eu vejo vira letra”
Uma semana depois da primeira bateria de entrevistas com os funkeiros da Vila Alta, eu e o MC Neguin da VL deixamos a Rua B e subimos pouco mais de 500 metros até chegar a um conjunto habitacional onde mora Luan Ferreira Silva Lomes, o MC Luan da VL. Com apenas 18 anos, o funkeiro é o pioneiro do gênero na Vila Alta. Tímido, demora um pouco para se sentir à vontade, mas faz questão de esclarecer logo no início da conversa que canta porque quer ajudar a população do bairro. “Mesmo que um dia eu conquiste o meu espaço, não vou abandonar a Vila Alta. Tem muita gente necessitada aqui. A comunidade está cheia de crianças sem nada pra vestir ou comer. Meu sonho é fazer a diferença”, garante o rapaz que teve como primeira referência o MC paulistano Zóio de Gato, falecido em um acidente de trânsito aos 16 anos em 2009.
Há seis anos cantando funk, MC Luan é uma importante influência para Neguin da VL. Quando começou a se interessar pelo gênero, Luan foi incentivado por MC Caíque, de São Paulo, que morou um bom tempo na Vila Alta. “Falou que minhas rimas têm bastante qualidade. Aquele era um piá firmeza, hein?”, declara o rapaz que tem seis músicas bem conhecidas no bairro.
O primeiro funk do MC Luan, que cita como inspiração MC Lon, um dos ícones do funk ostentação, foi “O sabadão chegou”. Escrita há quatro anos, a música fala dos prazeres do final de semana. “Hoje a inspiração vem mais da ‘quebrada’ mesmo, da nossa realidade. O que eu vejo vira letra”, justifica. Se pudesse gravar uma de suas composições, o MC gostaria de lançar “Ela é a mais mais”, composição sobre uma moça do bairro que gosta de baladas. Quando saem pelas ruas da Vila Alta cantando, MC Luan e MC Neguin alternam rimas e beatbox. “Por enquanto improviso no celular, gravo brincando. Se um dia aparecer uma boa oportunidade, vou levantar as mãos pro céu e agradecer muito”, promete MC Luan da VL.
Letra parcial de uma música do MC Neguin da VL. A composição foi inspirada na história de um morador da periferia de Paranavaí.
“Deus, me perdoa. Entrei nessa vida simplesmente à toa. Mulheres lindas e o bolso sempre cheio. Whisky na balada e as mulheres no meio. Dinheiro fácil nem sempre é bom. Mundo das drogas, não passa de ilusão. Cheio de malote, eu nunca ligava se pegava cinco, pegava tudo e gastava. As patricinhas tudo vindo atrás. Meu poder ia crescendo a cada momento. Cheguei a ser gerente do grande movimento. Minha responsa era foda e eu não podia vacilar. Num triste dia minha casa caiu. Fecharam minha cachanga com mais de 20 fuzil. Desespero era foda, não aguentava correr. Mas ao mesmo tempo eu sabia que podia morrer. Me entreguei e hoje estou aqui dentro. São várias amizades no mundo lá dentro. Naquele mundo de mulheres, eu só tinha mulher boa. Hoje quem me faz visita é só minha coroa. Só quero sair daqui, nem vou me vingar. Deus sabe o que faz, só quero me libertar.”
Curiosidade
O VL no nome artístico dos funkeiros é uma homenagem ao bairro de origem, a Vila Alta.
Contatos
MC Neguin da VL: (44) 9750-6899
MC Luan da VL: (44) 8806-9585
O mundo de Marinho
A história do jovem que há nove anos passa o dia vagando pelo centro de Paranavaí
Era uma quinta-feira, por volta das 8h30, quando eu e o fotógrafo Amauri Martineli saímos para procurar o famoso Marinho, um jovem sorridente que vive vagando pelo centro de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Em poucos minutos, o vimos próximo da Banca Tanaka, na movimentada Rua Getúlio Vargas. Acenei, o rapaz se aproximou e perguntamos se ele aceitaria nos contar a sua história e o motivo de ter se tornado andarilho.
Empolgado com a ideia de uma reportagem sobre a sua vida, sorriu e disse que nos aguardaria. Assim que Martineli deu a volta para estacionar o carro, Marinho desapareceu. Depois de 15 minutos de procura, o vi a 50 metros do local onde conversamos antes. Já estava com um semblante diferente. O sorriso tinha sumido. Me aproximei, expliquei a ideia da entrevista, mas se mostrou desinteressado. “Ah, vamos deixar pra semana que vem. Hoje eu não tô bem”, justificou. Então perguntei o que ele tinha e expliquei que poderíamos ajudá-lo. O rapaz insistiu: “É a minha cabeça, não tá boa. Depois passa. Isso é normal comigo”, garantiu, de forma evasiva.
Me afastei um pouco, chamei o Amauri e juntos conseguimos convencer o Marinho a bater um papo com a gente. Curiosamente a cefaleia se desvaneceu em pouco tempo. Logo o rapaz ficou à vontade e demonstrou muita satisfação pelo nosso interesse em conhecer a sua história narrada em cerca de uma hora. Com um estilo próprio de ser, Marinho passa a maior parte do dia no centro de Paranavaí, onde gosta de ficar perto das entradas das lojas vendo a movimentação de pessoas e ouvindo música. Admite que tem preferência pelo pagode, gênero da época das festinhas da adolescência.
Muito conhecido pelos comerciantes e comerciários das ruas Getúlio Vargas e Manoel Ribas, o rapaz é elogiado pela quietude. Discreto, não gosta de incomodar ninguém. “Hoje só fumo cigarro e bebo cerveja. Bebo todo dia. Compro cigarro solto numa banca. A mulher gosta de mandar Derby. Pago 50 centavos em cada um. Ah, antes eu nem gostava daquele Free, achava fraco, mas agora é o meu preferido. Só que custa caro”, reclama.
A latinha de cerveja é sagrada para Marinho que tem 30 anos e me chama de tio o tempo todo, embora tenhamos a mesma idade. Comprada na loja de conveniência de um posto de combustíveis, ele informa que costumava pagar R$ 1 na Schin, mas recentemente subiram o preço para R$ 1,50. “Tinha outra que era R$ 1,75 e caiu pra R$ 1,25, então só bebo dessa. De vez em quando tomo umas pingas no [antigo] Terminal Rodoviário e fico doido, mas é mais moderado”, pontua enquanto sorri e coça a cabeça. Às 18h, quando as portas das lojas se fecham, o rapaz caminha até o antigo Jardim Ouro Branco, onde passa a noite sozinho e deitado sobre uma calçada nas imediações do Centro Esportivo do Sesc.
Entre latidos de cães da vizinhança, dorme ao relento até amanhecer, perto da ex-residência dos avós. “Lá é tranquilo. Me deixam ‘de boa’. Quando alguém estranha, faço questão de cumprimentar pra mostrar que sou do bem”, comenta Marinho que dorme na rua há nove anos. Antes de virar sem-teto, vivia com os avós. Ficou sem casa quando os dois faleceram em decorrência de ataques cardíacos. As mortes tiveram diferença de poucas horas. O rapaz recebeu a notícia quando estava preso. Foi flagrado fumando e portando maconha. “Fiquei seis dias na cadeia. Não pude ir nem ao velório. Só vieram me avisar que os dois morreram”, lamenta. De Marinho, as drogas não levaram apenas a oportunidade de se despedir dos avós, mas também a própria identidade e capacidade de sonhar.
A falsa ilusão de ser admirado pelos amigos fez com que experimentasse maconha com 15 anos. “Queria me alugar um pouco. Acabou que saí tremendo com medo de morrer. Só ficou ‘massa’ quando parei de ter as ‘piras’. Eu ‘desligava’ mesmo, nem pensava em nada”, revela. A primeira tragada aconteceu no Parque Ouro Branco, no Ribeirão Xaxim, onde se reuniu com 13 garotos, principalmente vizinhos. No local, encontraram alguns jovens fumando maconha em um bong caseiro, feito a partir de garrafa pet. “Ofereceram pra gente e o bagulho fez efeito rápido. Tinha um trilho no córrego e até hoje eu não sei como cheguei do outro lado. Devo ter caído até na água. Sei lá”, declara às gargalhadas.
Quando a larica, a fome em decorrência do uso de maconha, surgia, a garotada descia até o Laticínio Iva, onde um guarda fornecia a eles algumas caixinhas de leite. Marinho tomava até três de uma vez. Com o tempo, quis se afastar da maconha, mas não resistiu. O ápice do vício foi aos 16 anos, incentivado por “amigos” que moravam perto da casa dos seus avós. “Eles vendiam pra mim. Então quando minha mãe me dava um, dois reais, eu ia lá comprar. Tinha uns ‘caras quentes’ que vendiam 50 gramas, peso de balança, por 30 reais, o suficiente para quatro dias. Era da boa, pura mesmo. Bem diferente do baseado de um real que eu fumava pelo menos quatro por dia”, confidencia.
À época, Marinho não conseguia dormir sem antes tragar o “cigarro branco”. Ficava muito agitado e ansioso. Entre os vizinhos, pelo menos nove fumavam juntos. Quando tinha dinheiro para comprar só um baseado, o rapaz se irritava fácil. “Ficava bravo porque sempre aparecia gente pedindo pra dividir. Não dava nem tempo de ficar doido”, justifica. O fornecedor era sempre o mesmo, só que quando surgia algum imprevisto o jeito era procurar outra “boca de fumo”.
Por causa do vício, Marinho ficou 26 dias internado no Hospital Psiquiátrico Nosso Lar, em Loanda. O rapaz se queixa que teve de conviver com loucos. “Eu era o único normal lá. Aplicaram um bagulho em mim que minha língua até enrolou e não consegui falar”, lembra. O tratamento não deu certo e o rapaz retornou a Paranavaí. Em casa, o avô tentou curá-lo do vício com o preparo caseiro de “garrafadas de erva-de-são-joão”. Marinho tomava pelo menos dois litros por dia para tentar controlar a abstinência de canabinoide.
Quando estava se afastando definitivamente da maconha, foi morar na rua e conheceu o crack. A primeira pedra foi experimentada por curiosidade, nas imediações do antigo Terminal Rodoviário Urbano. Pedia dinheiro no centro de Paranavaí e corria até lá para comprar. “Entrei na pedra com 23 anos. Achei o crack muito mais gostoso do que a maconha. Teve uma vez que conheci um cara ‘massa’ que vendia pedra de cinco e de dez reais”, confessa Marinho que fumava até 12 pedras de R$ 5, ou seja, o equivalente a R$ 60 por dia.
Normalmente começava a consumir crack pela manhã e parava por volta das 22h. Só prolongava o uso nos finais de semana, quando estendia o consumo até as 4h. Sexta e sábado o vício era financiado com as doações generosas dos frequentadores de bares e lanchonetes da Avenida Paraná que raramente falavam não para Marinho. “‘Chapava’ pedindo dinheiro. Daí gastava mais de R$ 60. Fumava e ficava ‘ruinzão’. Tinha uma mulher que me deixava dormir na casa dela. Eu aparecia lá de madrugada e ficava olhando pro teto me perguntando porque não amanhecia logo pra eu sair pedindo dinheiro pra comprar mais pedra”, enfatiza.
Marinho não se esquece do dia em que estava perto de uma “biqueira”, como ele chama as “bocas de fumo”, no Jardim Ipê, e foi surpreendido pela aproximação de uma viatura da Polícia Militar. Assustado, tentou arremessar o cachimbo em um terreno baldio, mas o objeto bateu no portão e voltou. A segunda tentativa deu certo. Só que era tarde demais e foi obrigado a se explicar para a polícia.
Apesar da vida de riscos, Marinho jura que jamais foi perseguido ou ameaçado por traficantes. “Nunca enganei ninguém. Só ficava em débito com os ‘mais chegados’. Mas era coisa de dois a quatro reais. Às vezes se irritavam comigo e me davam o produto até de graça. Cheguei a ganhar pedra de R$ 5”, diz rindo. O seu ponto preferido era o entorno do velho Terminal Rodoviário Urbano, de onde se afastou há quatro anos, quando parou de usar crack. “Até hoje tem gente vendendo lá. Não me interesso porque não vejo mais graça”, explica.
Antes de se livrar do vício, por iniciativa do irmão, ficou internado em uma clínica de reabilitação por quatro meses em Curitiba. “Eu não queria nada com nada e saí de lá”, reconhece. Outra tentativa sem sucesso foi em uma chácara para dependentes químicos no Sumaré. Com a abstinência, o rapaz perdia o controle de si mesmo e agia como outra pessoa. “Fugia de lá alucinado e bravo. Andava uns 19 quilômetros até chegar no centro de Paranavaí. Hoje tô livre disso. Não quero saber dessas drogas. Prefiro continuar vivo”, pondera Marinho que ao final da entrevista conta que se chama Mariosvaldo de Freitas Mazanares Souza Moura.
“Minha infância, vou falar pra você, tio”
“Minha infância, vou falar pra você, tio. No meu aniversário de seis anos a minha mãe fez um bolo delicioso e colocou uns bonequinhos ‘desenhadinhos’ do Corinthians, porque eu era corinthiano, e do Palmeiras, né? Foi muito legal! Melhor dia! Chamei um amigo que morava no [Jardim] São Jorge e outro que vivia um pouco pra cima da minha casa. O resto era família”, conta o jovem andarilho Marinho. A primeira experiência do rapaz em um escola foi na mesma época, quando ingressou no Colégio Estadual Newton Guimarães. “Até a quarta série ainda era ‘da hora’. Depois que chegou a quinta, passei a odiar por causa das matérias. Tudo muito difícil e eu não entendia nada”, reclama.
A maior lembrança da quinta série remete ao dia em que o pai chamou ele e um dos irmãos para passear de Ford Belina. “Eu tinha uns 12, 13 anos. Corremos Paranavaí. Visitamos minha irmã e voltamos pra casa só lá pelas dez da noite. Parecia até que ele sabia o que iria acontecer depois. Quando deu duas horas da manhã, meu pai morreu de ataque cardíaco”, lamenta Marinho com olhos marejados.
Com a morte do pai, Marinho perdeu mais ainda o interesse em estudar. Quando chegou à sétima série do ensino fundamental teve de fazer supletivo à noite para tentar recuperar o tempo perdido. “Nem passava de ano mais. Fui pro [Colégio Estadual] Leonel Franca e só chegava atrasado, lá pelas 8h20, 8h40, até na hora do recreio. Daí falaram que seria melhor eu estudar perto de casa. Então me deram a transferência e mudei pro [Colégio Estadual] Marins [Alves de Camargo]”, relata.
Marinho reprovou novamente e só conseguiu a aprovação no ano seguinte. “Cada negócio mais difícil, bicho!”, reclama. Quando não estava na escola, corria para uma pracinha perto de casa, onde se reunia com os amigos para jogar bola num ‘areião’. Sonhavam em fazer traves de madeira. Sem experiência com marcenaria, apelavam para chinelos e lajotas.
Marinho faz questão de destacar que no mesmo período arrumou muitas confusões por causa de pipa. O agravante era o uso indiscriminado de cerol. “Na adolescência, quando chegava dezembro eu acordava cedo pra ir ver se tinha passado ou reprovado na escola. Olhava, ficava triste e falava: “É doido! Nunca que fico sem tirar nota vermelha!”
“De lembrança, eu tô devagar, tio”
“De lembrança, eu tô devagar, tio. Lembro mais das mortes. Foi triste porque acordei e vi meu pai caído e morto”, narra. Mais tarde, perdeu o contato com a mãe, com quem morou pouco tempo após a perda do pai. Também residiu no Hotel Floresta, perto da rodoviária velha, com uma das irmãs. Apesar de hoje não ter muito contato com a família, Marinho tem boas lembranças. Se recorda de quando tinha seis anos e o irmão o levou para participar da Escola de Futsal São Lucas. “Foi doido, hein? Fiz gol no primeiro dia. Eu era ala esquerda, canhoto. Fiquei até os 13 anos, quando quis jogar campo”, explica e acrescenta que gostava de perturbar o técnico Gildo Tomé para deixá-lo jogar como titular quando viajavam para disputar campeonatos.
Segundo Marinho, seus dribles eram dos mais “bobos”. Gostava de “dar chapéu”. “Só que ainda preferia o campo pra bater de ‘bicicleta’”, comenta enquanto gesticula. Na adolescência, ingressou no Paranavaí Atlético Clube (PAC) e jogou várias vezes no Estádio Municipal Waldemiro Wagner. Começou a se destacar na posição de meia-esquerda. Logo o bom desempenho garantiu escalação para os Jogos da Juventude. Em uma das edições, ajudou o time a chegar à semifinal. Com 19 anos, surgiu uma grande oportunidade. “Fui convidado a participar de um ‘peneirão’ para ir pro Santos, tio. Por azar, acabei eliminado”, lamenta.
Marinho lembra com satisfação da época em que se apresentou no palco do Teatro Municipal Dr. Altino Afonso Costa. “Eu era ‘arteiro’ no colégio, então eles me chamaram pra fazer teatro. Topei e fui lá assistir alguns ensaios. Foram loucas as peças. Gostei mesmo!”, garante Marinho que participava dos ensaios no Colégio Marins. Os encontros geralmente ocorriam à noite ou quando os alunos tinham aulas vagas. “Fizemos uma peça dirigida pela Lígia Oliveira que chamava ‘Que país é esse?’ Foi ‘massa!’”, enfatiza. De repente, Marinho não quis mais saber de teatro e abandonou as aulas.
“Agora não penso em trabalhar. Quem sabe, depois”
“Agora não penso em trabalhar. Quem sabe, depois. Já trabalhei como servente de pedreiro quando morava com meus avós. Só que parei. Tentei ser ajudante de pintor, mas o homem falou que eu não ia pra frente não. Cheguei a ir pra roça também. Daí odiei minha vida!”, diz o andarilho Mariosvaldo de Freitas Mazanares Souza Moura, o Marinho.
Quando atuava como servente, o rapaz gostava de transportar areia e lajota. Segundo ele, bater massa também era “da hora”. O que mais o animava era o fato de que podia pegar dinheiro todo dia. Convencido pelo irmão, Marinho tentou morar em Curitiba algumas vezes. A primeira tentativa foi aos 16 anos. “Quando eu chegava lá, ele sempre falava que eu precisava arrumar emprego. Eu respondia: ‘Mas pra que emprego, rapaz? Não quero trabalhar!’”, revela.
Um dia o irmão o convidou para ir a um restaurante. Chegando ao local, convenceu a proprietária a contratar Marinho como ajudante. Após 15 dias de trabalho, o rapaz pegou um vale e abandonou o serviço. Voltou para a casa do irmão, preparou a mala e foi direto para a rodoviária sem avisar ninguém. “Antes do ônibus partir, meu irmão entrou pra falar comigo. Expliquei que não iria ficar lá perdendo tempo. Queria voltar pra Paranavaí. Então ele só se despediu”, relata.
Quando encontram Marinho casualmente, os amigos dos tempos de infância e adolescência ainda tentam convencê-lo a sair da rua e procurar um emprego para mudar de vida. “Ah, tio! Já trabalhei, mas não entendo de nada. O negócio era estudar, mas perdi minha chance. Então sobrou só isso aqui pra mim”, declara. Nas ruas, Marinho está sempre correndo riscos, obrigado a lidar com os percalços de um estilo de vida subumano.
Já foi perseguido várias vezes, inclusive espancado. Quem mora nas ruas de Paranavaí precisa ter muito cuidado. Não há garantias de um novo amanhecer. “Há pouco tempo um cara que nem conheço gritou que bati na mãe dele. Eu disse que ele tava doido e corri pra dentro de um mercado. Chegando lá, falei: ‘Liga pra polícia pra nós aí, rapaz! Não sei qual é a daquele cara ali não, doido!”
27% dos jovens atletas paranaenses sofrem de síndrome de burnout
Rafael Octaviano explica que hoje em dia os jovens precisam de preparo psicológico para não abandonarem o esporte
No final de abril, o professor universitário paranavaiense Rafael Octaviano de Souza, mestre em exercício físico na promoção da saúde pela Universidade Norte do Paraná (Unopar), lançou o livro “Burnout – Atletas Jovens”, escrito em parceria com o pesquisador Dartagnan Guedes, pós-doutorado em condição física e saúde pela Universidade Técnica de Lisboa.
A obra produzida para auxiliar profissionais das áreas de esporte e saúde traz muitos dados importantes. Um deles é a descoberta de que 27% dos jovens atletas do Paraná têm grandes chances de abandonarem o esporte. Do total, 5% sofrem de burnout elevado e 22% de burnout moderado. “Eu não tinha ideia dessa profundidade, de que temos mais do que o dobro de casos no Paraná do que na Suécia, por exemplo”, diz Rafael Octaviano, acrescentando que embora a identificação da síndrome tenha sido feita nos Estados Unidos nos anos 1970 o problema ainda é pouco conhecido e discutido no Brasil.
Definido como um estresse ocupacional crônico, o burnout é causado por exaustão física e emocional, redução do senso de realização e desvalorização. Nos jovens, um agravante são as cobranças da família, amigos e treinadores. “Muitas vezes a criança começa a treinar cedo por imposição do pai que praticou um esporte e quer que o filho siga o mesmo caminho. Com o tempo, perde-se o interesse pela atividade porque vira uma obrigação, sem direito de escolha”, explica Souza.
A síndrome atinge principalmente os praticantes de esportes individuais. O fato de treinar sozinho e sem apoio faz com que muitos jovens se sintam derrotados antes das competições. Outro fato revelador apresentado no livro é que as mulheres são mais suscetíveis ao burnout do que os homens. “O apoio social para as atletas é bem menor. É comum o marido, namorado e pai as criticarem”, conta o autor.
Hoje em dia, muita gente ainda relaciona o burnout ao chamado overtraining, ou seja, excesso de treinamento, o que é um grande erro, já que a síndrome atinge atletas que estão seguindo uma rotina de menor duração. “Os maiores exemplos são os jovens que estão perdendo o interesse e abandonando o esporte aos poucos”, comenta Rafael Octaviano.
No entanto, a síndrome não deve ser confundida com dropout que é o abandono da atividade em decorrência de fatores como mudança de cidade, escola, trabalho e lesões. Como o burnout tem características mais específicas, a manifestação do problema pode surgir de diversas formas. “Um jovem que até então gostava de treinar e de repente começa a priorizar banalidades como as baladas e as festas com os amigos pode estar com a síndrome. Neste caso, a recomendação é que o diagnóstico seja feito por psicólogos e psiquiatras”, alerta Souza.
Para evitar o burnout em atletas, é preciso uma reorganização social do esporte. É necessário ponderar que na infância todo mundo deve ter a oportunidade de experimentar várias atividades. “O que vemos hoje é o oposto. Há muita pressão sobre atletas jovens. Temos crianças com cinco a seis anos que já tem a vida esportiva traçada”, destaca. Como consequência, há um grande incentivo ao treinamento físico, técnico e tático, mas em contraponto há pouco investimento em preparo psicológico.
O assunto ainda é muito polêmico e pouco discutido na literatura esportiva brasileira, o que justifica porque 70% das referências do livro “Burnout – Atletas Jovens” são da literatura internacional. Para a produção do livro, Rafael de Souza e Dartagnan Guedes se aprofundaram nas obras dos maiores estudiosos do assunto. Ou seja, os estadunidenses Herbert Freudenberger, Christina Maslach, Susan E. Jackson, Alan L. Smith e Thomas D. Raedeke.
Para entender melhor como o distúrbio afeta os atletas paranaenses, Souza e Guedes realizaram pesquisas com 1217 jovens. Coletaram muitos dados por meio do Questionário de Burnout em Atletas (QBA), basicamente um questionário de autorrelato em que os participantes respondem 15 questões. “Cada atleta respondeu cinco perguntas sobre cada sintoma”, declara Rafael Octaviano. A dupla também trabalhou com variáveis envolvendo tipos de treinamento, intensidade, idade, sexo, modalidade esportiva e nível de competição. “Essa foi a relação que usamos para identificar o que causa o burnout, mas não tenho dúvidas de que precisamos evoluir muito”, enfatiza.
Os autores comemoram o fato de que a obra está sendo vista como nova referência para pesquisadores brasileiros e estrangeiros que estudam a síndrome. “O nosso trabalho não tem fins de diagnóstico. É mais para servir de assessoria. Agora esperamos que apareçam novas pesquisas sobre burnout em atletas jovens de outros estados do Brasil”, frisa Souza.
O projeto gráfico do livro “Burnout – Atletas Jovens” foi criado por Ronaldo Frutuozo e a capa pela Icon Comunicação. “Praticamente tudo foi feito por profissionais de Paranavaí. Apenas o imprimimos na Midiograf de Londrina. Agora estamos comercializando o livro na Banca do Wiegando, Banca Tanaka, Academia Beko, Panificadora Pão de Ouro e em alguns outros pontos por R$ 25”, revela Rafael Octaviano que já está ministrando palestras sobre o tema. Para entrar em contato com o autor, ligue para (44) 9954-8107.
Burnout pode se tornar depressão
Quem sofre de síndrome de burnout precisa procurar ajuda o quanto antes. Do contrário, o distúrbio pode se tornar uma depressão. “Quem tem burnout ainda consegue levar uma vida normal quando se afasta da atividade pela qual não se interessa mais. Em caso de depressão, a realidade é mais alarmante”, garante Rafael Octaviano de Souza, autor do livro “Burnout – Atletas Jovens”, escrito em parceria com Dartagnan Guedes.
Para entender as implicações da síndrome e preveni-la, o primeiro passo é a conscientização. Entretanto, o problema não é facilmente identificado porque exige que os profissionais que estudam ou lidam com o burnout trabalhem com algumas variáveis psicológicas. “É importa avaliar os níveis de perfeccionismo, ansiedade, motivação e autoeficácia de cada pessoa. O assunto exige aprofundamento, tanto que até quem é da área de fisiologia do exercício está buscando referências em burnout. Eles querem saber como essas condições psicológicas podem afetar o aspecto fisiológico”, afirma Souza.
As pesquisas sobre o tema também levantam questões sociais bem pertinentes. Uma delas é sobre o velho ditado de que o esporte tira os jovens das ruas. “Será que tira mesmo? Ou quem vem para o esporte institucionalizado não é alguém que já o praticava? Estudando sobre a realidade dos jovens atletas do Paraná, percebemos que a oportunidade normalmente é dada para quem já está envolvido nesse meio”, reclama Rafael Octaviano.
Síndrome foi descoberta pelo psicólogo Herbert Freudenberger
A síndrome de burnout foi descoberta na década de 1970 pelo psicólogo Herbert Freudenberger. À época, o pesquisador trabalhava com pessoas que ajudavam usuários de drogas. “Os participantes começaram a se despersonalizar. Não conseguiam se sensibilizar com os dependentes químicos e abandonaram o trabalho social, o que chamou a atenção de Freudenberger”, relata o professor universitário Rafael Octaviano de Souza, mestre em exercício físico na promoção da saúde.
Na sequência, o maior trabalho de destaque foi o da pesquisadora Christina Maslach que estudou o distúrbio no contexto laboral. Inclusive foi quem descobriu que o burnout deve ser avaliado a partir de diagnósticos sobre exaustão emocional, redução do senso de realização pessoal e despersonalização. “No esporte, o assunto começou a ser pesquisado só na década de 1990”, ressalta Souza.
Saiba Mais
O livro “Burnout – Atletas Jovens” é resultado da dissertação de mestrado profissional concluída no ano passado por Rafael Octaviano de Souza, sob orientação de Dartagnan Guedes. O trabalho teve duração de dois anos.