Mate Coma
“Que demais esse lugar. Dizem que os lanches deles são os melhores da região”
Inauguraram uma lanchonete fora da cidade. Mate Coma. Ioan e Colomano percorreram pouco mais de 15 quilômetros até chegarem ao local. Boa vegetação nativa nos entornos, arborismo, tirolesa, frescor; cães, gatos e coelhos brincando às margens de uma lagoa.
— Que demais esse lugar! – disse Ioan.
— Show mesmo! Não conhecia isso aqui – comentou Colomano.
— Dizem que os lanches deles são os melhores da região.
— Também fiquei sabendo disso. Veremos se é verdade.
Lá dentro, a iluminação não era das melhores. Intencional. Os fregueses comiam como se não houvesse amanhã. Normal. Ian e Colomano foram ignorados. Ninguém se importava com quem entrava ou saía. Sem piscar, um homem com um lanche desmesurado entre as mãos o devorava; vez ou outra, roçando a língua pela carne malpassada.
— Delícia! – monologou, ignorando as pessoas à sua volta.
— Tem sangue na roupa daquele homem, e não é pouco. Será que ele sabe disso?
— Não tenho a mínima ideia. Seria uma boa avisá-lo?
— Pode ser.
Ioan se aproximou, cutucou o ombro do homenzarrão e ouviu um grunhido.
— Senhor, com licença, me perdoe a intromissão, mas só quero avisar que tem sangue na sua roupa.
— É?
— Sim…
Nenhuma palavra, risos, bafo quente. O homem virou as costas e continuou mastigando.
— Parece que as pessoas aqui só querem comer. Nada mais importa.
— Bom, isso aqui é uma lanchonete, não é mesmo? — ironizou Colomano.
— Pois é…
Diante de uma mesa, Ioan pegou o cardápio. Grande variedade de carnes. De cavalo a jacaré. Na última página, um aviso – “Conseguimos qualquer tipo de carne, independente de espécie.”
— Isso é interessante — concluiu Colomano.
Ao lado da descrição de cada lanche havia sugestões de abate, de como garantir que as partes mais nobres da carne não sejam maculadas durante e após a execução de cada animal.
— O que significa isso? E essas ilustrações de abate? Isso é realmente estranho — reclamou Ioan.
— Será? Acho que não. Me parece algo bem honesto, diferente do que vemos por aí.
— Sei lá, cara! Isso parece demais pra minha cabeça.
Em uma vitrola perto do balcão tocava “Everybody Hurts”, do REM, enquanto os fregueses comiam. “When you’re sure you’ve had enough of this life…Hang on.”
— Boa noite. Sejam bem-vindos ao Mate Coma. O que vocês desejam?
— Falaram que é possível comer à vontade e de graça neste lugar. Não vou negar que foi isso que trouxe a gente aqui.
— Ah sim! Esplêndido! Já sabem como funciona?
— Não… – responderam ao mesmo tempo.
— Pois bem! O que vocês vão querer?
— É simples assim? – questionou Ioan.
— Esse é o primeiro passo – respondeu o garçom.
— Ah…ok.
— Quero um X-Vitela. Ele vem mesmo com 300 gramas de carne?
— Sim, na opção tradicional, mas nessa modalidade que vocês querem a quantidade de carne é ilimitada.
— Uau! Que maravilha! — comemorou Ioan.
— E você, Colomano?
— Quero algo mais usual. Um X-Filé Mignon vai bem.
— Podem me acompanhar?
— Tudo bem.
Atravessaram a cozinha e caminharam até um galpão bem iluminado com dezenas de divisórias. Grilhões, correntes, caixas, gaiolas, carretilhas, roldanas, torneiras, pias, facas, marretas, sangue fresco e riscos no chão. Não. Nenhuma alucinação.
— Que gritos e gemidos são esses? – perguntou Ioan.
— É o grito da comida, meu senhor, simplesmente o grito da comida. Não se preocupe.
Pios, cacarejos, gorjeios, uivos, assobios, grunhidos, mugidos, latidos, miados, coachos, relinchos.
— Que barulheira! Isso aqui parece uma selva – comentou Colomano.
— Não exatamente. Apenas atendendo o gosto do freguês.
— Me acompanhem, por favor.
Atravessaram um corredor, barulho mais intenso, luzes amarelas, insetos agitados, nenhuma janela.
— Os senhores podem entrar aqui. Aguardem um momento.
O garçom fechou a cortina branca e os deixou sozinhos com um robusto boi acastanhado. Enquanto balançava a cabeça de um lado para o outro, o animal visivelmente dopado mugia com a cabeça escorada em um latão; um mugido sepulcral e fragilizado.
— O que está acontecendo aqui? – perguntou Ioan já exaltado.
— Vamos esperar – sugeriu calmamente Colomano.
O garçom retornou acompanhado de um peão empurrando um carrinho de mão. As rodas rangiam e as pernas do bezerro tremiam. Tiraram o animal de cima do carrinho e o colocaram no chão. Fraco demais para manter-se em pé.
— O que é isso? – questionou Ioan.
— O X-Vitela.
— Como?
— Isso mesmo!
Sem dizer mais nada, o garçom mostrou um mural com duas opções de execução — MARRETADA OU DEGOLA.
— Aqui no Mate Coma o senhor pode comer à vontade e sem pagar nada se matar o animal usado no recheio do seu lanche. O senhor pediu um X-Vitela e o seu amigo um X-Filé Mignon. Temos aqui um boi e um bezerro. Tudo é feito por nossa conta, menos o abate do animal. Quem deseja começar?
— Isso é loucura! Não posso matar um animal. Nem mesmo posso vê-lo morrer – esbravejou Ioan.
— Mas imagino que o senhor coma carne, não?
— Claro que sim, mas não tomo parte na morte do animal.
— Será?
— Que desaforo! Não vou ficar aqui sendo tratado com desrespeito.
— Acalme-se, Ioan! – sugeriu Colomano.
— O garçom tem razão. Se comemos, matamos, a única diferença é que não golpeamos.
— Você também? Pelo amor de Deus, Colomano! O que está acontecendo com você?
— Ora, nada! Apenas uma fagulha oportuna de sensatez.
— Quer saber? Mate você os dois. Perdi o apetite.
— Que assim seja, meu amigo.
Ioan atravessou o barracão a passos céleres e caminhou em direção à lanchonete. Sentou-se.
Resistente, o boi mugia entre as marretadas de Colomano. Foram 12 para entregar-se ao fim. O sangue escorria pelo piso. Fresco, grosso e escuro — o mousse da morte. Língua de fora, cabeça pesada, olhos vazios.
— Me desculpe, meu amigo, mas agora é a sua vez – falou segurando a cabeça do bezerro caramelo que tremia e se encolhia no canto com olhos vendados.
Um golpe certeiro na garganta o fez deitar e se debater com as patas moles até perecer. Expressão final de terror e desespero. O sangue não parava de jorrar, se misturando ao do boi recém-falecido. Eram como pai e filho, lado a lado, combinando carcaças.
— Parabéns! O senhor não fugiu. Realmente assumiu a responsabilidade — disse o garçom.
— Certo…Que seja! Vai demorar muito para os lanches ficarem prontos?
— Não muito. O senhor pode seguir esse corredor e virar à direita. A última porta é um banheiro. Pode se limpar ou se lavar lá.
— Ok. Obrigado…
Na lanchonete, Ioan não conteve as lágrimas enquanto assistia “Blackfish”, de Gabriela Cowperthwaite.
— Que história mais triste. Meu coração está com você, Tilikum – monologou esfregando as pontas dos dedos nos olhos.
— Sabia que você não iria embora. E aquela conversa de que perdeu o apetite? – indagou Colomano.
— Fiquei mal na hora, mas já passou – justificou Ioan.
— Ah sim. Então tá.
— Os lanches logo serão servidos, inclusive o seu. Vai querer ou não?
— Assim sim.
— Bueno! Bueno!
Quando o garçom retornou com o X-Filé Mignon e o X-Vitela, Ioan e Colomano ficaram extasiados com o que viram. Cada lanche tinha 12 camadas.
— É sempre assim? Com 12 camadas?
— Não. É porque o senhor matou o boi com 12 marretadas.
— Isso foi criativo, devo admitir.
— Podemos comer sem tocar nesse assunto? — reclamou Ioan.
— Ok…ok..ok… — concordou Colomano.
Assim que deu a primeira mordida, Ioan cuspiu um pedaço de lanche no prato.
— Que nojo! Meu Deus do céu! O que tem errado neste lugar?
Colomano também sentiu um gosto estranho na boca e fez o mesmo.
— Garçom, amigo, venha aqui, por favor.
— Isso é extremamente nojento. Horrível! Estou com ânsia de vomito.
— O que houve, meus senhores?
— O que houve?
— Tem um fio de cabelo longo e castanho no meu lanche. Que repugnante!
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