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“Você não é o Tora-Tora?”
Hoje de manhã, enquanto eu estava aguardando a minha vez no banco, um cara se aproximou.
— E aí, rapaz — ele disse.
— E aí — respondi.
— Tudo bem?
— Sim e você?
— Também. Então, por que você não apareceu na Fazenda Santa Efigênia no sábado?
— Acho que está me confundindo, camarada.
— Você não é o Tora-Tora?
— Como?
— Tora-Tora!
— Não, cara. De modo algum. Foi um engano.
— Ah, me desculpe. É que vocês são parecidos. Na realidade, a barba. Não sei falar o nome dele, nome estranho, então demos esse apelido. Veio pra cá pra trabalhar como lenhador.
— Entendo.
— Então me desculpe.
— Sem problema.
— Mas, olhe, você tem cara de quem sabe cortar lenha. Se um dia quiser experimentar.
— Hum…é lenha de reflorestamento? Se não for, minha religião não permite.
— Qual é a sua religião?
— Sou vegano.
— Já ouvi falar disso. É tipo uma seita, né?
— Sim…
O cara riu; eu também. Nos despedimos.
Por que os muçulmanos usam barba
Segundo a lei islâmica, a barba só pode ser aparada quando atingir o tamanho de uma mão fechada
No mundo todo, é grande o número de pessoas que não sabem o motivo pelo qual os muçulmanos usam barba. Foi pensando nisso que o Mufti Afzal Hoosen Elias, jurisconsulto e intérprete do Alcorão, escreveu o folhetim “Sobre o Comprimento da Barba”.
Nele, Elias explica que o uso da barba é uma forma dos homens sentirem-se mais próximos dos ensinamentos do profeta Rasulullah (Maomé). “Para aqueles que veem a barba como algo trivial, que Alá possa guiá-los. Mas para aqueles que desejam aprender e praticar o que é certo, tenho provas suficientes da importância da barba. E elas foram extraídas do Hadith, do Alcorão”, escreveu o Mufti Elias.
Nas palavras registradas por Abu Darda no Hadith 501, do Alcorão, o profeta Maomé diz não ter nenhuma ligação com aquele que não tem barba. Segundo os ensinamentos de Hadhrat Ammar Bin Yaasir, Abdullah Ibn Umar, Sayyidina Umar, Abu Hurairah e Jaabir, a barba deve ser cultivada longa. Somente durante o Haji ou Umrah, quando os muçulmanos peregrinam até a Meca, que eles aparam suas barbas, mas sem deixá-las menores do que o tamanho de um punho.
“Aqueles que imitam os descrentes e morrem nesse estado, se juntarão a eles no Dia do Qiyamat (juízo final]”, escreveu Hadhrat Abdullah Ibn Umar em referência aos que abandonam, por exemplo, a barba. Em relato de Ibn Umar, no Hadith 498, Rasulullah recomenda que os homens mantenham o bigode curto, mas deixem a barba crescer. Recomendação parecida aparece no Hadith 500.
Maomé diz também que nenhum homem sem barba tem direito ao perdão de Alá, de acordo com transcrição de Ibn Abbas. Além disso, a recomendação de Al-Tirmidhi, registrada por Ibn Umar, é de que a barba seja aparada somente quando ela atingir o tamanho de uma mão fechada.
No contexto do islamismo fazer a barba se enquadra como haraam, ou seja, um ato proibido pela fé islâmica. O Muwatta, uma das primeiras coleções do Hadith, escrito por Imam Malik, o primeiro sheik do Islã, diz que os únicos que não usam barba são os hermafroditas, ou seja, pessoas que possuem tanto o órgão sexual masculino quanto o feminino.
Para a Hanbali, uma das quatro escolas sunitas ortodoxas, referência em jurisprudência islâmica, o crescimento da barba é fundamental e cortá-la é pecado. Tal defesa pode ser encontrada em livros como “Sharahul Muntahaa” e “Sharr Manzoomatul Aadaab”.
“Um homem sem barba é um sujeito injusto e legalmente falando jamais seria concedido a ele o direito de ser um imã [um estudioso do Islã]”, consta na página 523 do primeiro volume do livro islâmico “Shami”. Para os fundamentalistas, muçulmanos sem barba não devem ter o direito de votar ou de se candidatar a algum cargo no contexto da Charia. “A chave para a felicidade total encontra-se em seguir a Sunnah e imitar a vida de Rasulullah no que diz respeito a tudo, incluindo sua maneira de comer, dormir e falar”, escreveu o Imã Ghazzali.
“Santo é o ser rodeado de homens com barba e mulheres com tranças”, consta na página 331 do terceiro volume de “Takmela e Bahr al Raiw.”
Saiba Mais
Abu Darda era um dos companheiros do profeta Maomé.
O Hadith é o registro dos preceitos de Maomé.
Após o Alcorão, a Sunnah é a segunda fonte mais importante das leis islâmicas.
Referências
Elias, Agzal Mufti. From The Shari Length of the Beard.
http://www.islam.tc/beard/beard.html
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A barba e o menino Yusuf
“Nunca imaginei que um dia o veria falando português. Surpreendente, filho!”
Quando eu era bem mais jovem, jamais tinha cogitado deixar a barba crescer. A verdade é que nem mesmo sabia se havia uma barba a se desenvolver. No entanto, desde muito cedo fiquei intrigado com a quantidade de pensadores e escritores barbudos até o início do século 20.
Dentre os brasileiros, minhas primeiras lembranças da época do colégio envolvem autores como Machado de Assis, José de Alencar e Gregório de Matos. Não sei se o fato de cultivarem barba era uma preferência com motivação estética ou se tinha relação com o zeitgeist. Ademais, reconheço também que antigamente era costume manter os pelos faciais para velar imperfeições e cicatrizes provocadas por doenças como a varíola.
Pensando internacionalmente, Platão, Chaucer, Melville, Victor Hugo, Ibsen, Tolstói, Dostoiévski, Whitman, Bram Stoker, Hemingway, D.H. Lawrence, Bernard Shaw e Ginsberg são alguns barbudos que me veem a mente no momento. E analisando períodos, é justo dizer que desde os primórdios da filosofia e da literatura, a barba se fez presente, e aqui não falo como forma de distinção social, e sim como um recurso de construção pessoal. Porém, hoje, diferente de outros tempos, barbas volumosas e longas são quase sempre associadas a hipsters, terroristas e fanáticos religiosos. E claro, partidos políticos.
Pensando nisso, me lembrei de uma singular experiência após me tornar barbudo. Um dia, saí de manhã, por volta das 8h, e fui até a casa de um senhor chamado Francisco que chegou a Paranavaí em 1944. Ele concordou em me conceder uma entrevista sobre os tempos de colonização do Noroeste do Paraná. Em frente à sua casa, toquei a campainha e observei um cãozinho rolando dentro de uma casinha de madeira.
Não demorou e alguém gritou da distante varanda: “Entre, meu filho. Venha até mim.” Abri o portão, subi alguns degraus e atravessei o jardim. Lá estava ele, alto e magro, sentado numa confortável cadeira acastanhada de madeira com estofado bege. Sob seus pés, havia uma porção de areia lavada dentro de uma caixinha. “Legal esse senhor!”, pensei depois que nos cumprimentamos com um firme aperto de mão. De repente, ele olhou nos meus olhos com atenção e comentou: “Aposto que você entende mais disso do que eu.” Não captei a mensagem e notei seus pés afundando lentamente na areia.
“Areia é vida, não é mesmo? Quantos tons de areia você consegue reconhecer?”, questionou. Fiquei confuso e ri, suspeitando que o homem estivesse alcoolizado ou sob efeito de forte medicação. Ainda assim, respondi: “Depende da incidência do sol, dos fatores de ação e reação. Hum…pensando bem, acho que consigo identificar 25 a 30.”
— Esplêndido! Eu já imaginava algo assim. Desconfiei logo que vi – declarou.
E a conversa tomou um rumo completamente diferente, me deixando por vezes hesitante. Pouco falamos sobre a sua vida porque a maior parte das perguntas era feita por ele. “Nunca imaginei que um dia o veria falando português. Surpreendente, filho!”, assinalou nos primeiros dez minutos com um sorriso dúbio.
Ele divagava bastante, e ocasionalmente pedia para ver a palma da minha mão. “Você pode não ver, só que os traços da sua mão dizem muito sobre a sua barba. E tolo daquele que resume a barba a pelos sobre a face. Ela diz muito a respeito dos caminhos da vida do homem. Ela, na sua sinuosidade, é como uma extensão física da própria mente. Sei disso porque cultivo barba há quase 60 anos”, defendeu, tocando a barba branca e já rala que cobria o queixo. Então lamentou que aos 86 anos não tivesse mais a barba de 20 anos antes.
Também notei seus olhos úmidos quando ele se curvou e deslizou o dedo indicador dentro da caixinha de areia. Algumas lágrimas pingaram dolorosas, como se saídas de um conta-gotas. Vendo aquilo, me desculpei e sugeri que talvez fosse melhor marcarmos a entrevista para outro dia. Trêmulo, Francisco se levantou e pediu para me dar um abraço.
— Claro, Seu Francisco – respondi.
Quando suas mãos enrugadas e translúcidas me envolveram, ouvi seus refreados soluços e seu coração palpitando. “Agora eu até poderia fazer a barba”, sussurrou, fragilizado. Logo ele esmaeceu. Gritei e sua esposa apareceu. Pediu que eu o colocasse na cama. Desmaiado, preservava expressão serena e sorriso delgado. Em respeito, não pedi explicações, me despedi e caminhei até a varanda, onde encontrei ao lado da cadeira uma foto de uma criança de sete ou oito anos sentada sobre os ombros de Francisco ainda jovem.
Na semana seguinte, fiquei sabendo que o garotinho sorridente da foto era um órfão egípcio que seria adotado por Francisco, um ex-soldado do Batalhão de Suez. Em 1957, o menino chamado Yusuf morreu em seus braços, depois de ser alvejado na cabeça por um soldado israelita em missão em Porto Said. “Nunca mais vou fazer a barba na minha vida, nunca mais! Juro por tudo neste mundo, a não ser que Yusuf retorne à vida”, teria gritado Francisco aos prantos naquele dia.
Book of Beards
Uma das imagens do livro “Book of Beards”, do fotógrafo estadunidense Justin James Muir. A obra reúne fotos de 86 “barbudos profissionais”, ou seja, pessoas que realmente tratam a barba como uma extensão do próprio corpo. Todos os personagens do livro são moradores de West Chester, na Pensilvânia, onde o culto à barba tem relação com a identidade cultural do município e dos moradores. Não é à toa que a cidade abriga as maiores competições de barba dos EUA.