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Romain Rolland: “Milhares de animais [atualmente milhões] são assassinados todos os dias, sem sombra de remorso”
“Ele tentava elevar a própria fronte, gemendo como uma criança, balindo e pendendo a língua cinza”
Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1915, o escritor francês Romain Rolland, autor de “Jean-Christophe”, um dos romances mais importantes do século 20, também dedicou sua vida à defesa dos direitos dos animais e da dieta vegetariana. Importante pensador, Rolland influenciou Sigmund Freud e se tornou amigo de Mahatma Gandhi. Em 1922, o alemão Hermann Hesse, também vencedor do Nobel de Literatura, dedicou o livro “Sidarta”, um dos romances mais espiritualistas da literatura mundial, ao seu querido amigo Romain Rolland.
“Milhares [atualmente milhões] de animais são desnecessariamente assassinados todos os dias, sem sombra de remorso. Se alguém fizesse menção a isso, seria considerado ridículo. Por isso esse crime é imperdoável”, escreveu Romain Rolland no romance “Jean-Christophe”, publicado em dez volumes entre os anos de 1904 e 1912. Na obra com viés autobiográfico, o autor francês narra a história de um gênio musical alemão que adotou a França como lar. A partir daí, ele sincretiza suas visões musicais, questões sociais, internacionalismo humanista e direitos dos animais.
“Ele não podia mais suportar ver uma das cenas mais ordinárias que testemunhara centenas de vezes – um bezerro chorando em uma cesta de vime, com seus grandes olhos salientes, seus tufos brancos encaracolados sobre a testa, seu focinho roxo e suas pernas dobradas. Havia um cordeiro com as quatro pernas amarradas sendo transportado por um camponês. Pendurado de cabeça para baixo, ele tentava elevar a própria fronte, gemendo como uma criança, balindo e pendendo a língua cinza. Havia aves amontoadas em uma cesta e podia-se ouvir ao longe os guinchos de um porco sangrando até a morte, além de um peixe a ser limpo em uma cozinha”, registrou Rolland em “Jean-Christophe”.
Em 1886, o que o influenciou a se tornar vegetariano e a adotar um estilo de vida frugal foi a obra “O que devemos fazer”, de Liev Tolstói, em que o escritor russo aborda a miséria, as desigualdades e os índices de mortalidade nas grandes cidades. Tolstói se questionava sobre finalidade do dinheiro e a divisão do trabalho, além de criticar o sistema político vigente. Ao saber que o escritor russo, um tradicional aristocrata, adotou o vegetarianismo e optou por trabalhar com camponeses, Roland enviou-lhe uma carta e obteve uma longa e alentadora resposta.
Mais tarde, inspirado pela filosofia vedanta, e principalmente pelas obras de Swami Vivekananda, um dos responsáveis pela introdução da vedanta e do yoga no Ocidente, Romain Rolland, um jovem exigente e tímido, se empenhou na redescoberta de si mesmo. Embora trabalhasse como professor, não gostava de lecionar. Sua vocação e satisfação maior era a escrita, tanto que em 1912, quando conseguiu garantir uma renda mensal modesta com a literatura, a sua primeira decisão foi pedir demissão do cargo de professor.
Pacifista ao longo de toda a sua vida, Romain Rolland protestou contra a Primeira Guerra Mundial. Quando se mudou para a Suíça, ele escreveu “Au-dessus de la mêlée”, uma crítica à guerra, publicada no Jornal de Genebra em 22 de setembro de 1914. Dez anos depois, lançou seu livro sobre o líder indiano Gandhi, de quem se tornou amigo em 1931, após o primeiro encontro dos dois. Em 1923, Rolland começou a se corresponder com o austríaco Sigmund Freud, criador da psicanálise. Os dois tinham grande admiração um pelo outro, tanto que em uma das cartas, Freud admitiu: “Trocar uma saudação com você continuará a ser uma feliz memória até os meus últimos dias.”
Estudioso do misticismo oriental, Romain apresentou a Sigmund Freud, com quem se correspondeu por mais de 15 anos, o conceito de “sentimento oceânico”, uma impressão de vínculo e comunhão com o mundo, desenvolvido através de suas pesquisas. Mais tarde, o austríaco publicou em 1929 o livro “Civilizações e Seus Descontentes”, que traz logo nas primeiras páginas um debate sobre a origem desse sentimento. Depois de ler a obra “O Futuro de uma Ilusão”, Rolland fez algumas observações que serviriam como premissa para Freud escrever “O Mal-Estar na Civilização”. O escritor francês exerceu influência sobre o austríaco e suas obras até 1939, quando Sigmund Freud faleceu.
Em 1928, Rolland e o filósofo húngaro e pesquisador da vida natural, Edmund Bordeaux Szekely, fundaram a Sociedade Biogênica Internacional com a intenção de expandir suas ideias sobre a integração entre mente, corpo e espírito. A instituição advogava em favor do estilo de vida simples e da alimentação vegetariana.
“As torturas inomináveis que os seres humanos infligem a essas criaturas inocentes fez seu coração doer. Concedendo aos animais um raio de razão, imagine o quanto o mundo pode ser um pesadelo terrível para eles. Um sonho com homens de sangue frio, cegos e surdos cortando suas gargantas, abrindo-as, eviscerando-os, fatiando-os, cozinhando-os vivos e às vezes rindo da forma como eles se contorcem de agonia. Existe algo mais atroz entre os canibais da África?”, escreveu Romain Rolland em “Jean-Christophe”.
O escritor francês foi uma das principais inspirações da ativista canadense Anita Krainc, co-fundadora do movimento vegano Toronto Pig Save, que em 22 de junho de 2015 foi presa após dar água a porcos confinados em um caminhão a caminho de um matadouro na Grande Toronto.
Romain Rolland e a internacionalização do humanismo
Nascido em Clamecy, Nièvre, em 29 de janeiro de 1866, o escritor francês veio de uma família diversificada, formada por grandes investidores da área urbana e pequenos agricultores. Na Escola Normal Superior de Paris, Romain Rolland estudou filosofia, mas desistiu porque não gostou do viés ideológico e impositivo do curso. Por isso optou por se graduar em história.
Em 1889, se mudou para Roma, onde viveu dois anos e se tornou amigo da escritora alemã Malwida von Meysenbug, amiga do filósofo Friedrich Nietzshe e do compositor Richard Wagner. As ideias de Rolland, aliadas aos ensinamentos de Liev Tolstói e as lições de Malwida, moldaram sua visão política e humanitária, internacionalizando suas ideias.
De volta à França em 1894, Rolland obteve seu título de doutorado com a tese “A Origem do Teatro Lírico Moderno – A História da Ópera antes de Lully e Scarlatti”. Ao longo de 20 anos, lecionou em vários liceus de Paris, até que foi nomeado diretor de educação musical da Escola de Estudos Sociais Avançados entre os anos de 1902 e 1911. Em 1903, também assumiu a primeira cadeira de história da música da Sorbonne.
Seu primeiro livro foi publicado em 1902, aos 36 anos, quando ele estudava o teatro popular e defendia a democratização do teatro. No ensaio “Le Théâtre du peuple”, publicado em 1913, Romain Rolland diz que o palco e o auditório devem sem abertos para as massas. “Precisamos que o teatro seja assistido pelo povo, mas antes temos que criar algo que seja voltado para eles”, sugeriu.
Como humanista, também abraçou o trabalho dos filósofos da Índia. Muitas de suas pesquisas foram registradas oralmente, através de conversas com Rabindranath Tagore e Mahatma Gandhi. Místico, Rolland enxergava a si mesmo como alguém com uma ancestralidade muito curiosa, e isto o inspirou a escrever a novela Colas Breugnon, publicada em 1919. Em seguida, vieram “Clérambault” e “Pierre et Luce”, de 1920; além do seu segundo romance de sete volumes – “L’âme Enchantée”, escrito entre os anos de 1922 e 1933.
Na primavera de 1919, o francês convidou o escritor irlandês George Bernard Shaw, também vegetariano e pacifista, para assinar uma petição em favor da paz. Rolland também se correspondeu com Albert Einstein, e juntos fundaram um comitê antifascista. Em 1920, o escritor francês retomou seus estudos sobre a filosofia mística da Ásia, especialmente da Índia, o que rendeu uma biografia sobre Gandhi, publicada em 1924.
Dois anos depois, ele se aprofundou nos estudos sobre o yoga e lançou as biografias dos gurus Vivikananda e Ramakrishina. Em 1932, ingressou no Comitê Mundial Contra a Guerra e o Fascismo, organizado por Willi Münzenberg. Depois se mudou para Villeneuve, às margens do Lago Genebra, no cantão de Vaud, e se entregou ainda mais à escrita.
Em 1935, Romain Rolland viajou para Moscou, a convite do escritor russo e também vegetariano Maxim Gorky. Como um tipo de embaixador dos artistas franceses na União Soviética, ele tentou convencer Josef Stalin a parar com a repressão contra seus opositores. Chegou a pedir clemência para o escritor anarquista Vicor Serge. Em 1937, Rolland retornou para Vézelay, uma comuna francesa da Borgonha, ocupada pelos nazistas em 1940. Se isolou e seguiu produzindo em ritmo intenso, até que faleceu em 30 de dezembro de 1944.
Saiba Mais
Em 1966, a União Soviética lançou um selo comemorativo no centenário de nascimento de Romain Rolland. A homenagem foi justificada como um tributo aos nobres ideais de sua produção literária, e ao amor e a simpatia com a qual ele descreveu os mais diferentes seres vivos.
Romain Rolland também escreveu biografias sobre Beethoven, publicada em 1903; Hugo Wolf, em 1905; Michel-Angelo, em 1906; e Tolstói, em 1911.
Seu grande amigo, o escritor austríaco Stefan Zweig lançou a biografia “Romain Rolland – The Man and his Work” em 1921.
Frase célebre de Romain Rolland
“O pessimismo da inteligência não deve abalar o otimismo da vontade.”
Referências
Rolland, Romain. Jean-Christophe (1904-1912). Editora Globo (1986).
Zweig, Stefan. Romain Rolland – The Man and his Work (1921). Disponível em archive.org.
Cruickshank, John. Rolland, Romain. The Penguin Companion to Literature 2: European Literature. Harmondsworth: Penguin (1969).
Parsons, William B. The Enigma of the Oceanic Feeling: Revisioning the Psychoanalytic Theory of Mysticism. Nova York. Oxford University Press (1999).
Bradby, David. Rolland, Romain. The Cambridge Guide to Theatre. Cambridge University Press (1998).