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Natureza das relações e metamorfoses em “História de um Casamento”
Lançado em 2019, “História de um Casamento” é um filme em que Noah Baumbach apresenta os conflitos de um fim de casamento com um quê de autoralidade, mas transitando entre Woody Allen e Ingmar Bergman – a princípio com uma influência mais latente do primeiro, embora sua vontade transpareça ser uma aproximação até mais contemplativa com o cineasta sueco que, como poucos, explorou com rara sensibilidade os conflitos das relações humanas e marcou a história do cinema tendo um background teatral.
A obra de Baumbach tem como ponto de partida marido e esposa destacando em off, separadamente e com leveza descritiva, o que consideram mais atrativo um no outro e, mais do que isso, o que os motivou a construírem uma relação a dois.
Isso ocorre em um típico cenário nova-iorquino com um caráter de ficção-documental, também em relação ao rigor casual-estético. Nicole (Scarlett Johansson) e Charlie (Adam Driver) são artistas – ela uma atriz que trocou o cinema pelo teatro e ele um diretor de teatro que aspira à Broadway trilhando um caminho alternativo.
Na história, o que os une também é exatamente o que os separa. Na primeira etapa do filme, Nicole viaja para Los Angeles, sua cidade natal, onde fortalece seu desejo de se divorciar do marido, com quem divide sua rotina. E mais do que isso, por influência externa, toma a decisão de fazê-lo por vias legais – o que não havia sido acordado entre eles.
Ela sustenta que depois de tanto tempo vivendo em Nova York, um ambiente que não reconhece como familiar, teve sua liberdade artística sufocada pela autoridade de Charlie – já que,por falta de incentivo, acabou se limitando a trabalhar nas peças do marido, um diretor respeitado em seu meio.
Com uma advogada na história, o calmo Charlie fica surpreso, mas também é obrigado, apesar da reticência, a viajar inúmeras vezes para Los Angeles e encontrar um advogado na cidade para não correr o risco de não ter direito à guarda compartilhada do filho Henry (Azhy Robertson).
A princípio, Noah estimula o espectador a escolher um dos lados, mas, aos poucos, essa realidade de quem está certo ou errado é desconstruída por um simples fato – seres humanos sofrem metamorfoses e podem fazer com que os outros se sintam diluídos pela desatenção; o que pode separá-los pela emergência de uma crônica desconexão emocional ou de interesses mútuos – ou falhas sazonais ou frequentes acentuadas por algum tipo de alheamento ou desinteresse.
Mesmo com o acirramento de uma falta de acordo entre os dois em relação ao divórcio, Nicole não se mostra racionalmente interessada em prejudicar Charlie, e nisso há recíproca. Mas se o oposto transparece como verdade, é apenas resultado de um acúmulo de ausências ou de falta de cumplicidade que se acentuam a partir das memórias que vão se construindo em relação à vida do casal.
Durante as contendas diante dos advogados, que acrescentam um ardil ao drama, as mágoas rasteiras de um casal em processo de separação, e que se entende menos ainda, se tornam fôlego em direção a uma vitória mais almejada por Nicole do que por Charlie – que teme apenas a perda da guarda do filho. Talvez porque ele reconheça menos os erros dela do que ela os dele (Nicole crê que sofreu mais) – já que houve um momento de traição de Charlie que Nicole pereniza.
Há momentos em que a relação durante a separação passa por uma gradação que pode principiar a dissolução de qualquer possibilidade de comunicação entre eles. No entanto, quando se dão conta de tudo que aconteceu nesse processo, e até mesmo dos custos do divórcio (que nos EUA pode equivaler a um patrimônio), isso parece ser interpretado por eles, pelo menos até algum ponto, como uma lição sobre a tortuosa e ingrata luta pela razão ao final de uma relação marital.
Mas a razão pode explicar pouco ou quase nada sobre a complexidade das motivações humanas quando alavancada por insatisfações e frustrações. Ao final, talvez o que deva prevalecer seja apenas o desejo de seguir em frente, não de elevar alguém, ao final de uma relação, a vitorioso ou derrotado, completamente certo ou visceralmente errado – já que ganhos e perdas são partilhados também no campo imaterial.
Lembranças do Mais Cinema
Projeto reuniu cinéfilos de Paranavaí uma vez por semana ao longo de cinco anos
Em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, o Projeto Mais Cinema, realizado de 2008 a 2013, oferecia uma vez por semana sessões gratuitas de cinema na Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade, onde cinéfilos com faixa etária de 18 a 70 anos se reuniam para assistir filmes que não fazem parte do circuito comercial. Ao final das exibições, eu sentava na beira do palco, analisava o filme e abria espaço para perguntas e comentários.
Não vou mentir e dizer que muita gente participava do Mais Cinema. Não, isso não é verdade, mas, apesar do público modesto, fazia o nosso projeto valer a pena, já que quem frequentava a Casa da Cultura sabia o que estava buscando e o que encontraria. Além da oportunidade de assistir bons filmes, os cinéfilos ainda recebiam refrigerante e pipoca – tudo isso graças à Fundação Cultural de Paranavaí e ao nosso amigo Sobhi Abdallah, responsável pelo empréstimo de um projetor que substituiu o nosso já danificado.
Pelo seu idealismo minimalista, o Mais Cinema chamou tanta atenção que em poucos meses jornais de diversas cidades do Paraná publicaram reportagens sobre a iniciativa. Um exemplo foi o “O Paraná”, de Cascavel, na região Oeste, a quem concedi uma entrevista falando do nosso objetivo após seis meses de implantação do projeto que contava com o empenho voluntário de amigos e artistas como Amauri Martineli, Rosi Sanga, Elza Pavão, Sobhi Abdallah e Paulo Cesar de Oliveira.
“Valorizamos aqueles cineastas que tiram proveito da sensibilidade para estabelecer uma profunda construção de sentido, nada óbvio, mas com uma capacidade de humanização que faz o espectador ir embora refletindo sobre o mundo, a vida, suas experiências e seu comportamento”, declarei ao jornal “O Paraná” em 2009.
Logo no início, seguindo a proposta de exibir e discutir filmes “alternativos”, o projeto presenteou o público com um cosmopolitismo cinematográfico – cinema clássico, expressionismo alemão, neorrealismo italiano, cinema surrealista, realismo poético francês, nouvelle vague, cinema noir, novo cinema alemão e cinema novo brasileiro, entre outros movimentos artísticos.
Ao longo de cinco anos, exibimos muitos filmes, obras de mais de 40 países e de todos os continentes. Quem participou do projeto sabe que a prioridade era seguir na contramão da Indústria Cultural, fomentadora de uma fantasia distante do homem comum. O mais importante era levar o público à imersão, um convite à reflexão – imprescindível nas obras de cineastas aptos a captar o obscurantismo da complexidade humana – individual e coletiva.
Com esse caráter, dentre filmes nacionais exibidos, vale destacar o clássico “Vidas Secas”, adaptado por Nelson Pereira dos Santos, inspirado no livro homônimo de Graciliano Ramos. Na obra, o cineasta conduz o espectador, por meio de recursos estéticos, a sentir o vazio existencial, ingente e avassalador dos personagens: flagelados do sertão. A própria ausência de diálogo, em muitos momentos do filme, é elementar em transmitir uma miséria que não agride apenas o organismo, mas a essência do homem.
Não menos marginal é o filme neorrealista “Ladrões de Bicicleta”, do mestre italiano Vittorio de Sica, em que o personagem principal é um desempregado de origem humilde – idiossincrasia de uma decadente classe operária subjugada a um sistema socioeconômico que os impele a trocar valores e ideologias por comida.
Continuando nessa dimensão variegada, o público conheceu o futurista “Fahrenheit 451”, exímio exemplar da Nouvelle Vague, e idealizado pelo singular francês François Truffaut. No filme, uma sociedade hipócrita e paradoxal – afugentada pela opressão ditatorial, renega a literatura, numa crítica mordaz ao cerceamento da liberdade intelectual.
Uma ode à fragilidade humana, a bela trilogia das cores – “A Liberdade é Azul”, “A Igualdade é Branca” e a “Fraternidade é Vermelha”, do surpreendente diretor polonês Krzysztof Kieślowski, foi exibida em três sessões – numa sequência ordenada, respeitando a característica de unidade indissolúvel dos três filmes.
Na trilogia, cada obra tem seu título justificado de várias formas, seja por meio da estética ou da dialética, e sempre a partir do momento que a individualidade de um personagem é confrontada com a de outro, no contexto de um relacionamento. Sendo assim, é possível interpretar a partir da obra-prima de Kieślowski que ideologias, crenças, valores, conceitos, são todos descartáveis perante a vida.
Muitos outros filmes foram celebrados na Casa da Cultura, mas esses em especial merecem ser citados porque marcaram o início de um projeto que trouxe a Paranavaí até cinéfilos de outras cidades da região. Boas e duradouras amizades foram construídas no auditório da Casa da Cultura, a sala oficial do projeto Mais Cinema que hoje ainda é lembrado em tom de nostalgia por tanta gente que por lá passou, mesmo que somente uma vez.