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Museu de Paranavaí vai ser reinaugurado no dia 5 de junho

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Espaço reúne mais de 600 peças que remetem às mais diferentes fases da formação de Paranavaí

Museu de Paranavaí vai ser reinaugurado no dia 5 de junho

Quadros da pintora Cecília Tortorelli ajudam a contar a história de Paranavaí (Foto: David Arioch)

No dia 5 de junho, o Museu Histórico, Antropológico e Etnográfico de Paranavaí vai ser reinaugurado ao lado da Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade, na antiga Estação do Ofício. Para comemorar a reabertura, a Fundação Cultural preparou uma programação para pessoas de todas as idades.

Às 14h, começa uma apresentação de roda de capoeira, seguida pela abertura oficial do museu e visita monitorada. “Faremos um passeio pelo acervo da história de Paranavaí. Também vamos oferecer brincadeiras e jogos tradicionais como peteca, amarelinha, cinco marias, ciranda, pula-corda, elástico, dobradura e arte em papel, além de contação de histórias”, explica a coordenadora da Casa da Cultura, Rosi Sanga, que também administra o museu.

Uma biblioteca especial vai ser montada no local, onde o público pode ter acesso ao Cantinho da Leitura e a um sebo com venda de livros usados. “Às 16h, faremos um piquenique coletivo e às 17h30 o encerramento vai ficar por conta do forró pé de serra com a turma do professor de música Glau Ribeiro”, informa Rosi. Uma exposição de obras de arte, um varal literário com obras de escritores paranaenses e declamações de poemas também fazem parte da programação.

Um acervo com 2,8 mil fotos

O Museu de Paranavaí reúne mais de 600 peças que remetem às mais diferentes fases da formação de Paranavaí. Há inclusive objetos dos tempos da Fazenda Brasileira, como Paranavaí era conhecida nas décadas de 1930 e 1940, e um acervo com 2,8 mil fotos. Muitas já foram digitalizadas e devem compor o Memorial Digital do Pioneiro. O espaço pode ser visitado de segunda à sexta das 8h às 17h. Para mais informações, ligue para (44) 3422-5018.

Museu de Paranavaí vai ser reinaugurado em abril

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Nova sede vai abrigar mais de 600 objetos e 2,8 mil fotos sobre a história local

Fachada do Museu de Paranavaí que vai funcionar ao lado da Casa da Cultura (Foto: David Arioch)

Fachada do Museu de Paranavaí que vai funcionar ao lado da Casa da Cultura (Foto: David Arioch)

Fundado em 2007, o Museu de Paranavaí sempre funcionou nas dependências da Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade. Porém, a partir da segunda quinzena de abril, o museu começa a atender em um novo espaço – na antiga Estação do Ofício. Atualmente o local está passando por reformas e adaptações feitas pelos colaboradores da Fundação Cultural de Paranavaí.

“Estamos fazendo um trabalho com muito amor e carinho, baseado no improviso e na criatividade”, comenta a coordenadora do Museu Histórico, Antropológico e Etnográfico de Paranavaí, Rosi Sanga, que ao longo dos anos conseguiu reunir mais de 600 peças que remetem às mais diferentes fases da formação de Paranavaí.

Há inclusive objetos dos tempos da Fazenda Brasileira, como Paranavaí era conhecida nas décadas de 1930 e 1940, e um acervo com 2,8 mil fotos. Muitas já foram digitalizadas e devem compor o Memorial Digital do Pioneiro. “Assim que o Museu for reinaugurado, vamos continuar com nossas exposições. Elas são baseadas em histórias que começam na época dos índios, embora eles não tenham vivido exatamente onde a cidade surgiu. Também falaremos da derrubada da mata, da fase econômica do café e de outros ciclos. O mais interessante é que aqui cada objeto tem uma memória a ser narrada”, revela Rosi.

Uma das paredes do museu está abrigando quadros que ajudam a contar a história de Paranavaí (Foto: David Arioch)

Uma das paredes do museu está abrigando quadros que ajudam a contar a história de Paranavaí (Foto: David Arioch)

Uma das paredes do museu já está abrigando quadros que ajudam a contar a história de Paranavaí através das pinturas da artista Cecília Tortorelli. Importante referência para quem quer aprender um pouco sobre a colonização local e regional, o museu possui coleções, objetos do cotidiano, itens numismáticos, documentos e instrumentos de trabalho. Visitar o museu é uma grande oportunidade para entender o surgimento de Paranavaí e o seu desenvolvimento, principalmente nas décadas de 1930, 1940, 1950 e 1960.

Outra novidade é que no entorno do museu vai ser criado um canteiro com ervas medicinais usadas nos tempos da colonização. “Do lado de fora, vamos exibir depoimentos de pioneiros sobre essas ervas. Também vamos deixar dois tipógrafos em exposição na parte externa”, enfatiza. A tradicional Sala de Imagem e Som, que funcionava na Casa da Cultura e reunia um bom acervo de materiais e equipamentos de rádio, TV e cinema, também vai funcionar nas dependências do museu.

“A partir da segunda quinzena de abril, se tudo der certo, vamos atender das 8h às 17h, mas caso alguém nos ligue com antecedência, querendo conhecer a exposição, podemos abrir também fora do horário comercial”, declara a coordenadora. O Museu de Paranavaí continua recebendo doações, desde que sejam itens com relevância histórica. Para mais informações, ligue para (44) 3422-5018.

Saiba Mais

O Museu Histórico, Antropológico e Etnográfico de Paranavaí é administrado pela Fundação Cultural de Paranavaí.

Lembranças do Mais Cinema

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Projeto reuniu cinéfilos de Paranavaí uma vez por semana ao longo de cinco anos

Reportagem sobre o Projeto Mais Cinema que saiu no jornal "O Paraná", de Cascavel, em 2009 (Imagem: Reprodução)

Reportagem sobre o Projeto Mais Cinema que saiu no jornal “O Paraná”, de Cascavel, em 2009 (Imagem: Reprodução)

Em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, o Projeto Mais Cinema, realizado de 2008 a 2013, oferecia uma vez por semana sessões gratuitas de cinema na Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade, onde cinéfilos com faixa etária de 18 a 70 anos se reuniam para assistir filmes que não fazem parte do circuito comercial. Ao final das exibições, eu sentava na beira do palco, analisava o filme e abria espaço para perguntas e comentários.

Não vou mentir e dizer que muita gente participava do Mais Cinema. Não, isso não é verdade, mas, apesar do público modesto, fazia o nosso projeto valer a pena, já que quem frequentava a Casa da Cultura sabia o que estava buscando e o que encontraria. Além da oportunidade de assistir bons filmes, os cinéfilos ainda recebiam refrigerante e pipoca – tudo isso graças à Fundação Cultural de Paranavaí e ao nosso amigo Sobhi Abdallah, responsável pelo empréstimo de um projetor que substituiu o nosso já danificado.

Pelo seu idealismo minimalista, o Mais Cinema chamou tanta atenção que em poucos meses jornais de diversas cidades do Paraná publicaram reportagens sobre a iniciativa. Um exemplo foi o “O Paraná”, de Cascavel, na região Oeste, a quem concedi uma entrevista falando do nosso objetivo após seis meses de implantação do projeto que contava com o empenho voluntário de amigos e artistas como Amauri Martineli, Rosi Sanga, Elza Pavão, Sobhi Abdallah e Paulo Cesar de Oliveira.

“Valorizamos aqueles cineastas que tiram proveito da sensibilidade para estabelecer uma profunda construção de sentido, nada óbvio, mas com uma capacidade de humanização que faz o espectador ir embora refletindo sobre o mundo, a vida, suas experiências e seu comportamento”, declarei ao jornal “O Paraná” em 2009.

Logo no início, seguindo a proposta de exibir e discutir filmes “alternativos”, o projeto presenteou o público com um cosmopolitismo cinematográfico – cinema clássico, expressionismo alemão, neorrealismo italiano, cinema surrealista, realismo poético francês, nouvelle vague, cinema noir, novo cinema alemão e cinema novo brasileiro, entre outros movimentos artísticos.

Público também participava do debate ao final do filme (Foto: Amauri Martineli)

Público também participava do debate ao final do filme (Foto: Amauri Martineli)

Ao longo de cinco anos, exibimos muitos filmes, obras de mais de 40 países e de todos os continentes. Quem participou do projeto sabe que a prioridade era seguir na contramão da Indústria Cultural, fomentadora de uma fantasia distante do homem comum. O mais importante era levar o público à imersão, um convite à reflexão – imprescindível nas obras de cineastas aptos a captar o obscurantismo da complexidade humana – individual e coletiva.

Com esse caráter, dentre filmes nacionais exibidos, vale destacar o clássico “Vidas Secas”, adaptado por Nelson Pereira dos Santos, inspirado no livro homônimo de Graciliano Ramos. Na obra, o cineasta conduz o espectador, por meio de recursos estéticos, a sentir o vazio existencial, ingente e avassalador dos personagens: flagelados do sertão. A própria ausência de diálogo, em muitos momentos do filme, é elementar em transmitir uma miséria que não agride apenas o organismo, mas a essência do homem.

Não menos marginal é o filme neorrealista “Ladrões de Bicicleta”, do mestre italiano Vittorio de Sica, em que o personagem principal é um desempregado de origem humilde – idiossincrasia de uma decadente classe operária subjugada a um sistema socioeconômico que os impele a trocar valores e ideologias por comida.

Continuando nessa dimensão variegada, o público conheceu o futurista “Fahrenheit 451”, exímio exemplar da Nouvelle Vague, e idealizado pelo singular francês François Truffaut. No filme, uma sociedade hipócrita e paradoxal – afugentada pela opressão ditatorial, renega a literatura, numa crítica mordaz ao cerceamento da liberdade intelectual.

Uma ode à fragilidade humana, a bela trilogia das cores – “A Liberdade é Azul”, “A Igualdade é Branca” e a “Fraternidade é Vermelha”, do surpreendente diretor polonês Krzysztof Kieślowski, foi exibida em três sessões – numa sequência ordenada, respeitando a característica de unidade indissolúvel dos três filmes.

Na trilogia, cada obra tem seu título justificado de várias formas, seja por meio da estética ou da dialética, e sempre a partir do momento que a individualidade de um personagem é confrontada com a de outro, no contexto de um relacionamento. Sendo assim, é possível interpretar a partir da obra-prima de Kieślowski que ideologias, crenças, valores, conceitos, são todos descartáveis perante a vida.

Muitos outros filmes foram celebrados na Casa da Cultura, mas esses em especial merecem ser citados porque marcaram o início de um projeto que trouxe a Paranavaí até cinéfilos de outras cidades da região. Boas e duradouras amizades foram construídas no auditório da Casa da Cultura, a sala oficial do projeto Mais Cinema que hoje ainda é lembrado em tom de nostalgia por tanta gente que por lá passou, mesmo que somente uma vez.

Benílio, um tipo de Verlaine travestido de Rimbaud

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Como se feito de ironias, Benílio era visto por mim como um sujeito vivendo um paradoxo existencial

Benílio, que não aparece na foto, frequentava o Projeto Mais Cinema na Casa da Cultura (Foto: Amauri Martineli)

Benílio, que não aparece na foto, participava das discussões do Projeto Mais Cinema na Casa da Cultura (Foto: Amauri Martineli)

Já passei por situações muito incomuns e estranhas na minha vida e hoje vou relatar uma delas. Em 2008, comecei a coordenar um projeto de cinema na Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade. O público era modesto, mas bastante participativo, tanto que com o tempo estreitei contato com os frequentadores mais assíduos. Afinal, tínhamos em comum o amor pelo cinema e o interesse em discutir sobre o tema. Os encontros ocorriam às quartas-feiras, quando exibíamos algum filme fora do circuito comercial. Ao final, eu fazia uma análise e em seguida abria espaço para o público fazer perguntas. Foi assim até 2013. Era gratificante ver que até pessoas de outras cidades gostavam do projeto.

Em 2010, um rapaz a quem chamo de Benílio, para preservar a sua identidade, compareceu ao Mais Cinema. Na primeira vez em que participou, se mostrou bastante atento ao filme, a discussão e tudo que o cercava. Basicamente, um sujeito tranquilo, questionador, com bons argumentos e um humor sardônico. Algum tempo depois, Benílio começou a sumir e ressurgir durante as sessões de cinema. Parecia agitado e incomodado, o que contrastava com tudo que notei anteriormente sobre seu comportamento. A expressão ponderada, o olhar quiescente, foram substituídos por uma agitação frequente que o fazia se levantar da poltrona como se o estofamento estivesse dominado por percevejos.

Às vezes mudava de poltrona, até que sem observar lado algum abandonava o local com pressa, coçando os olhos com tanto vigor que mesmo ao longe dava a impressão de que o objetivo era esmagar o globo ocular com pontadas de dedo. Apesar disso, Benílio continuou frequentando o projeto. Sorridente e trocista, aparentava ser mais jovem do que realmente era. Andava sempre à vontade; de camiseta, bermuda e tênis ou sandálias. Mas ostentava um olhar amaneirado para compartilhar com pessoas de quem desgostava. Como se feito de ironias e de uma acidez vocabular inconstante, Benílio era visto por mim como um sujeito vivendo um paradoxo existencial.

Assim como na Gioconda de Da Vinci, seus olhos eram como uma antítese do sorriso, o que relevava mais intransparência e ardil do que insegurança. Com naturalidade dúbia, despertava reticência, principalmente sobre suas intenções e elucubrações durante as conversas. Jupiteriano, pouco se importava em transmitir clareza quando não simpatizava com alguém. Na realidade, fazia até questão de minar a conversa para afastar o interlocutor. Afeiçoado à arte clássica, ele desprezava com poucas ressalvas a arte contemporânea.

Por volta dos 20 anos, Benílio abandonou o curso de medicina da Universidade Federal do Paraná, mais tarde sendo relegado à pária por colegas, amigos e até familiares. Não se importava com as convenções sociais e as postulações de um mundo em que se deve viver sob a égide cronológica dos deveres. Parecia-lhe um despautério a ideia de que o ser humano deveria se limitar a estudar o suficiente para conseguir um bom trabalho, se casar, ter filhos, netos e falecer; assim não fazendo mais do que uma formiga obreira que percorre o chão nu transportando alimentos em horários estratégicos.

Seu nível de inteligência e cultura estava muito acima da média, o que era endossado por décadas mergulhado em livros, música e outras formas de arte. Um dia, me relatou alguns de seus conflitos amorosos com uma jovem com quem rompeu relacionamento de longa data. “Eis uma perda de tempo, uma relação que minora a alma em vez de alongá-la”, dizia. Em complemento e observação, citei que todo o nosso saber se reduz a aprender a renunciar nossa existência para podermos existir, segundo um aforismo de Goethe.

Ocasionalmente, Benílio me pedia carona na saída da Casa da Cultura. O deixei algumas vezes no cruzamento da Rua Manoel Ribas com a Avenida Paraná, no centro de Paranavaí. À época, eu dirigia ouvindo uma banda romena de rock chamada Travka que curiosamente falava de conflitos de identidade, do recrudescimento humano e da minoração da sensibilidade. Enfim, existentialisme par l’existentialisme.

Notei mais tarde que o rapaz era emocionalmente inconstante e por isso consumia com frequência medicamentos controlados. Solitário, tinha um pai aventureiro que há muito tempo se mudou para Rondônia. A mãe, com quem também pouco convivia, recebia visitas esporádicas do filho no Jardim Santos Dumont. Benílio morava sozinho em uma velha pensão na Rua Amapá, onde dividia o espaço com os mais diferentes personagens marginalizados. A maioria, pessoas que percorriam sob os ditames da penúria um chão de paralelepípedos tão maciço quanto a dor da invisibilidade velada por um sorriso frugal.

Um dia, eu corria pela Avenida Lázaro Vieira, no Jardim Progresso, quando ouvi Benílio me chamando. Olhei para o lado, ele sorriu e se aproximou de mim. Relatou que estava estudando Programação Neurolinguística (PNL) porque acreditava que as ações humanas são motivadas pelas próprias experiências, não pela realidade em si. “A mente e o corpo formam um sistema que a PNL ajuda a harmonizar, estimulando novas formas de pensar, sentir e agir. É um meio de minimizar conflitos entre o corpo e a mente”, comentou.

Na semana seguinte, após mais uma sessão do projeto Mais Cinema, Benílio pediu que eu o deixasse na Praça dos Pioneiros. Eram quase 23h, ele desceu do carro e começou a caminhar sozinho em torno da praça, sem se enfastiar com a solitude e a frágil iluminação precária e açafroada dos postes que atraíam somente insetos. Andou alguns metros e desapareceu no meio da quadra na outonal escuridão enevoada. Ignorava lados e direções, despreocupado em ser expulso da própria introspecção por sacomanos, ladrões, delinquentes ou vadios.

Como já fazia parte da minha rotina percorrer a cidade a trabalho, vez ou outra eu o via vagando sozinho pelos mais distantes pontos da área urbana. Nunca perguntei o que fazia. De qualquer modo, não era difícil perceber que Benílio não se importava em ignorar pessoas e deixar claro que sentia ojeriza pela superficialidade. Demonstrava grande amor por muitas conquistas humanas. Em contraponto, nutria indiferença e desgosto por tanta gente. Julgava o mundo como tornado doente e usava isso como justificativa da pontual ausência de empatia.

Uma vez, há alguns anos, eu e meu amigo Sobhi Abdallah fomos até a casa da mãe de Benílio, onde ele estava hospedado enquanto ela viajava. O objetivo era conversar sobre o roteiro e a pré-produção de um documentário baseado na vida de um eremita conhecido como Negão do Surucuá. Entre tereré e palavras, a tarde até que rendeu bem. Dias depois, Benílio me ligou avisando que precisávamos discutir novamente sobre o roteiro. Segundo ele, a reunião também havia sido acertada com Abdallah e meu amigo Amauri Martineli.

Quando cheguei ao local, estacionei o carro e estranhei que não havia nenhuma movimentação na varanda. De repente, Benílio gritou, pedindo que eu entrasse. Lá dentro, perguntei sobre os outros convidados e ele mentiu afirmando que eles não puderam comparecer. Após minutos, o rapaz se aproximou e me convidou para tomar café. Assim que coloquei os pés na soleira, perguntei o que ele estava preparando. “Não estou preparando nada. O café somos nós dois!”, comentou com naturalidade enquanto penetrava a massa escura de um pão preto com uma longa faca de cozinha. Em seguida, me observou atentamente os olhos, revelando um sorriso narcísico e pela primeira vez naturalmente mórbido.

Me afastei de Benílio, que não reconheci naquela figura tétrica e medonha. Contrariando todas as minhas possibilidades de reação diante de situação tão imprevisível e espantosa, expliquei tranquilamente que iria até o carro buscar o pré-roteiro do documentário. “Já volto. É rapidinho!”, argumentei sem titubear. Ele assentiu com a cabeça e continuou na cozinha. Caminhei a passos curtos e pesados, enojado, sentindo meu olhos queimando e minhas mãos suando. O enorme portão parecia a quilômetros de distância e suspeitei até que Benílio poderia tê-lo trancado. Então me preparei para saltá-lo se necessário. Questionei até se ele não teria deixado ao alcance das mãos uma arma de fogo, caso eu fugisse. Por bem, consegui abri-lo e lá fora senti o sol em todo seu esplendor me revigorando, me banhando com sua energia imperecível.

Por segundos, meus sentidos ficaram mais aguçados do que nunca. Ouvi cães latindo, mãe empurrando carrinho de bebê, homem estacionando carreta e duas crianças brincando de pular corda. Assim que entrei no carro, virei a chave e ouvi o som do motor, meu coração desacelerou. Parti com a sensação de que apesar de tudo o mundo ainda era o mesmo e estava lá para lucilar diante de meus olhos escuros. Nunca mais vi Benílio. Fiquei sabendo apenas que, assim como um tipo peculiar de Verlaine travestido de Rimbaud, foi embora para Rondônia tornar-se desbravador de coisa alguma.

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Uma vida dedicada à música

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Paulo Magalhães, um dos saxofonistas mais requisitados do Brasil nos anos 1960 a 1980

Paulo Magalhães com o Volume 8, de Roberto Leal, de quem foi parceiro por 13 anos (Foto: David Arioch)

Paulo Magalhães com o Volume 8, de Roberto Leal, de quem foi parceiro por 13 anos (Foto: David Arioch)

Em 1948, Paulo Magalhães Lima tinha seis anos quando saiu para comprar um doce com o pai. Naquele dia, dentre as opções por trás de uma vitrine, escolheu uma guloseima que veio colada a uma gaitinha. “Dei o doce a um colega e lambi o que sobrou em volta. Mesmo sem jamais ter tido contato com algum instrumento, toquei “Asa Branca” [de Luiz Gonzaga] e surpreendi meu pai”, conta.

Dias depois, muitos comerciantes de Itaguajé, no Noroeste do Paraná, o convidaram para tocar “Asa Branca” em troca de doces e presentes. O episódio transformou a vida de Paulo que descobriu a vocação para a música e se tornou um dos saxofonistas mais requisitados do Brasil nos anos 1960, 1970 e 1980.

A trajetória como músico começou muito cedo. Aos 13 anos, Paulão, como era mais conhecido no auge da carreira, tocou em seus primeiros bailes em Paranacity e Itaguajé, no Noroeste do Paraná, além de Porecatu, na divisa com São Paulo. “Não demorou e fiz meu primeiro carnaval em Guaraci [na região de Astorga]. Já toquei em 56 carnavais e o mais recente foi este ano aqui em Paranavaí e também em Goiás”, diz.

De 1950 a 1960, Paulo Magalhães se apresentou no Paraguai, principalmente em Coronel Oviedo, a 150 km de Assunção, com o respeitado grupo Los Ases del Ritmo. “Me desenvolvi como músico no quartel, na Banda do Primeiro Batalhão de Fronteira. Foi uma época boa porque saí de lá tocando melhor, lendo partitura e escrevendo, mas minha formação mais sólida veio do que aprendi nas boates e nas zonas”, afirma sorrindo.

A primeira experiência tocando em boate foi em Cascavel, no Oeste Paranaense, onde subiu no palco com Orestes, o primo trompetista. Naquele tempo, Paulão trocou a bateria pelo saxofone. “Lá, conheci o jazz e a bossa nova, os meus gêneros musicais preferidos”, garante. Mais tarde, morando em São Paulo, ao longo de dois anos fez shows em casas noturnas da Rua Augusta.

"Não posso reclamar. Tudo que fiz na vida foi muito especial, então só tenho a agradecer.”

“Não posso reclamar. Tudo que fiz na vida foi muito especial, então só tenho a agradecer.”

Na Boate Lancaster, considerada o templo musical da juventude paulistana, conheceu o célebre Hermeto Pascoal, de quem se tornou amigo nos anos 1960. Após o expediente, os dois reuniam alguns músicos para darem uma “palhinha” antes do dia amanhecer. “Foi o melhor momento da minha carreira. Nas boates, eu tocava o que gostava”, destaca. Em São Paulo, também se apresentou no icônico João Sebastião Bar, quando o local recebia artistas como Chico Buarque, Elis Regina, Cesar Camargo, Toquinho, Geraldo Vandré, Ana Lúcia, Claudette Soares, Pedrinho Mattar, Sambalanço Trio e Alaíde Costa.

Paulo Magalhães teve importantes passagens pela TV Tupi, Cultura, Bandeirantes e Record. Trabalhou com o diretor Luiz Aguiar e os maestros Osmar Milani e Edmundo Peruzzi. “Nos tempos da Tupi, toquei muito com o Manito, dos ‘Incríveis’, um clássico do rock brasileiro e da jovem guarda. Fiquei na TV até 1965, quando me mudei para Foz do Iguaçu”, relata. Lá, formou o grupo “Los Brasileños” que fez muito sucesso na Argentina.

No mesmo ano, Paulão trocou o clarinete pelo saxofone. De volta a São Paulo, entrou para a banda da famosa Boate Mugi, onde fez muitos shows com Martha Mendonça. Acostumado a se aventurar por novos projetos, voltou a Cascavel, onde a família morava, e fundou a banda Alta Tensão. “No final da turnê, larguei a banda e fiquei em Itumbiara, Goiás. Logo me chamaram para fazer parte da Orquestra da Chevrolet. Toquei com eles até 1968”, revela.

À época, as irmãs Nalva Aguiar e Norma Aguiar eram as cantoras da orquestra, até que Nalva foi convidada a fazer parte da banda do cantor Roberto Carlos. “Também recebi o convite. Trabalhei com ele até 1973, quando decidi ficar em Uberlândia, Minas Gerais. Um dia, me entregaram um recado do próprio Roberto Carlos me pedindo pra retornar, falando que precisava de mim. Não voltei porque não queria mais aquela vida”, declara.

Por causa da rotina atribulada, Paulo Magalhães enfrentou uma crise no casamento. E para piorar, mal tinha tempo para os dois filhos pequenos. “No fim, perdi a mulher e tive que cuidar das crianças”, enfatiza, deixando claro que até então não tinha vida pessoal, já que a banda fazia pelo menos 20 shows por mês.

Em 1977, se tornou o saxofonista do cantor português Roberto Leal, com quem trabalhou durante 13 anos e gravou 13 LPs. No auge da carreira, Paulão viajou por dezenas de países. Guarda muitas lembranças dos shows por todas as regiões do Brasil, além de Estados Unidos, Alasca, Bélgica, Canadá, Portugal, França, Inglaterra, Alemanha, Suíça, Luxemburgo, Áustria, Austrália e África do Sul. “Conheci muita gente e muitos lugares. Fiquei pertinho até de mafiosos italianos [prova o que diz mostrando uma foto]. Minha vida no Brasil só normalizou depois de 1990. Estava muito cansado e optei por sair da banda”, justifica.

Nos anos 1980, Paulão participou de trilhas sonoras de filmes. Um exemplo é “As Aventuras de Mário Fofoca”, de Adriano Stuart, lançado em 1982 e protagonizado por Cassiano Gabus Mendes. Na obra, o saxofonista aparece tocando, assim como no filme “O Milagre”, sobre a vida de Roberto Leal. Com muitas histórias para contar, Paulo Magalhães se recorda com carinho dos tempos de Mugstones.

Com a banda, um dos maiores clássicos do rock brasileiro dos anos 1960, gravou um LP, dois compactos e ficou em cartaz na Casa de Espetáculos Canecão, no Rio de Janeiro, por mais de seis meses. “Também fiz parte das bandas Flintstones, Fantômas, The Music of Society e muitas outras. Passei por diversos estilos musicais. Ainda me lembro de quando gravei alguns trabalhos com o Amado Batista”, acrescenta.

Embora não tenha lançado nenhum álbum solo, Paulão se orgulha de ter escrito pelo menos 100 músicas ao longo da carreira. Em Paranavaí e região, só para citar mais alguns nomes, integrou as bandas Condor, MR, Corpo e Alma, Cactus, Oásis, Santa Mônica e Fonte Luminosa. Lecionou na Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade e ensinou muita gente a tocar saxofone, trompete, clarinete e gaita.

“Não posso reclamar. Tudo que fiz na vida foi muito especial, então só tenho a agradecer”, comenta. Aos 72 anos, Paulo Magalhães continua na ativa, tanto como músico quanto professor de saxofone e trompete. Para entrar em contato com ele, basta ligar para (44) 9838-4581.

Frase de destaque

“Me tornei músico há muito tempo, mas ainda me considero um eterno aprendiz.”

Curiosidades

Paulo Magalhães Lima nasceu em Presidente Vensceslau, na região de Presidente Prudente, mas passou parte da infância e adolescência em Itaguajé, onde tocou bateria na Orquestra Continental de Itaguajé, sob regência do Maestro Lincoln.

Ao longo da carreira, Paulão teve o privilégio de conhecer Luiz Gonzaga, o homem que o inspirou na infância a tornar-se músico.

A diversidade cultural do cinema

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2ª Mostra de Cinema de Paranavaí exibirá filmes de todas as regiões do Brasil e de Moçambique

Serão exibidas 16 obras de curta, média e longa-metragem

Na sexta-feira, 7, e no sábado, 8, às 20h30, a Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade será cenário da 2ª Mostra de Cinema de Paranavaí (MIC) em que serão exibidos 16 filmes de curta, média e longa-metragem dos mais diversos gêneros. O evento que recebeu obras de todas as regiões do Brasil e de Moçambique é uma iniciativa da Fundação Cultural. A entrada será gratuita.

Para a primeira noite da 2ª MIC está programada a exibição dos filmes “Sonho de Valsa”, de Beto Besant, de Santo André, São Paulo; Loading 66%, de Henrique Duarte, de São Carlos, São Paulo; “Caça-Palavras”, de Pedro Flores da Cunha, de São Paulo, capital; “As Aventuras de Seu Euclides Chegança”, de Marcelo Roque Belarmino, de Aracaju, Sergipe; “Maria Ninguém”, de Valério Fonseca, do Rio de Janeiro, capital; “Foi Uma Vez”, de Renan Lima e Bruno Martins, de São Paulo, capital; “Burguesia”, de Rodrigo Parra, do Rio de Janeiro, capital; “Incelença da Perseguida”, de Silvio Gurjão, de Fortaleza, Ceará; e “Eu Não Faço a Diferença?”, de Henrique Moura, de Paranavaí.

Já no sábado, serão exibidos “A Maldição de Berenice”, de Valério Fonseca, do Rio de Janeiro, capital; “Hr. Kleidmann”, de Marcos Fausto, de São Paulo, capital; “No Oco da Serra Negra”, de Angelo Bueno, Ernesto Teodósio, Pedro Kambiwá e Otto Mendes, de Recife, Pernambuco; “Aos Pés”, de Zeca Brito, de Porto Alegre, Rio Grande do Sul; “Bucaneiro”, de Juliana Milheiro, do Rio de Janeiro, capital; “Do Morro”, de Mykaela Plotkin e Rafael Montenegro, de Recife, Pernambuco; e Chikwembo, de Julio Silva, de Maputo, Moçambique.

Para o presidente da Fundação Cultural de Paranavaí, Paulo Cesar de Oliveira, o cinema brasileiro e africano está muito bem representado na 2ª Mostra de Cinema de Paranavaí pela diversidade de gêneros e também de temas que abordam desde assuntos mais simples e bucólicos até os mais controversos e subjetivos. “Escolhemos filmes que façam com que as pessoas deixem a Casa da Cultura discutindo, repensando o que assistiram”, enfatiza o diretor cultural Amauri Martineli, acrescentando que a 2ª MIC é voltada ao público com faixa etária acima de 14 anos.

Filmes poderão ser enviados a 2ª MIC até o dia 5 de setembro

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Mostra abre espaço para filmes de curta, média e longa-metragem

Nos dias 7 e 8 de outubro será realizada a 2ª Mostra Internacional de Cinema de Paranavaí (MIC) na Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade. Para participar, basta inscrever algum filme de curta, média ou longa-metragem até o dia 5 de setembro, a contar da data de postagem. O objetivo da Fundação Cultural é incentivar a produção audiovisual e também dar visibilidade aos cineastas brasileiros e estrangeiros, amadores e profissionais.

Cada participante pode enviar quantidade ilimitada de trabalhos, no entanto, vale lembrar que ao se inscrever para a 2ª MIC automaticamente é repassado a Fundação Cultural o direito de exibição dos filmes, sejam para fins promocionais da mostra ou divulgação de conteúdo em eventos culturais e educativos. Também será oferecido ao público um ambiente propício a troca de informações.

Nenhum dos trabalhos enviados será devolvido, pois farão parte da videoteca da Fundação Cultural. A inscrição é totalmente gratuita, no entanto, o custeio do envio das obras é de responsabilidade dos realizadores. Os participantes precisam enviar duas cópias de cada trabalho em DVD e no formato DVD acompanhado de encarte que deve conter imagens da obra e sinopse.

Por se tratar de uma mostra não haverá prêmios em dinheiro. Porém, os dez melhores filmes de cada categoria, eleitos por uma comissão julgadora formada por profissionais ligados a comunicação social e ao cinema, receberão certificados de participação. Os trabalhos que não respeitarem o prazo de envio não serão exibidos. Informações sobre a programação e o funcionamento do festival serão publicadas em breve no site da Fundação Cultural de Paranavaí: http://www.novacultura.com.br. Para mais informações, basta ligar para (44) 3902-1128.

O regulamento e a ficha de inscrição podem ser baixados no seguinte endereço:

http://www.mediafire.com/?jm91wgadsf5gpeb

Museu preserva fragmentos da colonização de Paranavaí

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Espaço reúne um acervo de mais de 600 peças doadas por pioneiros

Uma das salas de exposição permanente do Museu de Paranavaí (Foto: Casa da Cultura)

O Museu Histórico, Antropológico e Etnográfico de Paranavaí, que funciona nas dependências da Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade, foi criado em 2007 e deste então se consolidou como importante referência para quem quer aprender um pouco sobre a colonização de Paranavaí, no Noroeste do Paraná

Mantido pela Fundação Cultural, o museu reúne um acervo de mais de 600 peças doadas por pioneiros. A coordenadora da Casa da Cultura, Rosi Sanga, explica que o espaço do museu conta com uma exposição permanente e uma temporária. “Há desde fotografias, objetos do cotidiano, instrumentos de trabalho, da história do café, itens numismáticos, documentos, obras de arte e coleções. É um acervo muito rico”, avalia Rosi, acrescentando que as fotos estão entre os maiores atrativos do museu e chamam a atenção de crianças e adultos.

Para muitos visitantes, principalmente aqueles que viveram o pioneirismo paranavaiense nos anos 1940 e 1950, estar em contato com tantas peças familiares evoca um tempo de muita saudade e nostalgia. “Enquanto as crianças se surpreendem, animadas com os instrumentos usados pelos avós, os mais velhos saem daqui chorando, muito emocionados”, revela a coordenadora, ressaltando que apenas de visitas aleatórias já receberam este ano milhares de pessoas, sem contar os estudantes que frequentam as oficinas da Casa da Cultura. Um dos destaques é a oficina Literarte que atende turmas de crianças e adolescentes no museu com o objetivo de reviver o passado a partir de brincadeiras, histórias e atividades artísticas.

Fotos estão entre os maiores atrativos (Foto: Casa da Cultura)

No Museu de Paranavaí, as peças estão contextualizadas e organizadas por categorias. Há inclusive reproduções de espaços que remetem a um estilo de vida pautado pela luta. Exemplo é uma estrutura montada pela coordenadoria do museu para transmitir às novas gerações a sensação de viver em um rancho no período de colonização. Objetos pessoais e do cotidiano dispostos com esmero num ambiente rústico dão a tônica de uma peculiar fidelidade. Há instrumentos muito bem conservados usados por parteiras e pelos peões que trabalhavam na derrubata de mata.

O Museu Histórico, Antropológico e Etnográfico de Paranavaí funciona de segunda à sexta das 8h às 11h30 e das 13h30 às 17h. Entretanto, caso haja pedidos de abertura em outros dias e horários, Rosi Sanga deixa claro que basta agendar uma data. “A ideia do museu nasceu de uma parceria com a professora doutora Luciana Regina Pomari, do Departamento de História da Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí (Fafipa). Desde então, fomos reconhecidos por todos os órgãos representativos nacionais e estaduais”, enfatiza Rosi. O Museu de Paranavaí também está em todos os catálogos e guias de museus do Brasil. Em 2007 e 2008, tiveram o acompanhamento da Coordenação do Sistema Estadual de Museus (Cosem) que ministrou cursos e treinamentos em Paranavaí. Para mais informações, basta ligar para (44) 3902-1049.

Site do Museu de Paranavaí: http://museuparanavai.webnode.com.br/

“A recepção cultural começa no feto”

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Domingos Pellegrini fala sobre o poder da oralidade e da leitura na construção da identidade humana

“A própria contação de estória é uma ação civilizatória” (Foto: Amauri Martineli)

Autor de inúmeras obras literárias premiadas, entre as quais “O Caso da Chácara Chão” e “O Homem Vermelho” que venceram o Prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira, o londrinense Domingos Pellegrini é o escritor de todos os públicos, pois seus livros, sejam infanto-juvenis ou romances, falam com a humanidade, independente de estar representada numa figura infantil ou adulta.

Pellegrini já trabalhou como jornalista, publicitário e professor universitário, porém, há quinze anos, mesmo sem ter certeza do que o futuro lhe reservava, tomou a decisão de se dedicar ao que admite ser um dom, a criação de histórias que nascem regionais e se universalizam, brindando o leitor com um sentimento de pertencimento. Um exemplo é a obra “Terra Vermelha” que gira em torno de uma família de colonos pés-vermelhos de Londrina, numa ficção embutida de realidade que carregada de humanismo sensibiliza e desperta identificação até mesmo num camponês de uma vila islandesa.

Detentor de um estilo de escrever peculiar, claro e simplificado, mas que sempre propõe profusão reflexiva, uma subjetiva influência de escritores como o estadunidense Ernest Hemingway e os brasileiros Graciliano Ramos e Manuel Bandeira, Domingos Pellegrini é na atualidade um dos escritores mais respeitados e bem sucedidos do Brasil. Em outubro, o autor lança sua mais recente obra: “Herança de Maria”.

No dia 28 de abril, quinta-feira, às 15h, tive a oportunidade de entrevistar Pellegrini no Grande Hotel, na Rua Getúlio Vargas, em Paranavaí. O escritor se preparava para participar à noite do projeto “Autores e Ideias”, do Serviço Social do Comércio (Sesc), na Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade, onde dividiu o palco com a mineira Angela Lago, renomada escritora e ilustradora de literatura infantil.

Espontâneo e bem-humorado, Domingos Pellegrini transformou a entrevista em um diálogo informal com caráter de bate-papo, e tudo foi acompanhado pelo fotógrafo, artista e diretor cultural da Fundação Cultural de Paranavaí, Amauri Martineli, e também pelo artista e técnico em atividade do Sesc, Dorival Torrente. Pellegrini falou sobre muitos assuntos ao longo de mais de uma hora, como a importância da contação de histórias na infância, internet, literatura e democratização do ensino. Confira alguns trechos logo abaixo.

Levando em conta que a sua vinda a Paranavaí foi motivada por uma discussão sobre a contação de histórias e a literatura infanto-juvenil, como o senhor avalia a relação entre a descoberta do mundo na infância e a oralidade?

Eu vejo que a história oral para crianças é muito importante porque a recepção cultural começa no feto. A partir do nascimento, uma simples cantiga de ninar já começa a ditar nossas emoções e comportamentos. Com uma música de rock a criança se agita e com uma música clássica ela se acalma. Com base nisso, percebemos que a voz humana encanta e nada substitui isso, é o poder da oralidade. Quer se sentir bem? Pegue uma criança e leia para ela, isso afasta qualquer emoção ou sentimento negativo.

Partindo da ficção literária, até que ponto a oralidade contribui no processo civilizatório?

A própria contação de história é uma ação civilizatória. Quando a criança ouve um conto, nasce um sentimento de pertencimento. Ela se sente parte de uma sociedade, reconhece a sua própria língua e depois percebe que é capaz de inventar e criar. A fogueira em volta da qual as pessoas se reuniam no passado para contar histórias ainda existe, é o abajour de hoje. Cada vez mais o mundo precisa de contadores. Se o Wellington [Menezes de Oliveira], que cometeu aquele massacre no Rio de Janeiro, tivesse alguém que lhe contasse histórias, ele não se tornaria uma pessoa tão solitária, nem cometeria aquele ato.

Em um contexto sócio-cultural, o que representa o contador de histórias nos dias de hoje?

Hoje em dia, ser contador de histórias é uma profissão que exige imaginação, talento e ética, pois até os quatro anos de idade tudo que a criança absorve é a partir da oralidade. Quando ela pisca é como se virasse a página de um livro mental em um clima de cumplicidade e magia criado a partir da voz. Quanto mais uma criança ouve histórias, mais os seres imaginários são absorvidos como parte da família humana. Pelo fato de sermos os únicos animais que fazem arte de forma intencional é importante despertar logo cedo a identificação com a humanidade.

A atual literatura infanto-juvenil desempenha bem a missão de proporcionar a criança uma leitura que a permita refletir sobre a sua realidade, o mundo que a cerca?

Sim. Claro que há autores que escrevem apenas para divertir, no entanto, há muitos outros que tratam da ética. Não sou moralista, mas acredito na humanidade e na idéia de que as pessoas podem se tornar melhores. Sou da geração que tinha horizontes bem rurais em 1950, quando as pessoas viviam em um mundo limitado pelas crendices. Tudo isso mudou.  O Brasil passa por uma revolução cultural que muitos outros países viveram há 150 anos, como Alemanha, Inglaterra, França e Japão. Está havendo a democratização do ensino. Temos mais pessoas alfabetizadas, mais leitores e ao contrário de antigamente acabou-se aquele pensamento de que você deveria se tornar doutor ou então não seria nada. Hoje, temos muito mais gente fazendo curso superior. Além disso, há alternativas como os cursos técnicos.

“Só escrevo sobre aquilo que conheço, vejo e vivo” (Foto: Amauri Martineli)

Com a popularização da internet e também das publicações virtuais, como incentivar o interesse dos mais jovens pelo livro impresso?

Eu não vejo conflito entre a internet, o livro e outras formas primitivas de fruição com as formas mais atuais, muito pelo contrário, são meios de comunicação que se complementam. Hoje, um pai pode contar uma história para o filho dormir mesmo estando a milhares de quilômetros de distância, por meio de uma webcam. É uma conquista que só é possível graças à tecnologia, à internet.

A literatura infanto-juvenil brasileira está se renovando ou se restringe mais às adaptações e readaptações de obras do passado?

Com certeza, se renova. O Brasil passa por uma revolução tecnológica e cultural que inclui a literatura infanto-juvenil. Há uma grande preocupação em se transmitir cada vez mais valores a partir de uma arte feita com beleza, criatividade, amor, imaginação e ética.

Quando o senhor descobriu o talento de escrever para públicos de todas as faixas etárias?

Decidi escrever um livro sobre uma árvore que dava dinheiro e percebi que não tinha muito a ver com o público adulto, então me direcionei ao público infanto-juvenil. “A Árvore que Dava Dinheiro”, lançado em 1981, tem enredos fantásticos em que uso metáforas para abordar problemas como inflação e estagnação econômica. A história ensina que para se conseguir dinheiro é importante trabalhar.

A autobiografia é uma de suas características mais marcantes, de que maneira isso influi na concepção de uma obra?

Comecei a escrever poemas aos 14 anos e desde então só escrevo sobre aquilo que conheço, vejo e vivo. Na obra “Terra Vermelha”, por exemplo, eu falo sobre a minha terra. Prefiro sempre mostrar as características de um personagem por meio da ação e não de adjetivos. Gosto de uma escrita mais econômica. Ainda assim o que eu faço é criar um mundo de imaginação, onde misturo realidade e ficção.

Há previsão de lançamento de alguma obra ainda este ano?

Meu último lançamento foi “Professor Milionário”, em 2009, que fala de um professor que venceu na loteria e usou o dinheiro para investir na escola em vez de se entregar ao consumismo. Mas até outubro será lançado pela Editora Leya, de Portugal, uma das maiores do mundo, o meu livro “Herança de Maria”, uma homenagem a minha mãe, uma mulher guerreira, a frente do seu tempo, que tinha autonomia em suas decisões. A obra será 30% ficção e 70% realidade.

Quais as lembranças das inúmeras vezes em que participou dos eventos culturais de Paranavaí?

Vir a Paranavaí é sempre uma experiência muito interessante. Aqui tem gente interessada em discutir, falar abertamente sobre arte. De fato, há um quociente cultural mais denso do que em outras cidades. Percebo, e não é de hoje, que Paranavaí tem uma tradição de atividades culturais. Lembro de quando estive aqui com a palestra-recital “Saques e Toques” [“Poesia para Ver, Ouvir, Sentir e Pensar” – durante o Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup) de 2009] e a participação do público me surpreendeu. Naquela ocasião, abordei temas diversos como ecologia, relações humanas e cidadania.

Curiosidade

O escritor Domingos Pellegrini nasceu em 23 de julho de 1949 em Londrina, no Norte Central Paranaense.