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Al-Ma’arri e a guerra civil na Síria
Lendo sobre a tragédia que é a guerra civil na Síria, me recordei que no século XI o poeta e filósofo sírio Al-Ma’arri já criticava o fundamentalismo religioso, a avareza e a ganância, e defendia o direito à vida, inclusive se abstendo de se alimentar de animais. O tempo passou e as tragédias estão aí, reafirmando mais uma vez algo que um filósofo árabe cego já enxergava, temia e condenava no passado.
Considerações sobre a guerra civil síria que já matou mais de 470 mil pessoas
A batalha em Ghouta Oriental, na Síria, deixou mais de 600 mortos, principalmente crianças, desde o último dia 18 de fevereiro – 393 mil pessoas estão presas no cerco. De acordo com o Centro Sírio de Pesquisas Políticas, 470 mil pessoas já morreram desde o início da guerra civil síria em 2011. E cerca de cinco milhões já deixaram o país. Os dois lados já cometeram atrocidades, logo crimes contra a humanidade, ao longo dos anos. E claro, já foram financiados por “grandes e persuasivas nações”. Mais uma vez, seres humanos brigando por território ao custo de muitas mortes. De que adianta conquistar um território e perder muitas vidas? Qual é a coerência disso?
Veja a história da humanidade; civilizações e cidades que desapareceram por causa de guerras, restando apenas ruínas. É esse o presente que amargamos e o futuro que esperamos para a humanidade? Acredito que não seja novidade que os verdadeiros comandantes das guerras costumam ser aqueles que na realidade não vão à guerra, e pouco se importam, de fato, com aqueles que morrem nela; menos ainda se são inocentes – algo que chamam de “efeito colateral”. Simplesmente enviam seus intratáveis, inclementes, tolos ou ingênuos asseclas para matar ou morrer.
Quanto mais baixo o nível intelectual, mais fácil a persuasão. Egotismo, fundamentalismo religioso, ufanismo, patriotismo, nacionalismo, antropocentrismo, etnocentrismo ajudando a afundar a humanidade mais um pouco, e arrastando aqueles que nunca tomaram parte nessas ações – ideológicas ou não. Enquanto a vida não for vista como parte de uma unidade geral que deveria ser respeitada porque é essencialmente indissociável em termos de valores, para além das origens e de outras disparidades, vamos continuar cometendo os mesmos erros do passado; erros estes que por sinal podem ter até mais motivação econômica do que ideológica.
Às vezes, o que na realidade significa todo dia, penso em quantos seres humanos e não humanos estão morrendo enquanto digito algumas palavras. A vida vale pouco ou nada para aquele que não respeita nem a sua própria humanidade, logo menos ainda o direito dos outros. Creio, e há muito tempo, que guerra entre mocinhos e vilões é mais parte de uma fantasia, um conto romanesco, do que de uma realidade concreta, ponderando que em uma guerra os excessos são práticas usuais dos dois lados quando se visa atingir um fim.
Se alguém busca reparação por meio da violência, é preciso estar preparado para um possível ciclo interminável, como já havia referenciado Ismail Kadaré no romance “Prilli i Thyer” ou “Abril Despedaçado”. Talvez o símbolo que melhor represente a fealdade e a intransigência humana dos tempos atuais seja um ouroboros, a serpente que engole a própria cauda – e não no sentido simbólico mais auspicioso.
Al-Ma’arri e a tragédia na Síria
Lendo sobre a tragédia na Síria, me recordei que no século XI o poeta sírio Al-Ma’arri já criticava o fundamentalismo religioso e defendia o direito à vida, inclusive se abstendo de se alimentar de animais. O tempo passou e as tragédias estão aí, reafirmando mais uma vez algo que um filósofo cego já temia e condenava no passado.
A professora que enfrentou sozinha o Estado Islâmico
“Quando protestei em frente ao quartel-general do EI, ninguém teve coragem de tirar foto”
Há anos, a professora síria Souad Nawfal protesta contra o Estado Islâmico e contra o regime ditatorial do presidente sírio Bashar al-Assad, que segundo ela é o maior responsável pela expansão terrorista na Síria. As ações de Souad tiveram início em 15 de março de 2012, após a morte de Ali Babinsky, de 17 anos, o primeiro sírio a ser assassinado pelo regime de Assad.
Naquele dia, um grupo se reuniu para realizar o funeral do garoto seguido por um protesto clamando por justiça. Mas o que ninguém imaginava era que Assad mandaria matar quem ousasse “afrontá-lo”. “Eles atiraram em nós e mataram 16 pessoas que estavam com a gente”, conta a professora. A popularidade de Souad, que sempre se recusou a seguir o código de vestimenta feminina, cresceu quando um vídeo dela intitulado “A Mulher de Calças” foi publicado na internet. Ao longo de quatro minutos, a professora aparece criticando o Estado Islâmico e o qualificando como um governo ilegítimo fundamentado no obscurantismo religioso.
“Comecei a protestar contra o Estado Islâmico quando eles levaram o Pai Paolo [jesuíta italiano que apoiou a revolução síria e tinha uma paróquia ao norte de Damasco], meu hóspede. Eles o raptaram e desde então nunca mais tivemos notícias”, relata. O padre foi visto como uma ameaça porque ele tinha planos de acabar com o sigilo envolvendo os crimes cometidos em Raqqa, no centro-norte da Síria.
Baixinha, Souad Nawfal, que tem como hábito usar apenas o hijab, e por tradição identitária, não por obrigação, chegou a passar meses protestando contra a imposição de uma nova ideologia que segundo ela é totalitarista e contrária ao verdadeiro islã. “O Estado Islâmico trata todos muito mal. São exatamente como o regime de Assad. Assustam e subjugam as pessoas”, reclama. Durante os protestos de 2012, o EI impediu que os manifestantes fotografassem ou filmassem as mobilizações. Quem os desafiasse, era surrado e preso.
“Ao longo dos 45 dias que protestei em frente ao quartel-general do Estado Islâmico, ninguém teve coragem de tirar foto de mim, nem de longe”, lembra. Ainda assim, ela prosseguiu sozinha, tentando chamar a atenção para a realidade do povo sírio que já morria aos milhares. Muitas vezes a professora foi alvo de xingamentos, cusparadas e até atropelamentos. “Um dia um homem de barba longa e branca, que fazia parte do Estado Islâmico, quis estacionar bem onde eu estava. Eu disse que não sairia e ele me bateu algumas vezes com o carro, querendo me intimidar”, enfatiza.
De acordo com Souad, o EI nunca teve dificuldade em conquistar adeptos porque a tática deles é baseada na desinformação. Para as linhas de frente, eles sempre procuram recrutar jovens pobres e ignorantes, que pouco acesso tiveram à educação formal. “Uma tática eficaz é a lavagem cerebral das crianças de Raqqa. Eles prometem alimento e dinheiro à família e em troca exigem que seus filhos se tornem soldados. Essas crianças se sentem poderosas porque ganham armas e são chamadas de ‘xeiques’”, pontua.
Não foram poucas as vezes que Souad teve uma kalashnikov apontada para sua cabeça. E as ameaças eram diárias. Acostumada, ela simplesmente respondia: “Vamos! Se vocês me matarem primeiro, não esqueçam que a segunda bala tem que ser para Bashar.” Esse comentário irritava os soldados do Estado Islâmico porque provava que a professora sabia do relacionamento de conveniência deles com o presidente sírio.
Nem mesmo Souad Nawfal consegue explicar como ela conseguiu ir tão longe sem ser assassinada. Embora seja vista como heroína por tantos ativistas sírios, é possível crer que o fato dela não integrar nenhum grupo ou movimento fizesse com que o Estado Islâmico não a encarasse como uma real ameaça, permitindo que ela vivesse.
Porém, de acordo com o jornalista estadunidense Michael Weiss e o analista sírio Hassan Hassan, Souad ficou bem próxima da morte em setembro de 2012, quando o Estado Islâmico atacou e queimou duas igrejas cristãs, removendo as cruzes e colocando a bandeira negra da jihad. “No dia 25 de setembro, eles fizeram isso na igreja católica Sayidat al-Bishara e então 24 pessoas apareceram para protestar”, narram.
Ciente de que não adiantaria se queixar diante dos escombros. Souad sugeriu que todos a acompanhassem até o quartel-general do EI. Porém, antes de chegar lá, os manifestantes se dispersaram e a deixaram sozinha. Irritados, os soldados do Estado Islâmico lançaram uma bomba que explodiu ao lado da professora. Por sorte, ela saiu ilesa. “Antes escrevi uma mensagem à minha família me desculpando. Eu achava que aquele seria meu fim”, confidencia.
E para piorar, um garoto de 16 anos se aproximou, a chamou de infiel e perguntou aos outros soldados porque eles não matavam Souad. Não houve resposta. Ordenaram apenas que o menino se afastasse. “Depois um sujeito armado desceu de um carro, me pegou pelo braço e bateu em meu ombro”, assinala. A professora também recebeu cusparadas de outro homem.
Antes de ser liberada, ela fez questão de se queixar da apatia da população síria: “Vocês estão felizes, sírios? Olhem o que eles estão fazendo comigo. Olhem para suas mulheres, como elas estão sendo estupradas, como estão sendo atacadas e vocês só aí, olhando.”
Prêmio Homo Homini
Em 2015, Souad Nawfal foi premiada em Praga, na República Tcheca, com o prêmio Homo Homini, destinado a quem luta pela defesa dos direitos humanos. Até hoje a professora atua como ativista, denunciando as mazelas do Estado Islâmico e do governo sírio.
Ela também critica a apatia da comunidade internacional, que ignora o fato de que mais de 470 mil pessoas já morreram na Síria ao longo de cinco anos de Guerra Civil, segundo dados do Centro Sírio para Pesquisa Política.
De acordo com Souad, o único jeito de acabar com o terrorismo na Síria é derrubando o regime de Bashar al-Assad, a quem ela culpa por oferecer condições para a expansão do Estado Islâmico no Oriente Médio.
Referências
Weiss, Michael. Hassan, Hassan. Isis: inside the Army of Terror. Regan Arts (2015).
If Assad falls the terrorists will fall too – Souad Nawfal accepts the Homo Homini Award (2015). Disponível em http://oneworld.cz.
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