David Arioch – Jornalismo Cultural

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A professora que enfrentou sozinha o Estado Islâmico

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“Quando protestei em frente ao quartel-general do EI, ninguém teve coragem de tirar foto”

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“Eles atiraram em nós e mataram 16 pessoas que estavam com a gente” (Foto: Yvan)

Há anos, a professora síria Souad Nawfal protesta contra o Estado Islâmico e contra o regime ditatorial do presidente sírio Bashar al-Assad, que segundo ela é o maior responsável pela expansão terrorista na Síria. As ações de Souad tiveram início em 15 de março de 2012, após a morte de Ali Babinsky, de 17 anos, o primeiro sírio a ser assassinado pelo regime de Assad.

Naquele dia, um grupo se reuniu para realizar o funeral do garoto seguido por um protesto clamando por justiça. Mas o que ninguém imaginava era que Assad mandaria matar quem ousasse “afrontá-lo”. “Eles atiraram em nós e mataram 16 pessoas que estavam com a gente”, conta a professora. A popularidade de Souad, que sempre se recusou a seguir o código de vestimenta feminina, cresceu quando um vídeo dela intitulado “A Mulher de Calças” foi publicado na internet. Ao longo de quatro minutos, a professora aparece criticando o Estado Islâmico e o qualificando como um governo ilegítimo fundamentado no obscurantismo religioso.

“Comecei a protestar contra o Estado Islâmico quando eles levaram o Pai Paolo [jesuíta italiano que apoiou a revolução síria e tinha uma paróquia ao norte de Damasco], meu hóspede. Eles o raptaram e desde então nunca mais tivemos notícias”, relata. O padre foi visto como uma ameaça porque ele tinha planos de acabar com o sigilo envolvendo os crimes cometidos em Raqqa, no centro-norte da Síria.

Baixinha, Souad Nawfal, que tem como hábito usar apenas o hijab, e por tradição identitária, não por obrigação, chegou a passar meses protestando contra a imposição de uma nova ideologia que segundo ela é totalitarista e contrária ao verdadeiro islã. “O Estado Islâmico trata todos muito mal. São exatamente como o regime de Assad. Assustam e subjugam as pessoas”, reclama. Durante os protestos de 2012, o EI impediu que os manifestantes fotografassem ou filmassem as mobilizações. Quem os desafiasse, era surrado e preso.

“Ao longo dos 45 dias que protestei em frente ao quartel-general do Estado Islâmico, ninguém teve coragem de tirar foto de mim, nem de longe”, lembra. Ainda assim, ela prosseguiu sozinha, tentando chamar a atenção para a realidade do povo sírio que já morria aos milhares. Muitas vezes a professora foi alvo de xingamentos, cusparadas e até atropelamentos. “Um dia um homem de barba longa e branca, que fazia parte do Estado Islâmico, quis estacionar bem onde eu estava. Eu disse que não sairia e ele me bateu algumas vezes com o carro, querendo me intimidar”, enfatiza.

De acordo com Souad, o EI nunca teve dificuldade em conquistar adeptos porque a tática deles é baseada na desinformação. Para as linhas de frente, eles sempre procuram recrutar jovens pobres e ignorantes, que pouco acesso tiveram à educação formal. “Uma tática eficaz é a lavagem cerebral das crianças de Raqqa. Eles prometem alimento e dinheiro à família e em troca exigem que seus filhos se tornem soldados. Essas crianças se sentem poderosas porque ganham armas e são chamadas de ‘xeiques’”, pontua.

Não foram poucas as vezes que Souad teve uma kalashnikov apontada para sua cabeça. E as ameaças eram diárias. Acostumada, ela simplesmente respondia: “Vamos! Se vocês me matarem primeiro, não esqueçam que a segunda bala tem que ser para Bashar.” Esse comentário irritava os soldados do Estado Islâmico porque provava que a professora sabia do relacionamento de conveniência deles com o presidente sírio.

Nem mesmo Souad Nawfal consegue explicar como ela conseguiu ir tão longe sem ser assassinada. Embora seja vista como heroína por tantos ativistas sírios, é possível crer que o fato dela não integrar nenhum grupo ou movimento fizesse com que o Estado Islâmico não a encarasse como uma real ameaça, permitindo que ela vivesse.

Porém, de acordo com o jornalista estadunidense Michael Weiss e o analista sírio Hassan Hassan, Souad ficou bem próxima da morte em setembro de 2012, quando o Estado Islâmico atacou e queimou duas igrejas cristãs, removendo as cruzes e colocando a bandeira negra da jihad. “No dia 25 de setembro, eles fizeram isso na igreja católica Sayidat al-Bishara e então 24 pessoas apareceram para protestar”, narram.

Ciente de que não adiantaria se queixar diante dos escombros. Souad sugeriu que todos a acompanhassem até o quartel-general do EI. Porém, antes de chegar lá, os manifestantes se dispersaram e a deixaram sozinha. Irritados, os soldados do Estado Islâmico lançaram uma bomba que explodiu ao lado da professora. Por sorte, ela saiu ilesa. “Antes escrevi uma mensagem à minha família me desculpando. Eu achava que aquele seria meu fim”, confidencia.

E para piorar, um garoto de 16 anos se aproximou, a chamou de infiel e perguntou aos outros soldados porque eles não matavam Souad. Não houve resposta. Ordenaram apenas que o menino se afastasse. “Depois um sujeito armado desceu de um carro, me pegou pelo braço e bateu em meu ombro”, assinala. A professora também recebeu cusparadas de outro homem.

Antes de ser liberada, ela fez questão de se queixar da apatia da população síria: “Vocês estão felizes, sírios? Olhem o que eles estão fazendo comigo. Olhem para suas mulheres, como elas estão sendo estupradas, como estão sendo atacadas e vocês só aí, olhando.”

Prêmio Homo Homini

Em 2015, Souad Nawfal foi premiada em Praga, na República Tcheca, com o prêmio Homo Homini, destinado a quem luta pela defesa dos direitos humanos. Até hoje a professora atua como ativista, denunciando as mazelas do Estado Islâmico e do governo sírio.

Ela também critica a apatia da comunidade internacional, que ignora o fato de que mais de 470 mil pessoas já morreram na Síria ao longo de cinco anos de Guerra Civil, segundo dados do Centro Sírio para Pesquisa Política.

De acordo com Souad, o único jeito de acabar com o terrorismo na Síria é derrubando o regime de Bashar al-Assad, a quem ela culpa por oferecer condições para a expansão do Estado Islâmico no Oriente Médio.

Referências

Weiss, Michael. Hassan, Hassan. Isis: inside the Army of Terror. Regan Arts (2015).

If Assad falls the terrorists will fall too – Souad Nawfal accepts the Homo Homini Award (2015). Disponível em http://oneworld.cz.

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George Orwell, a redenção de um artista

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As obras de Orwell revelam como ele se sentia em relação ao violento sistema em que estava inserido

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Richard Blair ficou decepcionado quando soube que o filho queria se tornar um escritor (Foto: Reprodução)

Richard Walmesley Blair passou 35 anos trabalhando no Departamento de Ópio do Serviço Civil Indiano, uma agência do governo britânico que abalizava a produção de papoula no país. Mesmo assim, Eric Arthur Blair, que cresceu na Inglaterra sem a presença do pai, se dispôs a seguir um destino semelhante, ou seja, tornar-se um filho fiel do Império Britânico.

Aos 19 anos, Blair foi aprovado em sétimo lugar, de um total de 27 classificados, para ingressar como assistente da superintendência da Polícia Imperial Indiana na Birmânia. De acordo com o escritor e professor de literatura canadense, Steve King, o que Eric testemunhou mudou o rumo de sua vida.

“Suas novelas e ensaios revelariam como ele se sentia sobre o sistema de espancamentos, enforcamentos, vigilância e escravidão social em que estava inserido. Blair escreveu mais tarde que independente de tempo e treinamento, ele nunca conseguiu se sentir indiferente à face humana. Por isso, renunciou à função em 1927, depois de cinco anos de ‘trabalho sujo’”, explica.

Richard recebeu a decisão do filho com decepção, principalmente quando soube que seu desejo era tornar-se escritor. Eric iniciou sua jornada para alcançar um tipo peculiar de redenção por meio da literatura. Estava empenhado em  se dedicar a um tipo peculiar de redenção. Como forma de compensação por tudo que viu e viveu na Birmânia, ele se colocou entre os oprimidos para tentar entender como era ser um deles.

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Orwell usou a literatura para combater o totalitarismo (Foto: Arquivo da BBC)

Visitou minas e estaleiros, viveu com andarilhos e vagabundos, aceitou os piores trabalhos e passou fome. São experiências que deram origem ao seu livro de estreia Down and Out in Paris and London, de 1933, lançado no Brasil como Na Pior em Paris e Londres. O jovem autor não gostou muito da obra e antes de publicá-la decidiu adotar o nome George Orwell. Pensou também em outros nomes como P.S. Burton, identidade que adotou quando virou andarilho, Kenneth Miles e H. Lewis Allways.

Os 15 anos seguintes da vida do escritor foram dedicados a combater o totalitarismo e defender através de suas obras a forma mais genuína de socialismo. Quando se juntou à causa republicana na Guerra Civil Espanhola, eles queriam que ele contribuísse escrevendo, fazendo propaganda, porém o seu desejo era lutar. E foi o que conseguiu. A experiência o inspirou a escrever o livro Homage to Catalonia (Homenagem à Catalunha), de 1938.

Como voluntário, George Orwell participou de inúmeras incursões, ficando conhecido pela imprudência nos campos de batalha. E o que fazia dele um alvo fácil era a inexperiência e altura – ele tinha mais de 1,90m. Na primavera de 1937, Orwell quase morreu após levar um tiro na garganta.

“Durante a Segunda Guerra Mundial, como ele sempre sofreu com doenças brônquicas e pré-tuberculosas, teve de se contentar em atuar como guarda territorial, dando palestras sobre combate e cuidando de suprimentos de bombas caseiras que ele resguardou na sua própria casa, perto da lareira”, declara King.

Em 1940, o escritor pressionou o governo britânico para custear exibições do filme O Grande Ditador, de Charlie Chaplin, por toda a Inglaterra. Também fez uma campanha para distribuir armas, inclusive granadas, a cada morador, com a intenção de criar um exército civil capaz de se defender se necessário. “Um rifle pendurado na parede de um operário ou de um camponês é um símbolo da democracia”, escreveu George Orwell.

Primeira edição do livro 1984, lançado em 1949 (Foto: Reprodução)

Primeira edição do livro 1984, lançado em 1949 (Foto: Reprodução)

Depois dos 40 anos, Orwell percebeu que não viveria muito. A tuberculose piorou e ele continuou evitando repouso. Contrariando todas as recomendações, se mudou para a remota Ilha de Jura, na costa oeste da Escócia. Sua casa não tinha eletricidade e se situava a 12 quilômetros de uma estrada que só poderia ser alcançada a pé. E a loja mais próxima ficava a 40 quilômetros. Para piorar, sua esposa, Eileen O’Shaughnessy, faleceu repentinamente em 1945. Então o escritor teve de encarar a realidade de criar sozinho o filho Richard, um bebê que adotaram em junho de 1944.

Quando a guerra acabou, em 2 de setembro de 1945, ele começou a criar a sua novela mais famosa – 1984, até hoje considerada um dos maiores manifestos literários contra o totalitarismo. “Seus heróis vieram das fileiras das classes operárias porque ele acreditava que os horrores gerados pela polícia do pensamento, novilíngua e o ritual Dois Minutos de Ódio deveriam ser combatidos pelos Winston Smith do mundo, não pelos Winston Churchill”, enfatiza King.

Em 1946, Orwell tentou encontrar uma companheira que pudesse ajudá-lo a criar Richard, mas suas três propostas foram declinadas, até porque ninguém queria morar na isolada Ilha de Jura. Três anos depois, o escritor foi surpreendido por Sonia Brownell que aceitou se casar com ele. E ela admitiu que foi conquistada por uma frase: “Procuro uma mulher para ser viúva de um homem de letras.”

O romance distópico 1984 foi concluído em dezembro de 1948 e logo o estado de saúde de george Orwell piorou, tanto que acabou internado no The Costwold Sanatorium, em Gloucesterhsire, no sudoeste da Inglaterra. Quando seu editor o visitou em 21 de janeiro de 1949, eles decidiram que seria melhor mudar o título da obra, então chamada The Last Man in Europe (O Último Homem na Europa).

O New York Times Book Review definiu a receptividade do livro como esmagadoramente admirável, com gritos de horror que superaram os aplausos. Muitos viram o título como ameaçador, mas ele só foi escolhido porque 84 é o inverso de 48, ano em que Orwell terminou de escrevê-lo. Ele faleceu em 21 de janeiro de 1950, exatamente um ano depois da escolha definitiva do título.

Saiba Mais

George Orwell nasceu em 25 de junho de 1903 em Motihari, na Índia, e faleceu em 21 de janeiro de 1950, no University College Hospital, em Londres, na Inglaterra. Ele tinha apenas 46 anos.

Obras mais importantes de George Orwell

1984 (1949), Animal Farm (A Revolução dos Bichos – 1945), The Road to Wigan Pier (O Caminho para Wigan Pier – 1937), Homage to Catalonia (Homenagem à Catalunha – 1938) e Down and Out in Paris and London (Na Pior em Paris e Londres – 1933).

Passagens do livro 1984, lançado em 1949 (Página 63)

Era provável que houvesse milhões de proles para quem a Loteria era o principal senão o único motivo de continuar a viver. Era o seu deleite, sua loucura, seu anódino, seu estimulante intelectual. Quando se tratava da Loteria, até gente que mal sabia ler e escrever fazia intrincados cálculos e fantásticas proezas de memória. Havia um exército de homens que ganhava a vida graças à simples venda de sistemas, previsões e amuletos.

Winston nada tinha que ver com a exploração da Loteria, que era administrada pelo Ministério da Fartura, mas sabia (como sabiam todos do Partido) que em grande parte os prêmios eram imaginários. Na realidade, só eram pagas pequenas quantias, sendo pessoas inexistentes os ganhadores da sorte grande. Na ausência de qualquer intercomunicação real entre uma parte e outra da Oceania, não era difícil arranjar isso.

Mas se esperança havia, estava nas proles. Era preciso agarrar-se a isso com unhas e dentes. Quando se traduzia o pensamento em palavras, parecia razoável: mas quando se considerava os homens que passavam pela calçada, a ideia se transformava em ato de fé.

Referências

http://www.todayinliterature.com/

Taylor, D. J. (2003). Orwell: The Life. Henry Holt and Company.

Ingle, Stephen (1993). George Orwell: a political life. Manchester, England: Manchester University Press.

Crick, Bernard R. (1980).George Orwell: A Life. Boston: Little, Brown and Company.

“The Orwell Prize | Life and Work—Exclusive Access to the Orwell Archive”Pesquisa realizada em 29 de maio de 2016.

O humor cáustico de Mel Brooks

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Primavera Para Hitler ironiza o nacional socialismo e a elitização da arte

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Filme é protagonizado pelos célebres Gene Wilder e Zero Mostel (Foto: Reprodução)

The Producers, de 1968, lançado no Brasil como Primavera Para Hitler, é uma comédia do cineasta estadunidense Mel Brooks sobre personagens fracassados que alcançam um sucesso nunca almejado. A obra ironiza o nacional socialismo e a elitização da arte.

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Peça de Bialystock e Bloom alcança sucesso inesperado (Foto: Reprodução)

No início do filme, o espectador é introduzido ao mundo degradante, embora cômico, de Max Bialystock (Zero Mostel), um produtor de teatro falido que sobrevive mantendo romances simultâneos com mulheres idosas. Na história, Bialystock conhece o contabilista Leo Bloom (Gene Wilder) que lhe apresenta a teoria do insucesso.

Leo explica a Max que superfaturar uma peça de teatro ruim aumenta as chances de um produtor enriquecer. A justificativa está no fato de que sem retorno financeiro não há lucro para dividir com os investidores. Assim, todos devem aceitar o fracasso como uma consequência natural.

Após uma pesquisa, a dupla decide produzir a peça Primavera para Hitler, um musical criado por um lunático imigrante alemão que mesmo depois de vivenciar a Segunda Guerra Mundial ainda defende o regime nazista. A peça escrita pelo germânico é uma cômica e caricata perspectiva romântica sobre o nacional socialismo e o Führer. Além de descaracterizar e ironizar os regimes totalitaristas, Mel Brooks mostra que a própria natureza humana, sempre atraída pelo incomum, impede que o homem seja politicamente correto. Exemplo é o sucesso da peça e surpresa de Bialystock e Bloom, crentes de que o público condenaria o espetáculo pelo teor xenófobo.

O cineasta também critica a elitização cultural, mostrando no filme que não é preciso ser artista, muito menos conceituado, para obter sucesso com a arte. O primeiro longa-metragem de Mel Brooks funciona também como uma autobiografia em que o humor corrosivo e ingênuo do autor, herança da comédia pastelão, tenta abrir os olhos dos espectadores para a necessidade em cultuar o que é novo e livre das amarras da tradição.