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O dia em que Tio Lú escapou da morte

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Tio Lú quase morreu ao ser confundindo com outro homem (Foto: David Arioch)

Tio Lú quase morreu ao ser confundindo com outro homem (Foto: David Arioch)

O artista plástico Tio Lú, de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, me contou hoje uma história que acho interessante compartilhar. Durante o relato, me recordei de “A Narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket”, de Edgar Allan Poe, que anos depois deixou de ser apenas ficção para se tornar realidade, fazendo muitos de seus leitores refletirem sobre a quimera que envolve questões de probabilidade e impossibilidade.

Há cinco anos, Tio Lú estava pedalando pela Rua Pernambuco, perto do antigo depósito dos Correios, quando lhe chamou a atenção o fato de um homem passar diante dele vestindo roupas iguais e com as mesmas cores – sandálias amendoadas de couro, camisa azul e calça jeans escura. Assim como Tio Lú, o sujeito também era alto, negro e tinha cabeça raspada, além de composição corporal muito semelhante.

Por descuido, o homem quase esbarrou nele e seguiu guiando a bicicleta, também da mesma cor, com pressa, logo desaparecendo no horizonte. Intrigado, mas despreocupado, o artista plástico continuou pedalando, até que de repente ouviu um tiro que passou raspando à direita de sua camisa. O outro balaço coincidiu com o momento em que Tio Lú jogou a bicicleta sobre a calçada, se lançando sobre o pavimento de mosaico português e assim se livrando da morte.

Assustado, olhou para trás e viu um rapaz correndo e empunhando um revólver calibre 38. “O que é isso? Você tá louco?”, questionou Tio Lú, lívido e com o corpo trêmulo. O homem o observou rapidamente, o ignorou e prosseguiu acelerado. Desorientado, o artista plástico só conseguiu se levantar cinco minutos após o choque. No dia seguinte, ficou sabendo que ele foi confundido com o homem mais tarde assassinado na Rua Pernambuco, em Paranavaí.

O homem que sobreviveu a três tentativas de assassinato

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Nebrão: “Dei como certa a minha morte. Ouvi só o barulho acionado pelo gatilho, mas a bala não veio”

Na Vila Alta, quem ingressa no crime precisa de sorte para chegar aos 25 anos (Foto: David Arioch)

Na Vila Alta, quem ingressa no mundo do crime precisa de sorte para chegar aos 25 anos (Foto: David Arioch)

Quem conversa com o pacato Nebrão, de 33 anos, não imagina que ele já foi um dos homens mais perseguidos da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Comunicativo e de fala mansa, hoje se orgulha da vida tranquila e também de ter evitado que crianças e adolescentes entrassem ou continuassem no mundo do crime.

“Saí desse caminho errado graças a Deus. Já fui ladrão sim. Também me envolvi em outras coisas erradas. Não posso negar meu passado, mas me distanciei dessa vida sem futuro”, garante enquanto exibe inúmeras cicatrizes, principalmente marcas de facadas. De origem pobre e sem estrutura familiar, Nebrão é um raro exemplo de sobrevivência, ainda mais levando em conta que no bairro onde foi criado quem se torna criminoso precisa de sorte para chegar aos 25 anos.

O rapaz perdeu muitos amigos de infância e adolescência nos anos 1990, quando uma onda de terror tomou conta do bairro. Naquele tempo, a Vila Alta era conhecida como Vila do Sossego. “Muita gente foi pra debaixo da terra e outro monte pra cadeia. Era bandido matando bandido. É até difícil citar uma rua onde não morreu ninguém na época”, afirma. Os assassinatos no bairro sempre tiveram relação com o narcotráfico ou rixas entre facções do crime organizado. “Aqui é bem tranquilo para quem não se envolve com essas coisas, mas o ‘bicho pega’ se tu seguir a vida do crime e der mancada”, garante e cita o exemplo de um garoto de 13 anos que morreu após levar um tiro na cabeça enquanto estava escorado sobre um tanque, bebendo água da torneira.

Nebrão: "Difícil era citar uma rua onde não morreu ninguém” (Foto: David Arioch)

Os assassinatos no bairro sempre tiveram relação com o narcotráfico ou rixas entre facções do crime organizado (Foto: David Arioch)

O adolescente foi morto porque furtou uma trouxinha de drogas. A tolerância é zero, tanto com quem tenta enganar algum traficante quanto com quem consome e não paga pelo produto. “A quantidade nunca interessa. Pra eles, o mais importante é impor medo e respeito, mostrar que a punição é mortal”, enfatiza. Enquanto converso com Nebrão, ele faz questão de caminhar alguns passos e me mostrar onde três adolescentes foram executados porque “cresceram os olhos” sobre os lucros do chefe. “Quem se envolve com a bandidagem tem que respeitar também a lei do crime”, explica.

Por muito tempo, Nebrão foi conhecido como o maior “ladrão de água e de energia elétrica da Vila Alta”, atividade que depois lhe trouxe problemas com a Companhia Paranaense de Energia (Copel), Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) e polícia militar. Autodidata, se tornou uma espécie de mestre das gambiarras. “Só de olhar, eu sabia o que tinha de fazer. Por R$ 35, eu resolvia o problema de qualquer um. Só ficava sem água ou sem luz quem quisesse”, lembra e acrescenta que já atendeu cerca de 1/3 do bairro.

Famoso pelo serviço rápido, o rapaz desde cedo demonstrou talento em montar e desmontar objetos. Chegou a ser contratado para furtar pontes de córregos. “Dependendo do tamanho, ele não precisava nem de uma hora para desmontar e levar embora”, garante um amigo que entre sorrisos testemunha a conversa. Envolvido com furtos, roubos e receptação de mercadorias desde a adolescência, Nebrão declara que só está vivo porque Deus quis assim. “Quem tem um histórico parecido com o meu não vive muito. Sou um sobrevivente”, garante.

Nebrão falando dos anos 1990: "Difícil era citar uma rua onde não morreu ninguém” (Foto: David Arioch)

Nebrão falando dos anos 1990: “Difícil era citar uma rua onde não morreu ninguém” (Foto: David Arioch)

O rapaz tem motivos para pensar assim. Perdeu as contas de quantas noites dormiu sem saber se acordaria. Uma vez atearam fogo em sua casa de madrugada. Nebrão percebeu o incêndio a tempo e escapou da morte, apesar dos prejuízos materiais. “Comecei a ser perseguido porque um cara delatou dois traficantes e deu o meu nome como se fosse o dele. Ele queria me ‘ferrar’”, revela.

Quando tudo parecia ter voltado à normalidade, Nebrão foi surpreendido na rua por dois homens armados. No momento da execução, apesar da insistência dos atiradores, nenhum dos revólveres disparou. “Dei como certa a minha morte. Ouvi só o barulho acionado pelo gatilho, mas a bala não veio. Corri e vieram no encalço com pedaços de pau. Tentaram me derrubar golpeando minhas pernas. Não caí por milagre e consegui escapar mais uma vez”, confidencia o rapaz que é alto e corpulento, o que também pode ter ajudado na fuga.

As histórias de Nebrão são confirmadas por outros vizinhos que se aproximam para ouvir a conversa. Apesar das tentativas de homicídio, continuou no bairro, próximo da família e dos amigos. Mais tarde, um conhecido apareceu na casa do rapaz e gritou: “Ô, nego, chega aí. Quero falar contigo, é papo reto, coisa rápida.” Em seguida, a irmã de Nebrão disse: “Tenha fé, meu irmão. Deus me disse que hoje você vai amarrar o diabo.”

Quando abriu o portão, o sujeito apontou o revólver para Nebrão que começou a orar enquanto mantinha os olhos fixos sobre o atirador. “Ele abaixou a arma, chorou e disse que não aguentava mais aquela vida. Decidiu se entregar para a polícia”, relata Nebrão que em diversas situações foi perseguido por falsas denúncias de delação de traficantes.

Naquele dia, o homem enviado para matar Nebrão já tinha assassinado cinco pessoas na periferia de Paranavaí. Preocupado com o futuro, Nebrão se distanciou do crime, parou de beber, fumar e se tornou evangélico. Admite que atualmente ganha pouco para sobreviver, mas está feliz por não dever nada a ninguém. “É um dinheiro honesto. Quando a situação aperta, trabalho até na roça nos finais de semana”, assegura.

Hoje, se empenha em fazer alguma diferença na vida de crianças e adolescentes que se tornam ladrões ou ingressam no mundo das drogas. “‘Mando a real’ na molecada. Explico que esse caminho não traz nada de bom. É uma ilusão, e se continuar nele vai morrer sem aproveitar a vida. Aos traficantes e ladrões que conheço, peço pra não oferecer droga nem serviço pra eles. O que posso fazer é aconselhar e pedir”, comenta Nebrão que já conquistou bons resultados com essas ações.

Saiba Mais

Nebrão é um apelido fictício para preservar a identidade do entrevistado.

A revolta dos Capa Preta

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O dia em que um grupo armado planejou a morte do Capitão Telmo Ribeiro 

Eloy Machado: "Trajavam aquelas caponas antigas que cobriam até parte dos cavalos." (Fotos: David Arioch)

Eloy Machado: “Trajavam aquelas caponas antigas que cobriam até parte dos cavalos” (Fotos: David Arioch)

“O capanga vinha sozinho. Nunca vi o Capitão Telmo Ribeiro com jagunço junto, mas sabia onde estava. Tinha a segurança do rapaz de nome Nhapindá que sempre ficava por perto. Era o unha de gato, nome indígena, kaingang. Por isso, os Capa Preta se planejaram pra chegar perto do homem.”

Com a citação acima, o pioneiro paranaense Eloy Pinheiro Machado, 86 anos, introduziu-me ao universo histórico e ainda desconhecido dos cavaleiros conhecidos nos anos 1940 como os Capa Preta. Foi o primeiro grupo armado local que se articulou para mudar os rumos da política de Paranavaí, no Noroeste Paranaense.

Para eles, a transformação dependia de uma mudança radical que só seria possível com o homicídio do Capitão Telmo Ribeiro, um dos personagens mais influentes do Paraná à época. Amigo do ex-interventor federal Manoel Ribas, era temido até pelo então governador Moyses Lupion. “O Lupion ‘cagava’ de medo dele”, enfatiza o pioneiro.

Considerado herói por alguns e vilão por outros, Telmo Ribeiro, que chegou a Paranavaí em 1936 supostamente acompanhado de um grupo de mercenários paraguaios, teve o cotidiano transformado no final dos anos 1940, quando gostava de galopar pelas ruas da colônia e passar algumas horas tomando cerveja. “Era grandão e forte. Ficava horas sentadão observando tudo a sua volta. A coisa ficou feia quando apareceu um buchicho envolvendo seu nome”, conta Machado.

Confusão surgiu a partir de boato envolvendo a Inspetoria de Terras (Acervo: Yolanda Winche)

Confusão surgiu a partir de boato envolvendo a Inspetoria de Terras (Acervo: Yolanda Winche)

Em 1948, Paranavaí era administrada pelo marceneiro Hugo Doubek, de Curitiba, que morava e trabalhava na inspetoria de terras. Mais tarde, surgiu um boato de que o administrador estava beneficiando somente paranaenses, gaúchos e catarinenses na distribuição de terras, privando migrantes de outras localidades.

Em represália, o Capitão Telmo, representante do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), exigiu que Doubek deixasse o cargo para ceder a vaga a João Carraro, um de seus homens de confiança. “Foi uma conversa fiada que inventaram para tirar o Doubek do cargo. Só politicagem em benefício de poucos”, comenta o pioneiro cearense João Mariano.

A situação ficou tensa quando a conversa chegou até os Capa Preta. Audacioso, o grupo tinha um senso de justiça bem peculiar no tempo em que a polícia pouco fazia nos sertões do Noroeste do Paraná. Tudo era muito difícil em Paranavaí, uma colônia formada em meio à mata nativa, onde sonhadores, aventureiros e bandidos dividiam o mesmo espaço.

Naquele tempo, Paranavaí era habitada por gente honesta, aventureiros e bandidos (Foto: Toshikazu Takahashi)

Os Capa Preta circulavam pela colônia sempre no mesmo horário (Foto: Toshikazu Takahashi)

À época, os Capa Preta circulavam pela região central pontualmente. A intenção era avaliar a realidade local e coletar informações que pudessem ser úteis no futuro. Pioneiros relatam que parecia um grupo paramilitar envolvido por uma aura de faroeste cinematográfico. Somavam pelo menos 20 homens usando cintos de balas. Cada um carregava de um lado uma carabina e do outro um revólver calibre 38, da Smith & Wesson.

“Era uma andança sem fim. Trajavam aquelas caponas antigas que cobriam até parte dos cavalos. A maioria só via eles, mas eu os conhecia porque vieram pra esta região com a gente. Alguns chegaram a ficar algum tempo em casa”, afirma Eloy Machado. Quando percorriam a cidade, mantinham os olhares fixos e se comunicavam por sinais.

O reduto dos Capa Preta era uma fazenda perto da ponte do Rio Surucuá, local de onde articularam o plano de homicídio do Capitão Telmo Ribeiro. “Até a polícia sabia de tudo, mas não quiseram intervir. Teve gente que ficou com medo e foi embora daqui. Naquele mesmo dia, os Capa Preta visitaram o ‘Seu Hugo’ na inspetoria de terras e perguntaram se ele precisava de alguma coisa. Estavam cuidando dos preparativos”, confidencia Machado.

O último encontro estratégico dos Capa Preta, liderados pela Família Pininga, foi realizado sob uma árvore frondosa nas imediações do Rio Surucuá. Mais pessoas se uniram ao grupo para participar do atentado contra o Capitão Telmo. “Fiquei muito curioso e quis ir lá ver o que estava acontecendo de perto, mas fui repreendido pelo meu pai. Além disso, a fazenda era muito longe de casa”, diz Eloy Machado.

Machado: "O Lupion cagava de medo do Capitão Telmo.”

João Mariano: “Era bom no gatilho, mas se tivesse ficado aqui, o Capitão Telmo teria morrido.”

O plano foi minado pelo pai do cunhado de Machado. O homem denunciou o plano dos Capa Preta. “Ele era bisbilhoteiro e ouviu tudo. Pegou uma eguinha do meu tio Jeca Machado e foi lá contar pro Capitão Telmo, de quem era leiteiro. Falou até a hora prevista para a morte do homem”, revela.

Quando soube, Ribeiro reconheceu a impossibilidade de enfrentar dezenas de homens armados. A solução foi reunir o essencial e fugir de Paranavaí. “Se tivesse ficado aqui, sem dúvida, teria morrido. Ele era bom de gatilho e tinha muita experiência de luta [participou da Revolução Constitucionalista]. Só que seria impossível sobreviver a um plano envolvendo tanta gente”, avalia Mariano.

Os Capa Preta também poderiam matar os homens que trabalhavam para o Capitão Telmo Ribeiro, como João Clariano, Manoel Paulino, Frutuoso Joaquim de Sales e Medeirão. “Eram pessoas a serviço do Capitão Telmo, então iriam todos pro saco”, supõe Eloy Machado.

Na ausência de Ribeiro, parte dos que participaram do plano decidiram partir, preocupados com a retaliação. Segundo Mariano, o Capitão Telmo era influente e poderia trazer dezenas de combatentes ou até mercenários, assim garantindo a vingança. A Família Pininga, remanescente dos Capa Preta, teve de resistir aos dias consecutivos de saraivada de tiros contra a própria casa.

Defenderam-se como puderam, mas como estavam em menor número pela grande debandada de parceiros, lutaram até o dia da fuga. “Eu me recordo de três rapazes dessa família. Eles não tiveram mais paz. Toda madrugada apareciam homens armados cercando a casa e atirando. A promessa de Ribeiro era acabar com tudo. Não deixar sobrar ninguém”, garante Eloy Pinheiro Machado. Os Pininga conseguiram fugir e nunca mais retornaram a Paranavaí.

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