Archive for April, 2020
“Lion”: um filme sobre família, esperança e recomeço
Lançado em 2016, “Lion: Uma Jornada para Casa”, de Garth Davis, é um filme inspirado na história real de Saroo Brierley, um indiano naturalizado australiano que teve sua vida transformada após se perder do irmão Guddu (Abhishek Bharate) quando insistiu para acompanhá-lo em sua jornada de trabalho longe da aldeia indiana onde viviam.
Com planos abertos e, por vezes, transitando entre o lirismo e o neorrealismo, Davis introduz o espectador à realidade do jovem Saroo (Sunny Pawar), de apenas cinco anos, que tem uma profunda relação de amizade e cumplicidade com o irmão em um contexto de pobreza extrema, onde o trabalho de um dia todo carregando pedras não é o suficiente para aplacar a fome da família que vive sem qualquer recurso em um barraco análogo aos que encontramos nas áreas mais pobres do Brasil.
Nesse cenário, o maior sonho de Saroo é comer uma porção de jalebis, uma massa doce frita e açucarada à base de farinha de trigo, parecida com um pretzel de formas finas. A realidade e inocência determinam suas aspirações de criança.
Numa noite, quando seu irmão avisa que está saindo para trabalhar, Saroo insiste em acompanhá-lo. Guddu cede apenas depois de muita insistência. No trem, ele acaba dormindo e Guddu não consegue acordá-lo. Então o deixa em um banco e pede que não saia do lugar até ele retornar.
A partir daí, chama atenção o contraste concebido por Garth Davis. Em um momento, temos um retrato superpopuloso de uma megametrópole onde aos mais miseráveis não é permitido dormir, caso queiram sobreviver. O barulho e celeridade das idas e vindas são desconfortáveis – como se houvessem tantas pessoas e ao mesmo tempo uma profunda desconexão coletiva – uma ausência de identificação entre elas – por mais mecânicas e homogêneas que parecessem por força da rotina exaustiva.
Quando acorda, Saroo decide procurar o irmão e o cenário muda. Não há mais pessoas e o silêncio predominante também soa ensurdecedor por mais paradoxal que pareça. O pequenino parece engolido por uma escuridão desconhecida – e os planos abertos mais uma vez destacam tanto uma ideia de desencontro quanto de supressão; porque, para Saroo, é como se ele não existisse sem Guddu.
O desespero do menino procurando o irmão é um dos momentos mais líricos da história – quando beleza e tristeza se fundem na própria e intrínseca dualidade. A impressão que se tem é de que é uma busca sem fim, porque quanto mais Saroo procura, menos ele encontra. Os vazios vão se prologando e se multiplicando na proporção em que Saroo se fragiliza rumo à exaustão.
Sua expressão ao entrar em um trem desconhecido, sem saber para onde vai, e observar a escura e amedrontadora madrugada enquanto clama pelo irmão e pela mãe, sabendo que dificilmente haverá resposta, é um retrato doloroso de uma realidade que marcou a vida de tantas crianças pelo mundo afora. A solidão de Saroo no trem dura etapa significativa da primeira parte do filme – o que, com o tempo, intensifica ainda mais um sentimento de medo, angústia e desesperança.
Dali em diante a situação não melhora. Saroo vai parar em Calcutá, na Bengala Ocidental, e sem saber falar bengali, a incomunicabilidade e o desespero são elevados a um novo nível – que por um momento me trouxe lembranças da “Trilogia do Silêncio”, de Bergman. Quando consegue uma aproximação junto a um grupo de crianças, Saroo é obrigado a correr para sobreviver porque elas são sequestradas enquanto dormem.
Garth Davis não dá respostas sobre o episódio, mas a impressão que se tem é de que seriam utilizadas com alguma finalidade – talvez prostituição ou mesmo tráfico de órgãos – e a polícia apenas faz vista grossa. Tudo isso acontece antes do dia amanhecer, o que torna a situação mais aterradora.
Apesar de tudo, Saroo não desiste e continua vagando por um território desconhecido. Encontra uma mulher que fala hindi e o leva para casa. Logo Saroo fica desconfiado quando ela convida um homem para conhecê-lo. O sujeito percorre o corpo da criança com as mãos e dá pistas de ser alguém que atua no ramo de exploração sexual infantil. Estranhando o comportamento do homem e já desconfiando da mulher, ele foge.
Outra cena bucólica de destaque do filme, e que me trouxe lembranças do realismo poético de Vigo, surge quando Saroo, morrendo de fome, assiste um rapaz tomando sopa em um restaurante. Carregando apenas uma colher, que se esforça para manter limpa, ele imita com cuidado, entre penúria e sorrisos, cada movimento do jovem.
Sensibilizado com a situação, o rapaz se aproxima e decide ajudá-lo. Saroo então é encaminhado à polícia, tentam encontrar sua mãe, mas sem sucesso. O que dificulta também sua situação é que ele não sabe o nome exato de sua aldeia e, por um erro comum às crianças, a pronuncia errado. Saroo acaba em uma espécie de orfanato, onde a cada noite, crianças desaparecem, sendo entregues a pedófilos por funcionários da própria instituição.
Garth Davis também evidencia o quanto a corrupção pode ser encontrada em qualquer lugar de uma sociedade corrompida por uma minoria privilegiada que mantém sob rédeas uma massa de miseráveis que nem sempre vê com terror ações aberrantes e visceralmente imorais – até por força da naturalização.
Saroo escapa a um destino terrível ao atrair a simpatia da Senhora Sood (Deepti Naval). Porém, antes de ter sua vida transformada ainda mais, e para sempre, ele a questiona: “Você realmente procurou minha mãe?” A confirmação vem em seguida. Sensibilizada com a criança, ela garante sua adoção por um casal australiano.
Sua fase de adaptação na Austrália, quando conhece a nova mãe Sue Brierley (Nicole Kidman) e o pai John Brierley (David Wenham), e o seu choque positivo diante de um novo mundo, apenas reforçam que estamos diante de uma criança que sobreviveu porque, apesar de enfrentar tanta pobreza e adversidades, encontrou na esperança uma motivação.
A segunda parte com Dev Patel como Saroo e a atriz vegana Rooney Mara como Lucy também é interessante porque marca, mais de 20 anos depois, o desejo do reencontro de Saroo com as suas próprias origens, esquecidas pelo tempo, mas reavivadas pelo anseio em saber o que aconteceu com a mãe e o irmão.
No entanto, não tão contagiante nem lírica quanto a fase com Sunny Panwar, que parece ser a essência do filme que na segunda parte cria uma complexidade a partir dos conflitos existenciais dos personagens. Em síntese, “Lion” é um drama biográfico sobre a importância da família, esperança, recomeço e mais do que vontade de sobreviver – de viver.
À noite
À noite, quando já não precisava mais ouvir ninguém, gostava de deitar no chão e observar o teto. Imaginava que se abria e permitia que todos os desconfortos do dia fossem purificados pela vontade. Pássaros, morcegos e corujas se acomodavam na curta distância lá de cima. Ninguém ansiava por mais proximidade. Parecia suficiente. Observar, sentir e inferir. Não era preciso compreender.
Seria presunção acreditar que somos seres de contemplação. “O que há para ser contemplado?” Mas não importava tanto, para ninguém. Bastava estar ali, diante de um buraco retangular que fazia um pedaço de céu enuviado parecer um chapéu com pontinhos móveis. Imaginava como seria carregá-lo na cabeça – indo de lá pra cá, de cá para ali.
“E se algo muito pesado, intenso e célere voasse em direção à minha cabeça? Sobreviveria? O que restaria?” Depende, seria um avião, um bicho ou um humano voador? São tantas possibilidades plausíveis ou impensáveis nas limitações da consciência – coisas que já se chocam contra a cabeça na ausência do chapéu de céu.
E se, aproveitando o silêncio tardio, eu corresse o máximo que pudesse e o chapéu se transformasse em um sumidouro? Balançaria a cabeça com força e, em resposta a cada comando, faria com que engolisse toda a indignidade ao meu alcance. Quando já fosse inalcançável, cortaria um pedaço do chapéu e entraria eu mesmo dentro do sumidouro para ressurgir em outros lugares.
Vagaria pela breve eternidade da vida, realocando, sem aparecer, pessoas, animais e coisas. Realmente, há algo de muito grave e errado em um mundo com tantas coisas fora do lugar. Depois voltaria ao chão e deitaria outra vez. O céu poderia se abrir ou não. Os pássaros, morcegos e corujas já não estariam na curta distância lá de cima, e eu poderia acordar ou não.
Natureza das relações e metamorfoses em “História de um Casamento”
Lançado em 2019, “História de um Casamento” é um filme em que Noah Baumbach apresenta os conflitos de um fim de casamento com um quê de autoralidade, mas transitando entre Woody Allen e Ingmar Bergman – a princípio com uma influência mais latente do primeiro, embora sua vontade transpareça ser uma aproximação até mais contemplativa com o cineasta sueco que, como poucos, explorou com rara sensibilidade os conflitos das relações humanas e marcou a história do cinema tendo um background teatral.
A obra de Baumbach tem como ponto de partida marido e esposa destacando em off, separadamente e com leveza descritiva, o que consideram mais atrativo um no outro e, mais do que isso, o que os motivou a construírem uma relação a dois.
Isso ocorre em um típico cenário nova-iorquino com um caráter de ficção-documental, também em relação ao rigor casual-estético. Nicole (Scarlett Johansson) e Charlie (Adam Driver) são artistas – ela uma atriz que trocou o cinema pelo teatro e ele um diretor de teatro que aspira à Broadway trilhando um caminho alternativo.
Na história, o que os une também é exatamente o que os separa. Na primeira etapa do filme, Nicole viaja para Los Angeles, sua cidade natal, onde fortalece seu desejo de se divorciar do marido, com quem divide sua rotina. E mais do que isso, por influência externa, toma a decisão de fazê-lo por vias legais – o que não havia sido acordado entre eles.
Ela sustenta que depois de tanto tempo vivendo em Nova York, um ambiente que não reconhece como familiar, teve sua liberdade artística sufocada pela autoridade de Charlie – já que,por falta de incentivo, acabou se limitando a trabalhar nas peças do marido, um diretor respeitado em seu meio.
Com uma advogada na história, o calmo Charlie fica surpreso, mas também é obrigado, apesar da reticência, a viajar inúmeras vezes para Los Angeles e encontrar um advogado na cidade para não correr o risco de não ter direito à guarda compartilhada do filho Henry (Azhy Robertson).
A princípio, Noah estimula o espectador a escolher um dos lados, mas, aos poucos, essa realidade de quem está certo ou errado é desconstruída por um simples fato – seres humanos sofrem metamorfoses e podem fazer com que os outros se sintam diluídos pela desatenção; o que pode separá-los pela emergência de uma crônica desconexão emocional ou de interesses mútuos – ou falhas sazonais ou frequentes acentuadas por algum tipo de alheamento ou desinteresse.
Mesmo com o acirramento de uma falta de acordo entre os dois em relação ao divórcio, Nicole não se mostra racionalmente interessada em prejudicar Charlie, e nisso há recíproca. Mas se o oposto transparece como verdade, é apenas resultado de um acúmulo de ausências ou de falta de cumplicidade que se acentuam a partir das memórias que vão se construindo em relação à vida do casal.
Durante as contendas diante dos advogados, que acrescentam um ardil ao drama, as mágoas rasteiras de um casal em processo de separação, e que se entende menos ainda, se tornam fôlego em direção a uma vitória mais almejada por Nicole do que por Charlie – que teme apenas a perda da guarda do filho. Talvez porque ele reconheça menos os erros dela do que ela os dele (Nicole crê que sofreu mais) – já que houve um momento de traição de Charlie que Nicole pereniza.
Há momentos em que a relação durante a separação passa por uma gradação que pode principiar a dissolução de qualquer possibilidade de comunicação entre eles. No entanto, quando se dão conta de tudo que aconteceu nesse processo, e até mesmo dos custos do divórcio (que nos EUA pode equivaler a um patrimônio), isso parece ser interpretado por eles, pelo menos até algum ponto, como uma lição sobre a tortuosa e ingrata luta pela razão ao final de uma relação marital.
Mas a razão pode explicar pouco ou quase nada sobre a complexidade das motivações humanas quando alavancada por insatisfações e frustrações. Ao final, talvez o que deva prevalecer seja apenas o desejo de seguir em frente, não de elevar alguém, ao final de uma relação, a vitorioso ou derrotado, completamente certo ou visceralmente errado – já que ganhos e perdas são partilhados também no campo imaterial.
“22 de Julho”, a história de um massacre norueguês
A lição de Memo em “Milagre na Cela 7”
Lançado em outubro de 2019 pela Netflix, “Milagre na Cela 7”, dirigido por Mehmet Ada Öztekin, é a versão turca do filme homônimo coreano de 2013 e conta a história de um jovem pai com necessidades especiais que é condenado a morte após ser acusado de matar a filha de um coronel do Exército.
Memo acompanhava Seda, colega de escola de sua filha Ova, em suas brincadeiras quando ela sofre um acidente e acaba falecendo. Com dificuldade em se defender das acusações, já que ninguém o ouve por causa das suas limitações cognitivas, Memo é condenado por assassinato e sofre diversos tipos de violência – física, moral e espiritual.
Muitas vezes chamado de “retardado” pela sua própria condição, o protagonista vive em um mundo particular e alheio à maldade, logo diverso à realidade, o que o impede de reconhecer malícias e intenções. Prova disso são os momentos na cadeia em que ele pergunta quando poderá voltar para casa – sem ter real dimensão da situação em que o colocaram.
Mas se Memo parece não saber nada sobre as antipatias e perversidades do mundo, por outro lado, ele dá mostras de muita sabedoria nas relações familiares e na capacidade de transformar o mundo de quem permite uma pequena aproximação.
Assim, a partir da sua própria percepção fluída, sensível e singela de uma realidade em que muitas vezes as pessoas se negam a celebrar o que realmente deveria dar sentido ao viver, ele modifica sem muito esforço a mente e o coração de pessoas – e mais por suas ações do que por suas palavras pouco compreendidas.
Em “Milagre na Cela 7”, Memo, condenado à morte, se torna um guia involuntário para aqueles que até então não conheciam a força e gratidão do perdão e da redenção. A fotografia do filme é digna de destaque em diversos momentos, principalmente quando a vida e a simplicidade são celebradas na natureza – onde as cenas bucólicas ganham um ritmo diferenciado.
Um dos pontos negativos, mas que não anula o valor do filme, são alguns subsequentes momentos melodramáticos que lembram as telenovelas. No mais, “Milagre na Cela 7” soa como um manifesto à vida no seio da injustiça e um respiro de esperança para aqueles que acreditam que foram esquecidos por ela – ou que a esqueceram sem perceber.
Os marginalizados em Fellini e Buñuel
Um dos meus filmes preferidos do Fellini é “A Estrada da Vida”. Já foi uma das obras mais subestimadas do cinema internacional. O enredo me remete em alguns aspectos a “Os Esquecidos”, do Buñuel, também um dos meus preferidos.
Traz a interpretação mais icônica da Giulietta Masina em início de carreira, como a inocente e sonhadora ajudante Gelsomina que acompanha um sáfaro artista de rua após ser vendida por uma porção de moedas.
Os dois filmes são da década de 1950, e creio que talvez Fellini tenha conhecido a fase mexicana do espanhol alguns anos antes. O que me agrada na história de cada obra, entre outros elementos, são as nuances de escapismo que fogem ao melodrama para abordar miséria humana, realidade social, condicionamento, esperança e descrença.
Ainda assim, os dois trazem poesia e lirismo, seja a partir da condição onírica dos personagens da obra mexicana, que são garotos pobres sem perspectiva de futuro e reféns da violência que buscam amparo para a própria carência; ou da antítese de Gelsomina e Zampano – que são como água e óleo – ela é romântica e sonhadora, entregue a uma condição platônica de viver, e ele o oposto disso – o distanciamento físico também é um reforçador – e assim vão se equilibrando e se desequilibrando perante as necessidades.
Nos dois filmes há personagens brutos de contextos diferentes, mas que nascem de uma miséria análoga, praticamente universalizada, onde aquele que sobrevive, como numa escala predatória, são os menos suscetíveis aos arroubos e impactos da sensibilidade – como se sentir, consoante intensidade, pudesse também em longo prazo ser um prólogo do próprio definhamento.
Quando assisti os dois pela primeira vez, notei a influência do neorrealismo, embora Fellini tenha sido criticado pela abordagem que destoa da corrente tradicional (da qual ele nunca fez parte), mas ainda assim o desfecho não deixa de surpreender. Além disso, são filmes que fixam na mente por dias e te impulsionam a uma série de analogias com a realidade atual, que, em determinados aspectos, nada mudou de lá pra cá.
A moça e as maritacas
Na praça havia uma moça com uma máscara colorida. Trazia o desenho de uma vaquinha, daquelas que encontramos em roupas infantis. Observava uma maritaca indo de um lado para o outro entre os galhos. Suspeitei que sorria, mantendo as mãos enluvadas sobre os joelhos.
Horas mais tarde, voltando para casa, ela continuava na mesma posição. Notei mais maritacas do que antes – como se atravessassem umas às outras. Seu nariz ainda mirava o céu. Parecia decidida no seu intento. Vi beleza naquela contemplação de uma talisca de natureza.
À noite, retornando outra vez para casa, a moça continuava lá. Imaginei então que só poderia estar esperando alguém, já que até as maritacas tinham desaparecido. Tão perto de casa, nunca tinha visto alguém passar tantas horas seguidas naquele lugar.
Pensei em me aproximar e sugerir que ela fosse para casa, já que havia escurecido bastante e a iluminação no local não era das melhores – insuficiente para agradar uma porção de mariposas. Mas tive receio de ser confundido com algum pervertido.
Pela manhã, a moça já estava lá. “Será que dormiu aqui ou retornou?” Quando tomei a decisão de me aproximar pelo menos o suficiente para saber se estava tudo bem, um caminhão encostou, um homem desceu e levou a moça embora. Uma das maritacas fez cocô no meu ombro e continuou voando com as outras. Acho que nunca vi uma manequim tão realista.