David Arioch – Jornalismo Cultural

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Quatro romances de escritores consagrados que criticam a exploração animal

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Frankenstein, de Mary Shelley, publicado em 1818

Obras de Mary Shelley, Fiódor Dostoiévski, Upton Sinclair e Romain Rolland

A escritora britânica Mary Wollstonecraft Shelley, famosa pela criação do monstro de Frankenstein, um dos mais emblemáticos da literatura mundial, teve uma vida pautada pelo vegetarianismo. Quando decidiu escrever aquela que se tornaria sua grande obra-prima, a maior inspiração da autora não foi basicamente o mito grego do titã Prometeu, um defensor da humanidade que roubou o fogo de Héstia e presenteou os mortais, mas também o seu posicionamento contrário à exploração animal. Nenhuma obra desse período superou a popularidade de Frankenstein. Em uma das passagens do livro, a criatura se emociona ao dizer que sua comida não é a mesma dos humanos:

“Não tenho que matar o cordeiro e a cabra para saciar o meu apetite. Bolotas e bagas são o suficiente para a minha alimentação. Minha companheira vai ser da mesma natureza que a minha, e vai se contentar com o mesmo que eu. Faremos a nossa cama de folhas secas; o sol vai brilhar sobre nós da mesma forma que brilha sobre os homens, e ele vai amadurecer a nossa comida. A imagem que apresento a vocês é humana e pacífica.” Ou seja, na essência, o monstro de Mary Shelley carregava em si a perfeição moral que faltava ao homem mediano, rendido aos excessos da ganância e da megalomania.

“Por que há de o homem vangloriar-se de sensibilidades mais amplas do que as que revelam o instinto dos animais? Se nossos impulsos se restringissem à fome, à sede e ao desejo, poderíamos ser quase livres. Somos, porém, impelidos por todos os ventos que sopram, e basta uma palavra ao acaso, um perfume, uma cena, para provocar-nos as mais diversas e inesperadas evocações”, escreveu Mary Shelley em Frankenstein, externando sua antipatia pela jactância e pelos caprichos do ser humano.

Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski, publicado em 1879

No romance que se tornou uma das mais sólidas e importantes obras da literatura russa, Doistoévski condena a comparação entre a crueldade dos seres humanos com a dos animais selvagens, justificando que é uma injustiça para com estes, já que as feras não atingem jamais os refinamentos dos humanos.

Segundo o narrador, o tigre dilacera sua presa e a devora; não conhece outra coisa: “Por isso, ame todas as criaturas de Deus, do todo ao grão de areia. Ame cada folha, cada raio de luz. Ame os animais, ame as plantas, ame cada coisa, e assim você conhecerá os mistérios de Deus.”

Ele defende que esse é o único meio de ter uma compreensão mais completa de que o mundo precisa ser amado, de forma abrangente e universal: “Ame os animais. Deus deu aos animais uma consciência rudimentar e uma imperturbável alegria. Não se deve chateá-los ou privá-los de sua felicidade. Não trabalhe contra os intentos de Deus. Homem, não se orgulhe de sua superioridade em relação aos animais. Eles não possuem pecados, enquanto você mancha a terra com tua grandeza, com tua aparição, deixando após ti um rasto de podridão — Ai! Quase todos nós!” Citações das páginas 260, 352 e 353.

The Jungle (A Selva), de Upton Sinclair, publicado em 1906

A obra que denuncia as mazelas da indústria frigorífica tem como protagonista o lituano Jurgis Rudkus, um imigrante que mal sabe falar inglês e vive com a família em um distrito de Chicago dominado por currais e fábricas de carne processada. Desempregado, Rudkus aceita um emprego em um matadouro. Mas a desilusão cresce quando ele se vê endividado.

Às raias da miséria, é obrigado a se sujeitar aos trabalhos mais sórdidos, além de amargar experiências traumatizantes como a morte do pai, vítima da falta de segurança nas linhas de produção da indústria frigorífica. Em uma das passagens da página 38 de The Jungle, uma imigrante lituana se mostra chocada ao saber do destino de milhares de bois e vacas. “E o que será de todas essas criaturas?”, chorou Teta Elzbieta.

“Esta noite, todos serão mortos e fatiados. E logo ali, do outro lado dos depósitos de acondicionamento, há mais ferrovias, e de lá vêm os vagões que vão levá-los embora”, respondeu Jokubas Szedvilas. No total, dez milhões de criaturas vivas eram transformadas em alimento a cada ano.

Assim como os animais, os trabalhadores também eram tratados como seres inferiores, já que suas vidas se resumiam às longas jornadas de trabalho. Exemplo disso é um adolescente que vencido pela exaustão e pela embriaguez dorme no trabalho, onde se torna comida para ratos na madrugada. Nesse trecho, Upton Sinclair denuncia ainda a falta de higiene nas linhas de produção. Também revela no livro que muitas vezes a carne bovina se misturava à carne dos ratos que morriam nas linhas de produção.

À frente, havia uma grande roda de ferro, de 20 pés de circunferência e com anéis por toda a sua borda. (…) Quando a roda virou, o porco teve seu pé arrancado e arremessado para o alto. Ao mesmo tempo, ouviu-se um grito aterrorizante; os visitantes ficaram alarmados; as mulheres empalideceram e recuaram, escreveu Sinclair na página 40 de The Jungle.

No livro-denúncia, o sofrimento dos animais e dos homens estão interligados; um não existe sem o outro num contexto em que na prática o sonho americano não passa de uma distopia velada pela inocente fantasia. E nesse cenário, o maior financiador é o consumidor que alheio à excruciante realidade aceita tudo na sua passividade.

A riqueza de detalhes com que Sinclair descreve as más condições enfrentadas pelos trabalhadores e pelos animais explorados pela indústria fez com que milhares de pessoas se tornassem vegetarianas e veganas nas primeiras décadas do século 20. E com o tempo, e a popularidade mundial do livro traduzido em mais de 50 idiomas, o número de adeptos da alimentação livre de ingredientes de origem animal cresceu exponencialmente.

A omissão do Estado também endossa e justifica a existência dessas práticas. Publicado há mais de cem anos, The Jungle é uma obra que, em síntese, não apenas flerta com a atualidade, mas diz muito sobre ela. “Queria tocar o coração do público, mas acabei tocando o estômago”, declarou Sinclair ao avaliar a recepção do livro.

Jean-Christophe, romance de Romain Rolland publicado em dez volumes entre os anos de 1904 e 1912

Na obra com viés autobiográfico, o autor francês narra a história de um gênio musical alemão que adotou a França como lar. A partir daí, ele sincretiza suas visões musicais, questões sociais, internacionalismo humanista e o direito dos animais à vida.

Ele não podia mais suportar ver uma das cenas mais ordinárias que testemunhara centenas de vezes – um bezerro chorando em uma cesta de vime, com seus grandes olhos salientes, seus tufos brancos encaracolados sobre a testa, seu focinho roxo e suas pernas dobradas. Havia um cordeiro com as quatro pernas amarradas sendo transportado por um camponês.

“Pendurado de cabeça para baixo, ele tentava elevar a própria fronte, gemendo como uma criança, balindo e pendendo a língua cinza. Havia aves amontoadas em uma cesta e podia-se ouvir ao longe os guinchos de um porco sangrando até a morte, além de um peixe a ser limpo em uma cozinha”, registrou Rolland em “Jean-Christophe”.

De acordo com o narrador, as torturas inomináveis que os seres humanos infligem a essas criaturas inocentes fez seu coração doer. “Concedendo aos animais um raio de razão, imagine o quanto o mundo pode ser um pesadelo terrível para eles: um sonho com homens de sangue frio, cegos e surdos cortando suas gargantas, abrindo-as, eviscerando-os, fatiando-os, cozinhando-os vivos e às vezes rindo da forma como eles se contorcem de agonia. Existe algo mais atroz entre os canibais da África?”, questionou.

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Gogol e o seu abismo privado

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“Gogol se tornou o maior artista da Rússia quando assumiu quem era em seu abismo privado”

Gogol

Mesmo com o sucesso, Gogol nunca alcançou suas ambições literárias (Arte: Reprodução)

No dia 4 de março de 1852, Nikolai Gogol faleceu aos 42 anos em Moscou, na Rússia. Seu estilo único o tornou famoso por histórias como O Nariz, publicada em 1832, e O Capote, de 1842, além da peça O Inspetor Geral, de 1836, e a novela Almas Mortas, também de 1842, em que o escritor mistura o cômico, o absurdo e o trágico, inspirado pela obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri.

Mesmo com o sucesso, Gogol nunca alcançou suas ambições literárias. Ele se sentia extremamente atraído pelo universo criado por Dante e pelo legado literário da Renascença. Quando terminou Almas Mortas, frustrou-se porque só conseguiu criar o Inferno, sem o Purgatório e o Paraíso. O segundo volume da sua novela viria dar continuidade a esse trabalho, mas ele abandonou a obra.

Considerado o Hieronymus Bosch da literatura russa, um dia Gogol conheceu Catherine, irmã do poeta Nikolai Yazykov, na casa de seu amigo o conde Alexander Tolstói. O escritor criou um laço de afinidade com a moça de 35 anos que morreu precocemente de tifo em janeiro de 1852, três dias após contrair a doença.

Devastado com a morte de Catherine, Nikolai Gogol começou a temer a própria mortalidade e se afundou em uma severa depressão. Percebendo a vulnerabilidade do escritor, um padre ultraortodoxo chamado Matvei Konstantinovsky o convenceu de que a única salvação seria se voltar para a religião. E mais, declarou que jejuar, orar e ler sobre a vida dos santos não era o suficiente para um bom cristão. Ele precisaria renunciar à sua escrita qualificada pelo sacerdote como “vangloriosa” e “profana”.

O escritor seguiu a recomendação e queimou todos os seus trabalhos em sua casa na Avenida Nikitsky, em Moscou, incluindo manuscritos da sequência de Almas Mortas, um trabalho que exigiu anos de dedicação. Na mesma época, Gogol participou do tradicional Banquete de Maslenitsa, que precede a quaresma ortodoxa, quando os russos ortodoxos se empanturram de comida, principalmente derivados lácteos. Como ele era obcecado por comida, o jejum que o sacerdote o obrigou a fazer depois foi tão radical que sua saúde física e mental ficou rapidamente debilitada.

Gogol-Wife

Escritor foi convencido por um padre de que jejuar, orar e ler sobre a vida dos santos não era o suficiente para um bom cristão (Arte: Reprodução)

Nas últimas horas de vida, alguns médicos tentaram salvá-lo com técnicas de hipnose. Também deram-lhe banhos quentes enquanto derramavam água gelada sobre sua cabeça e depois o banharam em água gelada e o deitaram em uma cama coberta por pães quentes. Foi tudo em vão. Gogol simplesmente pediu que o deixassem morrer em paz.

Quando golpeou as sanguessugas aplicadas em seu nariz e que tentaram entrar em sua boca, ele teve de ser contido. Naquele momento a morte o levou. Nikolai Gogol parecia tão frágil que sua coluna vertebral podia ser vista através de seu estômago.

Quando Dostoiévski elogiou Gogol

Apesar de tudo a grande reputação de Nikolai Gogol como pai do realismo russo foi estabelecida. Inclusive uma frase do russo Fiódor Dostoiévski corrobora esse fato: “Eu e meus contemporâneos saímos debaixo do capote de Gogol.” Segundo Vladimir Nabokov, o estável Pushkin, o prosaico Tolstói e o contido Chekhov tiveram seus momentos de claridade irracional, mas felizmente Gogol se tornou o maior artista da Rússia quando assumiu quem realmente era em seu abismo privado.

Monumento em homenagem ao conto "O Nariz", de Gogol (Foto: Reprodução)

Monumento em homenagem ao conto “O Nariz” (Foto: Reprodução)

Em O Nariz, a história mais famosa de Nikolai Gogol, um barbeiro decide tomar o seu café da manhã. Quando corta o pão, ele percebe que lá dentro há um nariz que pertence ao seu cliente M. Kovaliov. Escandalizada, a esposa do barbeiro o acusa de assassinato. Enquanto o homem assustado tenta se livrar do nariz, o burguês sai pelas ruas de São Petersburgo procurando o próprio órgão.

Em 2002, São Petersburgo amanheceu sem o Hoc mais famoso da cidade. Como se a vida imitasse a arte, a escultura O Nariz, de Vyacheslav Bukhayev, criada em homenagem ao conto de Nikolai Gogol, havia sido furtada. Bem-humorado, o escultor que a concebeu em 1994 disse o seguinte: “Parece que o nariz saiu para dar uma volta.”

Curiosidade

Diz a lenda que Gogol era paranoico e propenso a longos períodos de letargia, por isso temia tanto ser enterrado vivo. Entre seus amigos e conhecidos circulava um rumor de que o escritor queria que seu caixão tivesse um furo para que ele pudesse balançar uma corda que tocaria um sino, assim avisando a todos que ele não estava morto.

Saiba Mais

Nikolai Gogol nasceu em 1º de abril de 1809 e faleceu em 4 de março de 1852. Seu corpo foi enterrado no Cemitério de Danilov.

Até hoje, russos e ucranianos reivindicam a nacionalidade do escritor, levando em conta que ele nasceu em Velyki Sorochyntsi, no Império Russo, e atual cidade de Poltava, na Ucrânia, que à época já era habitada por ucranianos.

Entre as melhores obras de Nikolai Gogol estão “O Nariz”, “O Capote”, “Almas Mortas”, “O Inspetor Geral” e “Diário de Um Louco”.

Fragmento de O Nariz, publicado em 1832

Respeitador dos bons modos, Ivan Yakovlévitch vestiu seu casaco sobre a camisa e se preparou para o desjejum. Colocou à sua frente uma pitada de sal, limpou duas cebolas, pegou sua faca e, com uma expressão grave, cortou o pão em dois.

Percebeu então, para sua grande surpresa, um objeto esbranquiçado exatamente no meio do pão. Cutucou-o cuidadosamente com a faca, apalpou-o com o dedo… “Que poderá ser isso?”, perguntou-se sentindo a resistência.

Meteu então os dedos dentro do pão e dali retirou… um nariz! Seus braços despencaram. Ele esfregou os olhos, apalpou novamente o objeto: um nariz, era de fato um nariz, tratava-se até mesmo de um nariz de suas relações! O pavor tomou conta das feições de Ivan Yakovlévitch.

Mas este pavor não era nada comparado à indignação que se apoderou de sua respeitável esposa. “Onde foste capaz de cortar este nariz, sujeito desastrado!, exclamou ela. Beberrão! Ladrão! Patife! Vou em seguida te denunciar à polícia, seu bandido! Já ouvi três pessoas dizendo que, ao lhes fazer a barba, puxas o nariz das pessoas quase a ponto de arrancá-lo!”

Entretanto, Ivan Yakovlévitch estava mais morto do que vivo: acabara de reconhecer o nariz de M. Kovaliov, assessor do juiz do colegiado eleitoral, que tivera a honra de barbear na quarta e no domingo.

Referências

http://www.todayinliterature.com

Delgado, Yolanda. The final days of russian writers: Nikolai Gogol and Anton Chekhov. Russia Beyond The Headlines. 5 de junho de 2014.

Aris, Ben. Police on the scent of nose statue gang. The Telegraph. 4 de outubro de 2002.

Peace, Richard. The Enigma of Gogol: An Examination of the Writings of N. V. Gogol and Their Place in the Russian Literary Tradition. Cambridge University Press (2009).

Maguire, Robert. Gogol from the Twentieth Century: Eleven Essays. Princeton University Press (1997).

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