David Arioch – Jornalismo Cultural

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Uma lição de amor à vida

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João Mariano surpreende pela capacidade de ver beleza naquilo que passa despercebido pela maioria

João Mariano

O documentário mostra o estilo de vida minimalista do aposentado João Mariano (Foto: David Arioch)

Lançado ontem no YouTube, o documentário João Mariano, um curta-metragem de menos de 15 minutos, produzido com um Nokia Lumia 1020, é o meu mais novo trabalho audiovisual. Em meio a muitas reflexões e lembranças, principalmente reminiscências da juventude e das tragédias familiares, o documentário mostra o estilo de vida minimalista do aposentado João Mariano.

Um senhor de 87 anos que ainda tem muita vontade de viver, apesar de tantas perdas e das limitações impostas pela idade, Mariano surpreende pela sensibilidade e capacidade de ver beleza naquilo que passa despercebido pela maioria. Sente prazer na simplicidade de existir e no privilégio de pensar com a mesma acuidade de quando era mais jovem.

Radicado em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, desde 1955, o aposentado que trabalhou até os 84 anos relembra a infância e a adolescência no interior do Ceará. Também fala sobre a tranquila rotina e as experiências mais impactantes de sua vida. João Mariano tem uma relação especial com a natureza e a vida, e isso nem mesmo os problemas de saúde que surgiram na idade avançada são capazes de desqualificar.

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João Mariano tem uma relação especial com a natureza e a vida (Foto: David Arioch)

O aposentado celebra a vida diariamente à sua maneira e prova que mesmo quando nos tornamos idosos ainda somos crianças e adolescentes. O maior exemplo disso é a passagem em que cita as muitas vezes na infância da década de 1930 em que o pai o chamou para balançar na rede com ele. “Era muito gostoso”, declara sorrindo como petiz o homem de 87 anos.

João Mariano diz como conheceu Clarinda, a namorada com quem fugiu para se casar em 1955, seu primeiro e único amor. Após a separação e o falecimento dela em 2008, o aposentado nunca mais se relacionou com ninguém. “Eu sinto falta dela, de ver ela. Fiquei sozinho e estou até hoje”, enfatiza sensibilizado. Se emociona ao se recordar da morte do filho José Cláudio, vítima de câncer com apenas 42 anos. “Morreu nos braços da irmã dele. Pra mim foi um choque. É uma coisa que tem hora que parece que é mentira, não uma realidade”, lamenta.

O aposentado conta ainda uma exemplar história de honestidade vivida no início da década de 1940, quando era jóquei na região de Iguatu, no Centro-Sul do Ceará. “Meu gosto mesmo era viver até 100 anos. Aproveitar bem do nosso país”, revela rindo. Em seguida, comenta que às vezes fica abalado com o fato de ter visto tanta gente partindo, já que não resta mais ninguém dos seus tempos de infância e adolescência.

Por outro lado, reconhece que estar vivo é uma vitória. Em síntese, o documentário é uma lição de amor à vida. João Mariano ensina que independente do que passamos nada deve ser mais forte do que a vontade de seguir em frente. A trilha sonora do filme é assinada pela banda finlandesa de pós-rock Magyar Posse.

Observação 

Não consegui disponibilizá-lo no YouTube com a qualidade final da produção, mas creio que a perda esteja dentro do aceitável.

A alegria e a tristeza de ser analfabeto

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“Me considero um ignorante de sorte porque carrego dentro de mim centenas de histórias”

João Silvano: “Agora não quero aprender pra não sentir remorso pelo que perdi” (Foto: David Arioch)

Pedro Silvano: “Agora não quero aprender a ler pra não sentir remorso pelo que perdi” (Foto: David Arioch)

Baixinho, franzino, e de cabelos brancos e fartos, o aposentado Pedro Silvano nunca aprendeu a ler e escrever. Hoje, com 86 anos, afirma que já não tem mais interesse no significado das letras e das palavras. “Queria saber ler quando era mais novo. Agora não quero aprender pra não sentir remorso pelo que perdi”, conta num tom de voz remansoso.

Entre um gole e outro de café amargo, o aposentado relata que chegou a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, em 1954, fugindo da estiagem que assolava Iguatu, no Ceará. “Abandonei minha terra, onde já não crescia nada, e vaguei como um retirante no final da década de 1940”, narra. A situação era a mesma que a vivida pelo vaqueiro Fabiano do romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, lançado na década anterior. Inclusive Silvano também sabia lidar com gado.

Acompanhado do irmão também analfabeto, chegou a São Paulo contando com a sorte e a gentileza de pessoas que encontrou pelo caminho. Viajou levando apenas duas peças de roupa, um saco de farinha com rapadura e um puído par de sandálias feito à mão. “Vivia numa selva de analfabetos. Difícil era encontrar quem sabia ler e escrever”, garante em referência aos anos 1940 e 1950.

Na capital paulista, viu pela primeira vez um arranha-céu – Edifício Altino Arantes, conhecido como Banespão, que o fez sentir-se “menor do que uma muriçoca”. “Tinha medo que aquilo caísse em cima de mim. Até comentei com meu irmão: ‘Quim, chega pra lá que não acho que a gente tá seguro aqui não. Melhor tirar os calço logo’”, lembra rindo.

"Abandonei minha terra, onde já não crescia nada, e vaguei como um retirante" (Foto: David Arioch)

“Abandonei minha terra, onde já não crescia nada, e vaguei como um retirante” (Foto: David Arioch)

Quando observava placas, cartazes e jornais, tentava interpretar o conteúdo através das imagens. Cada observação cuidadosa tinha um significado peculiar para Pedro, na tentativa de compensar o vácuo da informação escrita. “Tenho certeza que uma imagem não é vista da mesma forma por uma pessoa analfabeta e outra que não é. Quem sabe ler às vezes nem presta atenção na imagem. Como analfabeto que sou, sobrevivi porque fui obrigado a ver informação sem ver palavra”, confidencia.

Apesar das dificuldades, o analfabetismo o livrou da morte em São Paulo. Com apenas 20 anos, Silvano conheceu ocasionalmente um homem que lhe prometeu um bom trabalho como meeiro em uma fazenda de café em Londrina, no Norte do Paraná. Ingênuo, ficou muito feliz. Então o sujeito pediu que o cearense fosse até as imediações da Estação da Luz ao final do entardecer de 21 de novembro de 1949 para receber as últimas informações sobre o novo serviço.

“Como eu não sabia ler, acabei me atrapalhando e fui parar a mais de três de quilômetros do local onde ficamos de nos encontrar. Só achei o lugar certo à noite. Quando cheguei lá, vi a polícia e um rapaz morto. O homem que disse ter um serviço pra mim assassinou aquele menino a facadas e levou todo o seu dinheiro”, revela.

Assim como Pedro Silvano, o jovem também foi ludibriado pela promessa de um bom trabalho em Londrina. Um dos investigadores explicou que o criminoso agia em grupo e possivelmente era responsável pela morte de nove migrantes nordestinos. O cearense se recordou que o assassino lhe perguntou pela manhã se ele tinha algumas economias para recomeçar a vida em outro lugar. “Respondi que sim. Ele só sorriu e falou que assim ficaria mais fácil me ajudar porque o patrão dele só queria gente de visão, não gente morta de fome e desesperada”, rememora.

"Sobrevivi porque fui obrigado a ver informação sem ver palavra" (Foto: David Arioch)

“Sobrevivi porque fui obrigado a ver informação sem ver palavra” (Foto: David Arioch)

Dias depois, Pedro ouviu falar novamente de Londrina quando estava em um bonde. Intrigado, conversou com o irmão sobre a cidade e juntos decidiram se arriscar no Norte do Paraná. Se despediu de São Paulo levando lembranças de uma criança pulando a cerca, uma mulher amamentando um bebê, dois homens bem vestidos apertando as mãos e o riso da cantora Carmen Miranda. Eram imagens publicitárias do achocolatado Toddy, leite condensado Moça, medicamento Melhoral e creme dental Eucalol.

“Uma musiquinha de rádio que ‘grudou na minha cabeça’ naquele tempo era a da Brilhantina Glostora. Cantava assim: ‘A elegância masculina, ô ô ô ô, Aurora, brilha mais com brilhantina, ô ô ô ô, Glostora’. Ainda tinha aquele chiadinho de fundo que fazia sonhar acordado”, cita com um sorriso largo. Depois de alguns anos em Londrina, Silvano ficou sabendo que havia melhores oportunidades no Noroeste do Paraná. Por isso se mudou mais uma vez.

Em Paranavaí, descobriu na prática que alguns fazendeiros tinham preferência por colonos analfabetos, justificando que poderiam dar menos problemas do que os “letrados”. Preocupado com a situação, Pedro Silvano, que sabia realizar as quatro operações básicas de matemática, decidiu se reunir escondido com outros colonos para ensiná-los o que sabia. “Muita gente era enganada, então mesmo sem saber ler e escrever eu fazia o possível pra contribuir”, afirma, referindo-se a uma época em que mais de 50% da população brasileira com idade acima de 15 anos era analfabeta, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O cearense, assim como muitos outros migrantes com quem trabalhou, ajudou vários patrões a enriquecerem antes e depois da monocultura cafeeira. “Não ganhei o suficiente para ficar numa situação confortável. Patrão nenhum permitiria isso. Eles queriam o colono como dependente deles. Talvez eu também não tenha enxergado as boas oportunidades. Só comprei minha primeira casa há menos de dez anos. Mas agora não quero perder tempo me queixando. Vou apenas continuar vivendo, aproveitando a vida como posso”, pondera enquanto limpa o quintal com as mãos calejadas, de pele tão fina que parecem diáfanas. Antes de se despedir, Pedro Silvano exibe com orgulho uma pequena horta onde cultiva alface, rúcula, cenoura, tomate, abobrinha, manjericão, ervilha, cebola e espinafre. “Agora você viu minha riqueza”, declara com um olhar pudico e singelo.

Pedro Silvano se reunia com a família em torno de uma fogueira

O migrante cearense Pedro Silvano começou a trabalhar com seis anos e, apesar de nunca ter ingressado em uma escola, chama a atenção pelo vasto conhecimento baseado na cultura oral. Quando criança, se reunia com a família em torno de uma fogueira ou de uma mesa próxima a um fogão à lenha para ouvir causos, charadas e histórias que misturam realidade e fantasia. Sem saber ler e escrever, exercitou com rigor a força de vontade para reter na memória, com requinte de detalhes, tudo que aprendeu vendo e ouvindo.

De acordo com Silvano, o ouvido de um analfabeto pode não ser tão aguçado quanto o de um cego, mas facilmente ultrapassa o de uma pessoa alfabetizada que não valoriza o que possui. “Me considero um ignorante, um ignorante de sorte porque carrego dentro de mim centenas de histórias”, argumenta. Além de muitos fatos e causos pouco conhecidos que remetem ao realismo fantástico, o cearense afeiçoado ao cordel sabe de cor muitas histórias de escritores populares como Cego Aderaldo, Leandro Gomes de Barros, Patativa do Assaré, João Martins de Athayde, João Melchiades Ferreira, Silvino Pirauá, José Camelo de Melo Resende, Zé da Luz, José Pacheco, Manoel Camilo dos Santos e Manuel d’Almeida Filho.

Saiba Mais

Tirar os calço significa ir embora.

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