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“Você não pode, você é nortista”
Os nordestinos que chegaram no Noroeste do Paraná até a década de 1950, geralmente atuavam como colonos nas fazendas de café. E como não havia muito lazer na área urbana, e se houvesse também não havia dinheiro o suficiente pra gastar com isso, as festas eram improvisadas no campo. Quando um nordestino convidava uma moça para dançar nos bailes, alguém não raramente interferia e dizia: “Você não pode, você é nortista.”
Cheiro de relva
“Fazia ruídos insólitos, contorcendo a boca, enrugando a testa e esticando o pescoço”
Foi numa manhã fria e especialmente escura de 1949 que Nicanor acordou assustado e com dificuldades para se movimentar. Sentiu o cheiro de ferrugem do próprio sangue seco que cobria parte das maçãs do rosto e do queixo. O odor nauseante o entorpecia e o fazia lacrimejar a ponto do sangue espesso e sequioso se transformar em bolinhas que se chocavam contra o chão de terra batida. No solo arenoso, iam se juntando e formando uma orbe maior e opaca como uma esfera de terra que as crianças moldam para atirar por brincadeira em amigos e vizinhos.
Rouco, febril e com apenas um olho debilmente aberto, o rapaz não tinha forças para articular palavra sem balbuciar e sentir um tremor que começava nos calcanhares e terminava na nuca. Quando balançava as pernas em vão, sentia os dedos enegrecidos, de pele grossa, saltados para fora do par de sandálias brancas de farrapos. Tocava sem querer uma pasta fétida que se formava a partir de suas fezes, urina e sangue. Sofreu tanto nos últimos dias que desaprendeu a chorar. Fazia ruídos insólitos, contorcendo a boca, enrugando a testa e esticando o pescoço. Com a força que restara, se espicaçava tentando enxergar alguma coisa por uma fresta alongada e espaçosa. Nicanor cobiçava um pequeno raio de sol, mas a única visitante ocasional era uma rajada fortuita de vento glacial e lancinante que tocava-lhe a pele com a delicadeza da lâmina de um canivete.
Às vezes, meneava a cabeça e mirava o teto com o nariz, observando os buracos por onde a água da chuva invadia o velho rancho que um dia serviu para estocagem de café. Apesar de tudo, via alguma beleza no acaso e se sentia grato. Se não fosse a invasão da natureza, completaria 23 dias sem sentir a água ungindo os lábios. Cada gota era sorvida com a satisfação de uma caneca robusta e referta. No entanto, o ânimo oscilava com as horas. Num início de noite sem chuva, somente o canto das cigarras e os guinchos agudos de uma coruja o acalmavam. O silêncio o amedrontava porque trazia o vácuo indescritível da inexistência e do luto daquilo que ainda não faleceu. Sim, espavorizava menos, bem menos que o som sincronizado das botas se aproximando da tapera escura. Com os ouvidos anômalos pelo desespero, Nicanor reconhecia de longe o tinido do facão de penacho em atrito com a parabélum balançando num coldre frouxo.
Nessas horas os seus olhos umedeciam bruscamente, concentrando nas bordas uma dor oxítona que fazia as lágrimas fervilharem. Consoante, o palato inflamava de maneira tão vertiginosa que não conseguia manter a boca fechada, assim como a porta por onde quatro sujeitos de olhos abissais entravam sorrindo uma vez por dia. Sardônicos, sempre chegavam de surpresa. Batiam palmas e diziam as mesmas palavras: “Ô de casa, buona gente, tamu cheganu e tamu entranu!” Fechavam a porta com o cabo de um machado e testemunhavam a agonia de Nicanor como se estivessem diante de um festim.
No frequente esforço sobressaltado para evitar a incontinência urinária, o rapaz reconhecia a derrota. Ficava constrangido e, sentindo-se pior que um sevandija, defecava, sujando mais as pernas e os pés que raleavam o chão com o dorso e as unhas amarelecidas. A zombaria seguia intercalados golpes de vara de marmelo na porção interna das coxas arroxeadas. Quando Nicanor fechava os olhos e o seu queixo encostava no peito, um dos verdugos balançava a corrente que prendia seus pulsos cruzados e ensanguentados. Acordava assustado, titubeava e contraía alguns músculos, principalmente o esfíncter.
Esquecia até da roupa esfrangalhada que usava há mais de mês, tempo suficiente para que colasse em seu corpo como segunda pele. Desejava a morte ao ouvir ao pé da orelha o som estalante de um pedaço de madeira em brasas. Só se tranquilizava ao ver o funesto sujeito careca, parrudo e de dentes escuros se afastando com o naco alaranjado. Enquanto Nicanor fenecia um pouco mais, os quatro algozes comiam broa de milho com manteiga e bebiam um mate tão quente que o vapor molhava as mãos flageladas do rapaz. Após o intervalo, os quatro se levantavam, retiravam seus relhos presos ao cinto da calça e iniciavam o açoite que se prolongava por mais de hora.
Em esforço de reflexão tão dedicado que sentia algo se comprimindo dentro da caixa craniana, Nicanor recordava-se apenas que um mês antes tinha explicado ao patrão, para quem trabalhava desde 1944 em uma propriedade rural de Paranavaí, que mudaria de serviço, abriria o próprio negócio na cidade. O homem então concordou e sugeriu que o rapaz fosse até um rancho no meio da mata no final da tarde para fazer o acerto de contas. Bonachão, percorreu dois quilômetros a pé sem saber que jamais o deixariam partir. Vencido pela aflição incontrolável, gaguejava e suplicava a Deus que o tirasse dali; o permitisse sentir pelo menos mais uma vez o cheiro da relva molhada.
No fim da noite, Nicanor teve convulsão e desmaiou. Prostrado, com a pulsação fraca e principiando o fim, foi arrastado por dois quebra milho para fora da tapera como se fosse pedaço de carniça. Arremessaram seu corpo nas cercanias de um ribeirão e correram, temendo pela própria vida, rememorando a antiga lenda do folclórico Tabaréu do Castiçal, sujeito místico conhecido por cobrar em dobro as mortes em dia de cerração. Na manhã seguinte, o jovem acordou assustado esfregando as mãos pelo corpo. Era difícil acreditar que continuava vivo e que parte dos ferimentos desapareceu, assim como as severas dores nas costas. Perplexo, olhou à sua volta e levou as mãos ao rosto livre do sangue ressequido. Rolou e chorou como criança redescobrindo o mundo ao aspirar intensamente o perfume da tenra relva orvalhada que envolveu seu corpo numa madrugada romanesca.
Curiosidades
Quebra milho era o termo usado para se referir aos jagunços e capangas dos anos 1940 e 1950 em Paranavaí
Dedico “Cheiro de relva” aos peões e colonos explorados e assassinados em Paranavaí nos tempos da colonização.
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A alegria e a tristeza de ser analfabeto
“Me considero um ignorante de sorte porque carrego dentro de mim centenas de histórias”
Baixinho, franzino, e de cabelos brancos e fartos, o aposentado Pedro Silvano nunca aprendeu a ler e escrever. Hoje, com 86 anos, afirma que já não tem mais interesse no significado das letras e das palavras. “Queria saber ler quando era mais novo. Agora não quero aprender pra não sentir remorso pelo que perdi”, conta num tom de voz remansoso.
Entre um gole e outro de café amargo, o aposentado relata que chegou a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, em 1954, fugindo da estiagem que assolava Iguatu, no Ceará. “Abandonei minha terra, onde já não crescia nada, e vaguei como um retirante no final da década de 1940”, narra. A situação era a mesma que a vivida pelo vaqueiro Fabiano do romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, lançado na década anterior. Inclusive Silvano também sabia lidar com gado.
Acompanhado do irmão também analfabeto, chegou a São Paulo contando com a sorte e a gentileza de pessoas que encontrou pelo caminho. Viajou levando apenas duas peças de roupa, um saco de farinha com rapadura e um puído par de sandálias feito à mão. “Vivia numa selva de analfabetos. Difícil era encontrar quem sabia ler e escrever”, garante em referência aos anos 1940 e 1950.
Na capital paulista, viu pela primeira vez um arranha-céu – Edifício Altino Arantes, conhecido como Banespão, que o fez sentir-se “menor do que uma muriçoca”. “Tinha medo que aquilo caísse em cima de mim. Até comentei com meu irmão: ‘Quim, chega pra lá que não acho que a gente tá seguro aqui não. Melhor tirar os calço logo’”, lembra rindo.
Quando observava placas, cartazes e jornais, tentava interpretar o conteúdo através das imagens. Cada observação cuidadosa tinha um significado peculiar para Pedro, na tentativa de compensar o vácuo da informação escrita. “Tenho certeza que uma imagem não é vista da mesma forma por uma pessoa analfabeta e outra que não é. Quem sabe ler às vezes nem presta atenção na imagem. Como analfabeto que sou, sobrevivi porque fui obrigado a ver informação sem ver palavra”, confidencia.
Apesar das dificuldades, o analfabetismo o livrou da morte em São Paulo. Com apenas 20 anos, Silvano conheceu ocasionalmente um homem que lhe prometeu um bom trabalho como meeiro em uma fazenda de café em Londrina, no Norte do Paraná. Ingênuo, ficou muito feliz. Então o sujeito pediu que o cearense fosse até as imediações da Estação da Luz ao final do entardecer de 21 de novembro de 1949 para receber as últimas informações sobre o novo serviço.
“Como eu não sabia ler, acabei me atrapalhando e fui parar a mais de três de quilômetros do local onde ficamos de nos encontrar. Só achei o lugar certo à noite. Quando cheguei lá, vi a polícia e um rapaz morto. O homem que disse ter um serviço pra mim assassinou aquele menino a facadas e levou todo o seu dinheiro”, revela.
Assim como Pedro Silvano, o jovem também foi ludibriado pela promessa de um bom trabalho em Londrina. Um dos investigadores explicou que o criminoso agia em grupo e possivelmente era responsável pela morte de nove migrantes nordestinos. O cearense se recordou que o assassino lhe perguntou pela manhã se ele tinha algumas economias para recomeçar a vida em outro lugar. “Respondi que sim. Ele só sorriu e falou que assim ficaria mais fácil me ajudar porque o patrão dele só queria gente de visão, não gente morta de fome e desesperada”, rememora.
Dias depois, Pedro ouviu falar novamente de Londrina quando estava em um bonde. Intrigado, conversou com o irmão sobre a cidade e juntos decidiram se arriscar no Norte do Paraná. Se despediu de São Paulo levando lembranças de uma criança pulando a cerca, uma mulher amamentando um bebê, dois homens bem vestidos apertando as mãos e o riso da cantora Carmen Miranda. Eram imagens publicitárias do achocolatado Toddy, leite condensado Moça, medicamento Melhoral e creme dental Eucalol.
“Uma musiquinha de rádio que ‘grudou na minha cabeça’ naquele tempo era a da Brilhantina Glostora. Cantava assim: ‘A elegância masculina, ô ô ô ô, Aurora, brilha mais com brilhantina, ô ô ô ô, Glostora’. Ainda tinha aquele chiadinho de fundo que fazia sonhar acordado”, cita com um sorriso largo. Depois de alguns anos em Londrina, Silvano ficou sabendo que havia melhores oportunidades no Noroeste do Paraná. Por isso se mudou mais uma vez.
Em Paranavaí, descobriu na prática que alguns fazendeiros tinham preferência por colonos analfabetos, justificando que poderiam dar menos problemas do que os “letrados”. Preocupado com a situação, Pedro Silvano, que sabia realizar as quatro operações básicas de matemática, decidiu se reunir escondido com outros colonos para ensiná-los o que sabia. “Muita gente era enganada, então mesmo sem saber ler e escrever eu fazia o possível pra contribuir”, afirma, referindo-se a uma época em que mais de 50% da população brasileira com idade acima de 15 anos era analfabeta, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O cearense, assim como muitos outros migrantes com quem trabalhou, ajudou vários patrões a enriquecerem antes e depois da monocultura cafeeira. “Não ganhei o suficiente para ficar numa situação confortável. Patrão nenhum permitiria isso. Eles queriam o colono como dependente deles. Talvez eu também não tenha enxergado as boas oportunidades. Só comprei minha primeira casa há menos de dez anos. Mas agora não quero perder tempo me queixando. Vou apenas continuar vivendo, aproveitando a vida como posso”, pondera enquanto limpa o quintal com as mãos calejadas, de pele tão fina que parecem diáfanas. Antes de se despedir, Pedro Silvano exibe com orgulho uma pequena horta onde cultiva alface, rúcula, cenoura, tomate, abobrinha, manjericão, ervilha, cebola e espinafre. “Agora você viu minha riqueza”, declara com um olhar pudico e singelo.
Pedro Silvano se reunia com a família em torno de uma fogueira
O migrante cearense Pedro Silvano começou a trabalhar com seis anos e, apesar de nunca ter ingressado em uma escola, chama a atenção pelo vasto conhecimento baseado na cultura oral. Quando criança, se reunia com a família em torno de uma fogueira ou de uma mesa próxima a um fogão à lenha para ouvir causos, charadas e histórias que misturam realidade e fantasia. Sem saber ler e escrever, exercitou com rigor a força de vontade para reter na memória, com requinte de detalhes, tudo que aprendeu vendo e ouvindo.
De acordo com Silvano, o ouvido de um analfabeto pode não ser tão aguçado quanto o de um cego, mas facilmente ultrapassa o de uma pessoa alfabetizada que não valoriza o que possui. “Me considero um ignorante, um ignorante de sorte porque carrego dentro de mim centenas de histórias”, argumenta. Além de muitos fatos e causos pouco conhecidos que remetem ao realismo fantástico, o cearense afeiçoado ao cordel sabe de cor muitas histórias de escritores populares como Cego Aderaldo, Leandro Gomes de Barros, Patativa do Assaré, João Martins de Athayde, João Melchiades Ferreira, Silvino Pirauá, José Camelo de Melo Resende, Zé da Luz, José Pacheco, Manoel Camilo dos Santos e Manuel d’Almeida Filho.
Saiba Mais
Tirar os calço significa ir embora.
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“Alguns nem conheciam dinheiro”
Trabalhadores rurais eram explorados em Paranavaí nos anos 1950
Em publicação alemã, o padre alemão Alberto Foerst revelou que na época da colonização havia tantos trabalhadores rurais ingênuos em Paranavaí, no Noroeste Paranaense, que alguns nem conheciam dinheiro. Muitos estavam acostumados a uma relação de subserviência em que trabalhavam em troca de comida e moradia.
No artigo intitulado “Die Stimme Der Mission”, publicado em outubro de 1954 na revista alemã Karmelstimmen, de Bamberg, no Estado da Baviera, o frei Alberto Foerst abordou, entre outros assuntos, as desigualdades sociais e a exploração do trabalho rural, problemas que já assolavam Paranavaí naquele tempo. Segundo Foerst, na década de 1950, muitos dos que chegavam a Paranavaí para trabalhar vinham das regiões Norte e Nordeste. “Eram pobres, não sabiam ler, escrever e trabalhavam nas fazendas. A maioria era explorada pelos fazendeiros, a quem a terra pertencia. Alguns trabalhadores nem conheciam dinheiro”, confidenciou o padre alemão.
Foerst se surpreendeu durante as missões que empreendeu em Paranavaí ao se deparar com pessoas trabalhando em troca de alimento e um lugar para morar. Eram seres humanos alheios ao seu próprio tempo e realidade, dispersos em um universo que já se alinhava mais às impossibilidades do que a concretização dos sonhos de prosperidade. “Às vezes, faltava até o que comer, mesmo o peão se matando no serviço. Havia muita gente inocente na roça que não sabia o valor do seu trabalho. Os donos das terras os enganavam com facilidade”, relatou o pioneiro Sátiro Dias de Melo.
Caso os trabalhadores reclamassem das condições de trabalho poderiam ser lesados de alguma maneira. Segundo Melo, se o colono decidisse denunciar a situação à polícia, o fazendeiro encontrava meios de “justificar” que o trabalhador estava em débito, inventando dívidas, relatos de prejuízos, entre outras mentiras. “A pessoa não tinha pra onde correr, pois já valia mais a palavra de um rico do que de um pobre”, frisou o pioneiro, acrescentando que ao retornar à fazenda o colono podia ser castigado e depois mandado embora.
Fazendeiros mandavam espancar colonos
Não foram poucos os colonos que caíram nas artimanhas dos latifundiários de Paranavaí durante a colonização. Com a promessa de resolver a situação, o fazendeiro mandava chamar o empregado para conversar. Longe dos colegas de trabalho, a vítima era levada a um celeiro ou algum outro ambiente ermo. Lá, pediam para esperar o patrão.
O colono ficava apreensivo, mas nem tinha ideia do que o aguardava. Pouco tempo depois, retornavam pelo menos dois jagunços em direções diferentes para evitar que o trabalhador rural fugisse. Um deles imobilizava o homem enquanto o outro o açoitava com um rebenque. Quando o colono perdia as forças e caía no chão, ainda era atingido com socos e pontapés, até perder os sentidos e desmaiar.
“Tive amigos e colegas que passaram por isso. Alguns sumiram de Paranavaí e nunca mais voltaram. Muita gente sofreu com toda essa violência”, comentou o pioneiro Sátiro Dias de Melo. Ninguém tinha coragem de denunciar, pois o medo de que algo acontecesse aos familiares era muito grande. O pioneiro confidenciou que determinados proprietários rurais tinham tanto poder que eram capazes de transformar um homicídio em um acidente de trabalho.
Em 1954, Paranavaí já era habitada por uma legião de migrantes miseráveis, pessoas simples, ingênuas e ignorantes. Uma parcela ainda acreditava na chance de ter uma vida melhor. Era o grande sonho dos colonos, segundo Melo. “Esses eram aqueles que viviam no mato e nada sabiam sobre o mundo”, declarou o padre alemão que disse ter enxergado nos colonos de Paranavaí uma candura que até então nunca tinha visto em nenhum outro povo, nem mesmo o europeu.
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O impasse de terras durante a colonização
Uma propriedade era vendida diversas vezes a várias pessoas em Paranavaí
Em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, entre as décadas de 1930 a 1950, os conflitos por posses de terras não envolviam apenas grilagem, mas também negociações em que uma mesma propriedade era vendida ou doada diversas vezes a várias pessoas e em tempos distantes.
De acordo com o pioneiro cearense João Mariano, o conflito normalmente surgia quando o proprietário encontrava a propriedade já habitada, o que significava que o imóvel foi vendido a outra pessoa. “O mais curioso é que os dois donos apresentavam documentos que comprovavam direitos sobre a mesma terra”, afirmou o padre alemão Ulrico Goevert em carta à revista alemã Karmelstimmen na década de 1950. Em alguns casos, o problema era resolvido amigavelmente. Em outros, só com o derramamento de sangue.
Não foram poucos os familiares de soldados reformados, combatentes da Guerra do Paraguai, ocorrida entre dezembro de 1864 e março de 1870, que apareceram em Paranavaí nas décadas de 1930 e 1950 para reclamar direitos sobre terras. Algumas escrituras eram tão antigas que foram assinadas pelo imperador Dom Pedro II entre os anos de 1871 e 1889. “Como o caixa imperial estava vazio, as tropas vencedoras foram pagas com terras legalmente documentadas”, frisou Goevert em publicação da Karmelstimmen em 1958.
Mas por que depois de décadas é que os primeiros proprietários apareceram para reclamar direitos de posse? A verdade é que muitos daqueles que foram beneficiados com propriedades em Paranavaí, inclusive soldados do Exército Brasileiro, não possuíam recursos financeiros para investir na colonização da área, além de outros que não tinham interesse em desmatar uma localidade que até então não era povoada.
“Antes da região ser aberta ninguém queria vir pra cá, mas depois apareceram proprietários com documentações do Século XIX. A situação se complicou porque o governo paranaense repassou as terras à colonizadoras que lotearam tudo e venderam pequenas parcelas aos colonos. Disso nasceu muita injustiça e revolta”, disse Goevert.
Em Paranavaí, também houve casos de pessoas que pagaram caro pelos imóveis e receberam documentos falsos. De acordo com o padre alemão, os problemas só começaram a ser resolvidos quando o Governo do Paraná enviou funcionários para lidarem com todas as situações envolvendo posse de terras. “Se alguém chegasse com documento antigo exigindo os seus direitos era estabelecido um acordo. Se a pessoa realmente quisesse aquela terra teria de pagar ao novo proprietário por todas as despesas com benfeitorias. Muitas vezes, a soma era tão alta que a pessoa desistia”, garantiu Ulrico Goevert.
Colonizadoras enganaram muita gente
Em publicação no periódico alemão em 1958, o padre também falou sobre as colonizadoras fraudulentas que ludibriaram muita gente. Algumas adquiriam glebas de pelo menos 20 mil alqueires e vendiam chácaras com 5 e 10 alqueires a preços abaixo do mercado. As negociações eram feitas em escritórios sediados em cidades bem distantes de Paranavaí, como São Paulo. “Muitos se interessavam apostando na especulação da terra. Então quando a propriedade já estava valorizada, o proprietário vinha conhecer o local e se deparava com pessoas já vivendo no seu imóvel”, destacou Goevert.
Quando o reclamante ia até a Inspetoria de Terras se informar sobre o problema, nada era feito. Sempre ouviam as seguintes palavras: “O senhor é só mais uma das vítimas desta colonizadora fraudulenta. Realmente teve azar.”
Entre os anos 1930 e 1950, nem todas as colonizadoras compraram terras, algumas as conseguiram após prestarem serviços ao Governo do Estado. Prática muito comum naquele tempo era a de aventureiros se embrenharem na mata virgem e percorrerem rios, realizando pesquisas topográficas sobre a região ao longo de meses. Encerrado o trabalho, o resultado era apresentado ao governador que em retribuição doava áreas de milhares de alqueires para o aventureiro colonizar.
Criminosos eram trazidos a Paranavaí
Os pioneiros perderam as contas de quantos refugiados e criminosos de outros Estados e países vieram a Paranavaí entre as décadas de 1920 e 1950. Não foram poucos os que mudaram de nome ao chegar à colônia, interessados em construir uma nova vida. “Também houve muitos que me confidenciaram terem praticado crimes hediondos. Mas eu não podia fazer nada, a não ser ajudá-los”, revelou o padre alemão Ulrico Goevert em publicação à revista alemã Karmelstimmen em 1958.
O cearense João Mariano lembrou que até a década de 1940, a mata primitiva de Paranavaí era muito usada pelo Governo Paranaense para despejar criminosos de alta periculosidade. “Até os anos 1950, jogaram muitos bandidos lá na região que hoje pertence a Nova Aliança do Ivaí, assim como em Querência do Norte. O Estado não queria mais gastar dinheiro com essa gente. Como a pessoa não tinha pra onde ir, no caso de sobreviver, o jeito era virar peão e se adequar à nova vida. Alguns ainda conseguiam trabalho como jagunços, pois eram bons no gatilho”, enfatizou Mariano.
Aqueles que preferiam manter o estilo de vida criminoso viviam somente o presente, sem se preocupar com o futuro. Por isso, muitos gastavam tudo que ganhavam com bebidas e orgias. “Quem vivia nesse mundo, mais cedo ou mais tarde, seguia essa sequência: roubo, morte e homicídio”, assinalou Goevert.
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A trajetória de um homem do campo
José Freitas fala sobre a experiência de fazer parte da primeira geração de boias-frias
O aposentado José Alexandre Freitas, 72, morador do Jardim Morumbi, em Paranavaí, é da primeira geração de boias-frias do Noroeste do Paraná. Hoje em dia não trabalha mais, mas carrega marcas que nem o tempo é capaz de apagar, como as mãos calejadas, de pele grossa, e o rosto enegrecido e manchado pela frequente exposição ao sol.
Da época em que atuava como trabalhador volante, Freitas herdou também um chapéu de palha que ele ajeita cuidadosamente várias vezes, mesmo sabendo que a entrevista não é para a TV. O aposentado é amistoso e sorridente, porém quando se recorda dos problemas de quando trabalhava no campo, o sorriso se mistura a um olhar mortiço, uma consequência natural que evidencia a relação de amor e ódio do boia-fria com o campo.
Na entrevista abaixo, compilada em tópicos, José Alexandre Freitas, o colono que virou boia-fria, sintetiza opiniões e experiências ao falar sobre colonato, êxodo rural, trabalho infantil, aposentadoria, mecanização e outros assuntos.
O pequeno produtor rural
Nas décadas de 1960, 1970, quem tinha um sítio teve que vender pra fazendeiro. O pequeno produtor não tinha chance nenhuma de disputar o mercado. Acontecia muitas injustiças que eu mesmo vi de perto. Isso melhorou só depois por causa das cooperativas.
O colono
Quando comecei a trabalhar de colono, tudo isso aqui era café. A gente recebia mesada do patrão. A colheita era unida, bonita de ver e de lembrar. Depois acabou e tive que virar boia-fria. Em 1964, 1965 e 1966, a gente recebia uma diária mixuruca, não chegava a ganhar nem um salário por mês. A coisa foi mudando na década de 1980.
O fim do colonato
Os colonos desapareceram. Vim em 1982 pra cidade porque os patrões não queriam mais ninguém na roça. Eu fui um dos últimos colonos a vir pra cá. Vim meio que obrigado, não queria muito, ainda gostava da roça. Cheguei nessa mesma rua [Avenida Domingos Sanches], onde a gente tá conversando agora. Hoje, penso diferente, se fosse pra eu trabalhar de novo na roça preferia morar aqui e ir de ônibus do que morar na fazenda.
Êxodo rural
Naquele tempo, a jornada era de 12 horas, então trabalhar na roça era terrível. Quem tinha a chance de vir pra cidade não pensava duas vezes. Imagine, você começar a trabalhar às 6h da manhã e parar só às 6h da tarde. Hoje em dia é diferente, ninguém trabalha na roça mais do que oito horas. Era cruel, o pessoal sofria muito.
A vida de boia-fria
A verdade é que boia-fria até hoje é um sujeito sem patrão. O mais próximo que ele tem de um chefe é o gato. No meu tempo, ninguém podia adoecer. Se ficasse um mês parado, passava fome. Lembro que a gente recebia 40, 50 centavos por pé de café, mas quando o patrão queria que o sujeito fosse embora por vontade própria, ele pagava 20 centavos. Mas nem todos eram assim. Tive patrão bom também que quando o boia-fria não conseguia ganhar o suficiente, ele pagava mais pela diária.
Gato X fiscal
O gato e o fiscal agem da mesma maneira. Eles pegam uma área de empreita, contratam os trabalhadores e pagam um pouco menos do que o oferecido pelo dono da propriedade pra ter lucro. O ganho por dia equivale a duas diárias de um boia-fria. Trabalhei como fiscal e gato por alguns anos. Às vezes, tinha que dividir a turma. Era impossível dar conta de 100 peões ao mesmo tempo.
Trabalho infantil
Até a década de 1990, tinha muitas crianças trabalhando nas roças da região, já hoje é difícil de encontrar. Acho errado o menor não poder trabalhar, porque antigamente, quando a criança começava cedo na lida, ela aprendia a respeitar mais os pais e também a vida. Hoje, qualquer adolescente diz que não vai trabalhar porque está protegido pela lei, inclusive tem quem use isso pra desafiar a família. Na minha época, um rapaz de 18 anos já era independente, tinha a
própria vida.
Segurança x ajuda
Acidente de trabalho acontecia, mas ninguém era responsável. Hoje também não mudou muita coisa. A verdade é que sem registro não existe segurança. No tempo em que mais trabalhei, década de 1950, 1960 e 1970, quem mais sofria acidente era a criança. Caía e machucava o pé, quebrava braço, então quem tinha que se virar era a família. Quando alguém se feria, a gente se reunia e ajudava. Comprava comida, fazia vaquinha pra arrecadar dinheiro. O ruim é que empregado que se machucava no serviço era mandado embora.
Relação com os colegas de trabalho
Quando trabalhei como gato, nunca fui maldoso com ninguém, eu respeitava todos os boias-frias, até porque fui um deles, né? Tinha paciência, falava com educação. Por isso que os patrões gostavam de mim. Eu odiava estupidez.
Chuva na roça
Essa era a pior parte. Não tinha esse negócio de que porque está chovendo não ia trabalhar. A gente ganhava por dia, então não tinha como ficar em casa esperando a chuva passar.
Sindicato dos trabalhadores
Naquele tempo, o sindicato não era vigorado como hoje. Agora o trabalhador rural tem garantias e direitos. O sindicato garante salário-desemprego, 13º salário e ainda ajuda a receber os atrasados. Fazem um trabalho muito bom.
Entretenimento
A gente ocupava o tempo livre jogando futebol, até o patrão jogava, e de centroavante. Era o nosso grande lazer, além de outro que eu não posso falar (risos).
Aposentadoria
Trabalhei a vida toda na roça e nunca tive direito a nada. A única sorte que tive foi me aposentar com 60 anos. Hoje, pra se aposentar com essa idade, é muito difícil. Quase nenhum patrão quer ajudar o empregado que trabalhou na roça. Até dá pra entender, ninguém quer ser responsável se der alguma coisa errada. Conheço muita gente que trabalhou no campo e tenta se aposentar, mas não consegue. Na minha família tem gente nessa situação.
Experiência no corte de cana-de-açúcar
Há 21 anos, tive uma experiência no corte de cana, mas não consegui cortar 70 metros. Fui três dias, fizeram a minha ficha, mas daí não foi aprovada porque não cortei 70 metros. Disseram que não podiam me dar nenhuma garantia.
Mecanização
Sobre as máquinas, acho que a dificuldade maior é que ninguém sabe o que o governo vai fazer com esse povo todo. O serviço braçal ainda vai acabar, disso eu tenho certeza porque já conheci máquina que substitui o homem até em terreno irregular. Lá no interior de São Paulo mesmo, boia-fria é conhecido como cata-bituca, porque pra ele só ficam os restos deixados pela máquina.
O futuro dos boias-frias
A única saída ainda é a reforma agrária. O governo deve desapropriar e comprar essas fazendas onde ninguém planta nada e cortar em lotes. Se fizer direito, vai dar certo. Sei disso porque tenho um genro que mora numa fazenda no interior de São Paulo e lá ele conseguiu oito alqueires e hoje vive de forma mais digna.
O solo frágil que prosperou
A redenção do Noroeste veio com a evolução do solo do arenito Caiuá
Durante muito tempo, a região do arenito Caiuá foi estigmatizada como uma grande área de terras inférteis por causa da fragilidade do solo arenoso. Felizmente, o tempo e as técnicas adequadas se encarregaram de dar ao Noroeste do Paraná a merecida redenção.
No passado, muitos agricultores tentaram produzir na região do arenito Caiuá o que se produzia no basalto, nas áreas de terra roxa. O resultado foi um grande prejuízo e a crença de que o solo era infértil. A desinformação incutiu na mente da classe rural a ideia de que a solução seria ocupar o solo somente com pastagens, e assim logo o campo foi tomado pelo gado. Uma das grandes consequências foi o êxodo dos colonos, transformando a zona rural em um espaço pouco habitado. “Os grãos do arenito não proporcionavam bons rendimentos, então a escolha pelo pasto foi quase unânime”, conta o pesquisador Pedro Auler, do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar).
As dificuldades em se trabalhar com lavouras no arenito Caiuá perduraram por muito tempo, mas isso jamais significou que o solo fosse incapaz de evoluir. “Aos poucos, levando em conta condições diferenciadas de clima e solo para uma mesma cultura, ficou claro que o potencial de produtividade do arenito Caiuá poderia ser igual ao do basalto”, diz o pesquisador Jonez Fidalski, também do Iapar.
Os pesquisadores descobriram que as necessidades nutricionais do solo arenoso são mais fáceis de serem atendidas do que as da terra roxa. Fidalski explica que na região do arenito Caiuá é fácil reconhecer a deficiência nutricional da planta e repor o que ela precisa para produzir. “O nosso solo tem uma grande capacidade de resposta, ao contrário do solo basáltico”, avalia.
Segundo engenheiros agrônomos e pesquisadores, os gastos para se produzir no solo arenoso e no basalto podem ser tranquilamente equiparados. No entanto, é importante tomar algumas precauções. “No arenito Caiuá, recomendo que não se faça o trato cultural com herbicidas, e sim na base da roçada porque mantém mais umidade e segura os micronutrientes dos insumos”, destaca o gerente da Empresa Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) de Paranavaí, Valter Martins Pessoa.
O pesquisador Jonez Fidalski afirma que é muito seguro investir em lavouras na região do arenito Caiuá graças as novas técnicas de plantio direto. “Além de ser uma prática bastante cômoda, o sistema de adubação da técnica proporciona a renovação do solo”, complementa Fidalski. O engenheiro florestal João Arthur de Paula Machado declara que apesar dos contratempos vividos pelos agricultores no passado, a região do arenito Caiuá pode ser considerada altamente próspera. “Representa muito bem a agricultura do Paraná e do Brasil”, enfatiza.
A importância da classificação do solo
Segundo o pesquisador Jonez Fidalski, do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar), a partir do momento que um produtor rural conhece as classes de solo existentes em uma propriedade, ele evita principalmente a erosão hídrica. “A classificação de solos também é importante para se identificar qual é o tipo de cultura que melhor se adapta a determinada região. Por isso, levamos em conta o teor de argila”, justifica o pesquisador.
Segundo Fidalski, a melhor forma de definir as classes de solo é por meio da determinação granulométrica (areia, silte e argila) feita a partir da abertura de uma trincheira com dimensões de 1m por 1,50m. “É oportuno salientar que a região Noroeste do Paraná, com seus três milhões de hectares, apresenta outras classes de solos, principalmente nas áreas de transição com o basalto”, frisa o pesquisador.
Grama mato grosso é a ideal
A grama mato grosso ou batatais é a mais recomendada para agricultores da região Noroeste do Paraná. A planta oferece mais umidade do solo e também melhor taxa de fotossíntese, segundo estudos do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar). “Ela age profundamente no solo, adquirindo mais nutrientes e usufruindo de recursos que outras plantas mais rasteiras não conseguem captar, como a leguminosa amendoim forrageiro”, explica o pesquisador Jonez Fidalski.
A escolha da grama inadequada para se trabalhar com determinada cultura na região do arenito Caiuá pode ter como consequência uma cobertura de solo comprometida. “O resultado é a grande perda de teores de carbono, o que culmina na incapacidade do solo em filtrar toda a água”, revela o pesquisador Pedro Auler.
Um pouco de história
O engenheiro civil Alcione Pacheco conta que nas décadas de 1960 e 1970, quando muitas cidades do Noroeste do Paraná estavam em expansão, faziam-se muitas construções errôneas, principalmente com espigões ou obras fluviais defletoras (dispositivos que servem para direcionar o fluxo de uma corrente e preservar ou recuperar a margem de um curso de água). O resultado a longo prazo foi a degradação do solo.