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Henry Salt, um pioneiro dos direitos animais

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“Devemos reconhecer o vínculo comum da humanidade que une todos os seres vivos em uma só fraternidade”

Henry Salt era um protovegano, e contrário à posição da Vegetarian Society, da Inglaterra, de promover o consumo de ovos, laticínios e mel (Foto: Reprodução)

O escritor inglês, humanitarista e reformador social Henry Salt foi um dos pioneiros da discussão sobre os direitos animais. Sua contribuição foi tão significativa que em 1975, quando o filósofo australiano Peter Singer publicou “Animal Liberation”, o seu livro mais famoso, mais tarde considerado uma das bases filosóficas do movimento de libertação animal, ele fez questão de dizer que uma nova geração descobriu tudo que tinha sido dito antes – em referência às obras deixadas por Salt, que faleceu cinco anos antes da criação do veganismo pela Vegan Society.

Henry Salt era um protovegano, e contrário à posição da Vegetarian Society, da Inglaterra, de promover o consumo de ovos, laticínios e mel como parte de uma dieta que eles consideravam a mais adequada aos “vegetarianos”. Salt sabia que o abandono do consumo de outros alimentos de origem animal era o único e verdadeiro caminho do vegetarianismo ético. Até porque consumi-los significa reconhecer que são alimentos de consumo humano.  No ensaio “A Plea for Vegetarianism”, publicado em 1885, ele declarou que mesmo os produtos lácteos são desnecessários e, sem dúvida, serão dispensados completamente sob um sistema de dieta mais natural.

No ano seguinte, esse trecho foi suprimido na nova versão que reuniu outros ensaios sob o título “A Plea for Vegetarianism, And Other Essays”, e porque a própria sociedade vegetariana inglesa deixou subentendido que caso Salt criticasse os hábitos dos vegetarianos da época, ele ficaria sem leitores, já que a maioria se enquadrava no que posteriormente foi definido como ovolactovegetarianismo. Por outro lado, a versão de 1885 é uma das provas da boa vontade de Henry Salt na luta pela consolidação do vegetarianismo ético que daria origem ao veganismo.

Também há que se ponderar que à época os vegetarianos da Vegetarian Society, que em sua maioria eram ovolactovegetarianos, não tinham um entendimento profundo das implicações morais e éticas do consumo de outros alimentos de origem animal. Muitos acreditavam que sem morte não havia violência ou privação, e essa linha de pensamento se baseava em um escasso entendimento das proposições da revolução industrial no que dizia respeito ao “destino comum” dos animais explorados para consumo humano.

Muitos ignoravam ou não percebiam que se alimentar de animais em qualquer nível significava legitimar a exploração sobre outras espécies. Exemplo disso foi o choque do escritor irlandês George Bernard Shaw, que abdicou do consumo de ovos e laticínios quando soube que simplesmente deixar de comer carne não contribuía tanto com o vegetarianismo ético quanto ele imaginava.

Analisando o contexto do vegetarianismo na Inglaterra do século 19, e levando em conta que Henry Salt teve de aceitar o fato de que ser “vegetariano demais” poderia gerar desconforto e antipatia por parte de outros “vegetarianos”, talvez seja justo dizer que os defensores do ovolactovegetarianismo da época se dividiam em dois grupos: os ingênuos ou menos informados, que acreditavam que simplesmente não consumir carne era o suficiente para endossar o vegetarianismo ético, e os acomodados – praticantes do vegetarianismo de conveniência, ou seja, que acreditavam que abdicar do consumo de laticínios e ovos seria um erro, já que significaria uma posição “radical” demais que poderia gerar conflitos no contexto das convenções sociais da época.

“Mesmo os produtos lácteos são desnecessários e, sem dúvida, serão dispensados completamente sob um sistema de dieta mais natural” (Foto: Reprodução)

Em 1906, quando Henry Salt publicou “The Logic of Vegetarianism”, mais uma vez ele evitou fazer críticas ao consumo de outros produtos de origem animal, e mais uma vez para não despertar a inimizade dos membros da Vegetarian Society. Porém, quando foi vice-presidente dessa mesma entidade, não raramente ele argumentava que jamais entendeu por que a palavra vegetariano trazia, enquanto conceito de uma época em que o vegetarianismo era quase sinônimo do não consumo de carne, alimentos que nunca foram de origem vegetal.

Nesse aspecto, a natureza espirituosa, humanitarista, modesta e tranquila de Henry Salt falava mais alto, e ele acabava por não ir tão longe em seus discursos mais críticos. Porém, mesmo sem precisar conquistar desafetos, as suas obras por si só já traziam a transparência de seu caráter e desejo de ver os animais livres do jugo humano.

Prova disso é que em 1890, quando Gandhi estudava direito em Londres, e já não seguia os preceitos do vegetarianismo indiano, até pelo fato de encará-lo mais como uma obrigação, ele leu um dos livros de Henry Salt, o que transformou sua vida e abriu seus olhos para o vegetarianismo ético. “Li o livro de Salt, de capa a capa, e fiquei muito impressionado. A partir do dia em que li este livro, me tornei vegetariano por escolha”, declarou.

Salt tinha uma forma não agressiva de chamar a atenção para os direitos animais, e isso também fez e faz dele um grande exemplo de transformação e divulgação positiva do vegetarianismo ético. Há quem o considere a figura mais importante do movimento vegetariano do final do século 19 para o século 20. E um dos livros que contribuiu para isso foi “Animals’ Rights: Considered in Relation to Social Progress”, publicado originalmente em 1892, e qualificado pelo filósofo Peter Singer como uma das obras essenciais em defesa dos direitos animais.

O livro é dividido em temas como o caso dos animais domésticos, o caso dos animais selvagens, a matança de animais para produção de comida, tortura experimental e linhas de reforma, entre outros tópicos. No livro, Salt diz que o sofrimento imposto aos animais é consequência da ausência de direitos, e vale-se dos absurdos que ouvia de tanta gente, inclusive do meio intelectual, na tentativa de legitimar a exploração animal, considerando-a como parte natural do ciclo da vida.

Ele apresenta argumentos refutando todas as justificativas especistas que ouviu ao longo de anos, e destaca a importância de uma cruzada intelectual, literária e social contra a opressão animal. No entendimento do escritor inglês o que os animais vivem hoje é a mesma realidade vivida anteriormente pelos escravos, e os discursos contra os direitos animais são tão falaciosos quanto os dos detratores do abolicionismo.

Henry Salt vivia com a esposa em uma casa de campo, onde plantavam a própria comida. Em 1891, o escritor fundou a Liga Humanitária, que se manteve na ativa até 1920. Como secretário geral e editor, ele fez campanha tanto em favor dos direitos dos desprivilegiados quanto dos animais não humanos. Na página 2 de “Animals’ Rights: Considered in Relation to Social Progress”, ele escreveu que a noção de que a vida de um animal é isenta de “propósito moral” pertence a uma classe de ideias que não pode ser aceita pelo pensamento humanitário avançado da atualidade.

“A noção de que a vida de um animal é isenta de “propósito moral” pertence a uma classe de ideias que não pode ser aceita pelo pensamento humanitário avançado da atualidade”

“É uma suposição puramente arbitrária, em desacordo com os nossos melhores instintos, em desacordo com a nossa melhor ciência, e absolutamente fatal (se o assunto for claramente pensado) para qualquer realização plena dos direitos animais. Se quisermos fazer justiça às raças inferiores, devemos nos livrar do “grande abismo” fixado entre elas e a humanidade; e devemos reconhecer o vínculo comum da humanidade que une todos os seres vivos em uma só fraternidade universal”, escreveu.

Em 1914, aos 63 anos, Henry Salt conseguiu ampliar a discussão em torno do uso de produtos animais. Após a Primeira Guerra Mundial, ainda publicou muitos livros, que só não tiveram maior repercussão porque o clima tenso da guerra ofuscou o debate sobre o vegetarianismo ético. Em 1931, quando Gandhi ministrou uma palestra intitulada “A Base Moral do Vegetarianismo” na Vegetarian Society, em Londres, ele teve o auxílio de Henry Salt, que à época estava com 80 anos. Gandhi então fez o que poucos fizeram até então, e provavelmente influenciado pela base filosófica de Salt – qualificou o uso de leite por vegetarianos como uma tragédia.

Não foi somente em relação a isso que Salt influenciou Gandhi. As biografias que o defensor dos direitos animais escreveu sobre Percy Bysshe Shelley e Henry David Thoreau também chamaram a atenção do líder indiano. Influenciado por Henry Salt, Gandhi leu o ensaio “A Desobediência Civil”, publicado por Thoreau em 1849, o que teve grande impacto em seu ativismo político.

O poeta Percy Shelley, que era vegetariano e protovegano, foi uma importante influência para Henry Salt. O reformador social o considerava um exemplo de ser humano empenhado na luta pelos direitos humanos, animais e da verdadeira liberdade de pensamento e ação. Salt se identificou muito com Shelley porque, assim como ele, era alguém que lutava contra aqueles que se opunham ao progresso.

“Quando digo que vou morrer, como tenho vivido, racionalista, socialista, pacifista e humanitarista, devo deixar claro o meu propósito. Não acredito na religião presentemente estabelecida. Mas tenho uma fé religiosa muito firme – um credo de parentesco que eu chamo; uma crença de que nos próximos anos haverá um reconhecimento da fraternidade entre homem e homem, nação e nação, humano e sub-humano, o que vai transformar um estado de semi-selvageria, como o temos em nossa civilização, em um estado onde não  haverá tal barbaridade como a guerra, o roubo dos pobres pelos ricos, ou o uso de animais inferiores pela humanidade”, registrou Henry Salt em um papel deixado sobre sua mesa antes de falecer.

Saiba Mais

Henry Salt nasceu na Índia Britânica em 20 de setembro de 1851 e faleceu em Surrey, na Inglaterra, em 19 de abril de 1939.

Ele lutou muito contra a vivissecção.

Referências

Salt, Henry. Animals’ Rights: Considered in Relation to Social Progress. Cornell University Library (1894).

Singer, Peter. Animal Liberation: The Definitive Classic of the Animal Movement. Harper Perennial; Edição: Updated ed (2009).

Salt, Henry. The Logic of Vegetarianism: Essays and Dialogues. G. Bell and sons (1906).

Henry, Salt. A plea for vegetarianism and other essays Vol: 1886 1886. Facsimile Publisher (2015).

http://www.henrysalt.co.uk/

 

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O vegetarianismo na literatura de Mary Shelley

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“Não tenho que matar o cordeiro e a cabra para saciar o meu apetite”

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Além da mitologia grega, Mary Shelley se inspirou também em Rousseau para escrever Frankenstein (Arte: Rothwell)

A escritora britânica Mary Wollstonecraft Shelley, famosa pela criação do monstro de Frankenstein, um dos mais emblemáticos da literatura mundial, teve uma vida pautada pelo vegetarianismo. Quando decidiu escrever aquela que se tornaria sua grande obra-prima, a maior inspiração da autora não foi basicamente o mito grego do titã Prometeu, um defensor da humanidade que roubou o fogo de Héstia e presenteou os mortais, mas também o conceito de nobre selvagem, cunhado pelo filósofo suíço e defensor do vegetarianismo Jean-Jacques Rousseau.

“Mas considerai primeiro que, querendo formar o homem da natureza, não se trata por isso de fazer dele um selvagem e de relegá-lo ao fundo dos bosques, mas, envolvido em um turbilhão social, basta que ele não se deixe arrastar nem pelas paixões, nem pelas opiniões dos homens; veja ele pelos seus olhos, sinta pelo seu coração; não o governe nenhuma autoridade, exceto a de sua própria razão”, declarou o suíço em O Bom Selvagem.

Em primeiro lugar, a busca pelo autoconhecimento; depois o interesse pela linguagem e pelas convenções sociais. Seguindo essa premissa idealizada por Rousseau, Mary Shelley moldou um anti-herói vegetariano que nada mais é do que o ser humano em seu estado mais impermisto e natural. A maior prova disso é que ainda isento dos vícios da civilização, o monstro vive na floresta, onde se alimenta estritamente de bagas e oleaginosas, não de carne, já que ele não vê sentido nem necessidade em matar animais para se alimentar.

No século 19, embora o romantismo enquanto arte tivesse estreita relação com o vegetarianismo, a verdade é que fora dos círculos literários quase ninguém reconhecia ou falava sobre a abordagem vegetariana no livro Frankenstein. Na realidade, muita gente reconhecia as qualidades de Mary Shelley como escritora, mas menosprezavam seu estilo de vida.

Ao contrário de muitos autores que se tornaram vegetarianos ao longo da vida, ela teve a oportunidade de crescer em uma família que sempre simpatizou com o vegetarianismo, inclusive quase todos os amigos de seu pai William Godwin também eram vegetarianos. Assim, desde cedo, Mary foi incentivada a entender que o consumo de carne dependia do sofrimento animal.

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Percy Shelley: “Não mais agora/Ele mata o cordeiro que o observa/E terrivelmente devora sua carne mutilada” (Arte: Alfred Clint)

Na juventude, depois de conhecer alguns dos maiores intelectuais que defendiam esse estilo de vida, a escritora começou a ler obras como An Essay on Abstinence from Animal Food: as a Moral Duty, do britânico Joseph Ritson e The Return to Nature, or, a Defense for the Vegetable Regimen, de John Frank Newton, precursores do veganismo, assim como William Lambe, de quem ela leu o livro Water and Vegetable Diet. Shelley também se inspirou em Plutarco, John Milton e nos textos em grego antigo e latim que abordavam o estilo de vida de Pitágoras, que era ovolactovegetariano.

Cercada por pessoas que não consumiam alimentos de origem animal, ela acabou se casando em 1816 com Percy Bysshe Shelley que, além de ter sido um dos mais importantes poetas românticos da Inglaterra, era um ativista vegetariano e também precursor do veganismo. O poeta lançou obras polêmicas como A Vindication of a Natural Diet e On the Vegetable System of Diet. No prefácio do primeiro, ele publicou um excerto do seu poema Rainha Mab:

Não mais agora

Ele mata o cordeiro que o observa

E terrivelmente devora sua carne mutilada;

Além do casal Shelley, outros românticos como Alexander Pope e Thomas Tryon ajudaram a promover o vegetarianismo na Europa. No entanto, nenhuma obra daquele período superou a popularidade de Frankenstein. Em uma das passagens do livro, a criatura se emociona ao dizer que sua comida não é a mesma dos homens:

“Não tenho que matar o cordeiro e a cabra para saciar o meu apetite. Bolotas e bagas são o suficiente para a minha alimentação. Minha companheira vai ser da mesma natureza que a minha, e vai se contentar com o mesmo que eu. Faremos a nossa cama de folhas secas; o sol vai brilhar sobre nós da mesma forma que brilha sobre os homens, e ele vai amadurecer a nossa comida. A imagem que apresento a vocês é humana e pacífica.” Ou seja, na essência, o monstro de Mary Shelley carregava em si a perfeição moral que faltava ao homem mediano, rendido aos excessos da ganância e da megalomania.

Embora haja controvérsias sobre até que ponto Mary Shelley foi vegetariana ao longo de sua vida, a verdade é que ela trouxe grandes contribuições para o vegetarianismo e, quem sabe, a maior seja a idealização de uma criatura desafortunada que desprezava o hábito humano de se alimentar de animais.

“Por que há de o homem vangloriar-se de sensibilidades mais amplas do que as que revelam o instinto dos animais? Se nossos impulsos se restringissem à fome, à sede e ao desejo, poderíamos ser quase livres. Somos, porém, impelidos por todos os ventos que sopram, e basta uma palavra ao acaso, um perfume, uma cena, para provocar-nos as mais diversas e inesperadas evocações”, escreveu Mary Shelley em Frankenstein, externando sua antipatia pela jactância e pelos caprichos do ser humano.

Saiba Mais

Mary Shelley nasceu em Londres em 30 de agosto de 1797 e faleceu em 1º de fevereiro de 1851.

Referências

Shelley, Mary. Frankenstein. CreateSpace Independent Publishing Platform (2015).

Shelley, Percy Bysshe. A Vindication of Natural Diet: Being One in a Series of Notes to Queen Mab (Disponível em ivu.org)

Bellows, Martha. Categorizing Humans, Animals and Machines in Mary Shelley ’s Frankenstein. Página 6. University of Rhode Island (2009).

Fortes, Luis Roberto. Rousseau: o bom selvagem. 2º ed. – São Paulo: Humanistas: Discurso Editorial (2007).

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