David Arioch – Jornalismo Cultural

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O amor é belo na literalidade

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Pintura de Leonid Afremov que retrata o amor

Ao longo da vida, sempre ouvi alguém dizendo que o amor, confundido com paixão, é arrebatador, como se feito de fagulhas de insipiência. Quando chega até você o cega e o torna avesso ao juízo e à razão das coisas serenas. O consome de forma inesperada, deixando os lábios ressequidos como chão tracejado pela estiagem severa.

Quantas histórias conheci de suicídio por amor; pessoas saltando de prédios, lançando carros contra árvores, se enforcando, consumindo estricnina e atirando contra a própria cabeça. Jamais entendi como o amor, tão colorido simbolicamente, poderia ter compleição tão funesta.

O amor não deve ser como o luto, um manifesto de pesar. Nem merece ser relacionado à morte se abarca na sua essência os destemores da luz. O coração que ama em abnegação só obscurece quando deixa de bater, este sim fato irremediável do nosso epílogo.

Mas enquanto vive é corado e robusto como uma manga colhida em março. Está além do bem e do mal. O amor é belo na literalidade, na pureza de sua semântica. Nem por isso unilateral ou menos distorcido e depreciado por imperícia, fabulações e desconstruções de sentido.

Não que não haja dor no amor, afinal ela é inerente à vida e nos envia iterados sinais de que o sofrimento também dignifica a existência; ensina que somos pechosos, frágeis e efêmeros como todos os seres que habitam a Terra. Porém, um sentimento torna-se nocivo somente se assim o permitirmos. Pelo menos é o que me mostra a vida desde que comecei a reconhecer o seu enredamento e profundidade.

Written by David Arioch

July 28th, 2016 at 12:09 am

Bukowski: “Não vou deixar muito, só algo para ler, quem sabe”

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“Depois que eu partir, haverá mais dias para os outros, outros dias, outras noites, cães caminhando…”

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Bukowski: “O mundo tinha falhado com nós dois” (Foto: Reprodução)

Após publicar mais de 50 livros de poesia e prosa ao longo de meio século, Charles Bukowski se tornou o Grand Old Man da literatura marginal dos Estados Unidos. Abordando a rotina dos trabalhadores de colarinho azul e a realidade das áreas urbanas mais pobres de Los Angeles, habitadas por andarilhos, mendigos, usuários de drogas e outros tipos de rejeitados sociais, ele mergulhou em um universo onde homens de mau hálito e pés grandes parecem sapos e hienas. Eles caminham como se a melodia nunca tivesse sido inventada, e ao final ainda são execrados.

Depois de ser mandado ao inferno, Bukowski observava os braços gordos e suados do senhorio exigindo o pagamento do aluguel. “O mundo tinha falhado com nós dois”, escreveu. O jeito era abrir uma nova garrafa retirada da sacola enquanto ela se sentava na esquina fumando e tossindo como uma velha tia de Nova Jersey. Nos anos 1970, a vida de Charles Bukowski mudou.

Fez várias aparições com Allen Ginsberg e Lawrence Ferlinghetti. Deu entrevistas à Rolling Stone e todas as suas leituras pela Europa estavam com ingressos esgotados. Ele trocou as duas caixinhas de seis unidades de cerveja por quatro garrafas de bom vinho francês. Assim que sua história deu origem ao filme Barfly, de 1987, protagonizado por Mickey Rourke, com direção de Barbet Schroeder e roteiro do próprio Bukowski, ele se distanciou ainda mais da miserável realidade que o acompanhou por tanto tempo.

O seu deteriorado fusquinha 1967, com o qual viveu tantas aventuras, inclusive um dia sua namorada fez um furo no para-brisas com o salto, foi substituído por um novo BMW com teto solar. Em seus tempos de bebedeira, Bukowski deixava os atendentes baterem nele em troca de bebidas. Em 1992, com tuberculose, câncer e sentindo o peso da idade, foi convencido por sua esposa a experimentar uma das chamadas curas da nova era. Mesmo aceitando tudo, Bukowski não deixava de ser irônico.

Um dia, às 8h, enquanto estava sentado nu e sua esposa passava óleo de gergelim pelo seu corpo, o Grand Old Man comentou: “Jesus, como cheguei a esse ponto?” Mesmo na iminência da morte, sua mulher prosseguiu tentando purificá-lo. E pra isso contou com alguns monges budistas que conduziram o serviço. O seu bom humor o acompanhou até o fim.

“Depois que eu partir, haverá mais dias para os outros, outros dias, outras noites, cães caminhando, árvores balançando com o vento. Não vou deixar muito, só algo para ler, quem sabe. Uma cebola selvagem numa estrada eviscerada. Paris no escuro”, escreveu antes do último suspiro. Ele pediu que colocassem em seu túmulo a inscrição: ‘Don’t Try’ [Não tente]. Bom, a interpretação vai até onde a sua mente te conduz.

Saiba Mais

Charles Bukowski nasceu em Andernach, na Alemanha, em 16 de agosto de 1920 e faleceu em 9 de março de 1994 em San Pedro, Los Angeles.

Referências

http://www.todayinliterature.com/
http://bukowski.net/

Miles, Barry. Charles Bukowski. Random House (2009).

O Quintal Mágico de Sergio Torrente

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“Não tinha como não transformar o lugar onde moro naquilo que vivo diariamente, a arte popular”

Colorido cenário na Rua Antônio Felippe, onde funciona a casa e o escritório de Sergio Torrente (Foto: David Arioch)

Casa na Rua Antônio Felipe que abriga o escritório e o Quintal Mágico de Sergio Torrente (Foto: David Arioch)

Em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, quem passa pela Rua Antônio Felipe em direção à Praça dos Pioneiros se depara com uma residência bem chamativa à direita. É lá, no número 1676, que vive o artista popular Sergio Torrente. Num colorido cenário, Sergio prova que na vida poucas coisas são realmente descartáveis, ainda mais quando um artista tem a sensibilidade de dar um novo sentido até para objetos que cabem na palma da mão e já não funcionam mais, como um velho despertador à corda.

Depois de passar por uma sala, onde também fica o escritório de Torrente, vou mais adiante, atravesso a cozinha e a última porta da casa. Então encontro meu destino, o motivo da visita, o Quintal Mágico, dividido em três espaços. “Não tinha como não transformar o lugar onde moro naquilo que vivo diariamente, a arte popular”, justifica o artista sorrindo.

Em pouco tempo chegaram peixinhos, flores e gira-giras, penduricalhos criados por Sebastião Torrente (Foto: David Arioch)

Em pouco tempo, chegaram peixinhos, flores e gira-giras, penduricalhos criados por Sebastião Torrente (Foto: David Arioch)

Entre pinceladas de tinta verde, amarela e azul, há três anos surgiu um palco e alguns bancos doados por uma igreja do Jardim São Jorge, agora pintados num azul anilado. Em pouco tempo, chegaram peixinhos, flores e gira-giras, penduricalhos criados por Sebastião Torrente, pai de Sergio, que hoje adornam uma bela e frutífera jabuticeira. “Começou a se transformar e vimos que ele estava mágico, então surgiu a ideia de dar o nome de Quintal Mágico, um espaço onde a arte popular floresce, onde artistas autorais podem se apresentar”, enfatiza.

Pelo local já passaram compositores locais como o próprio Sergio Torrente, Marquinhos Diet, Fernando Bana, Rogério Esquivel e João Henrique. Todos os fazedores de música de Paranavaí podem se apresentar no Quintal Mágico. Ao final da performance é passado um chapéu e quem quiser pode contribuir. “Tem que aproveitar o espaço que é nosso”, comenta. Depois peço que me leve até SáD´Zabumbê, onde uma pequena e estreita abertura no muro exige que cada convidado se abaixe para entrar, fazendo uma reverência ao rei, um boneco grande que tem pés no lugar das mãos e mãos no lugar dos pés.

Após sair de uma limítrofe cobertura de lona escura, piso no solo de SáD´Zabumbê, que é melhor aproveitado se você estiver descalço, sentindo a energia da terra. Há um palco bem rústico, que remete ao início da civilização, delimitado por duas ripas e um tronco fino. No muro se vê sapatos pendurados, uma analogia de que tudo que cobre os pés deve ficar suspenso. As trepadeiras também crescem livremente em várias direções. “A energia foi chamando”, acredita Sergio.

Após sair de uma limítrofe cobertura de lona escura, piso no solo de SáD´Zabumbê (Foto: David Arioch)

Após sair de uma limítrofe cobertura de lona escura, piso no solo de SáD´Zabumbê (Foto: David Arioch)

O local conta somente com a iluminação de uma fogueira, lampião ou luz de velas para criar um clima mais tribal, intimista e informal. Torrente não se preocupa com a ordem das coisas no ambiente, pois elas se ajeitam naturalmente. “Terminamos de tomar uma garrafa de vinho e simplesmente a colocamos aqui, junto com todas as outras que fazem parte de uma simbologia do sangue e da despreocupação”, revela e acrescenta que ao trocar a água pelo vinho o homem deixa de ser motivado pela razão e se guia pela emoção.

Por dois a três minutos, Sergio manipula os personagens, encenando em espanhol um fragmento criterioso de “Oração” (Foto: David Arioch)

Por dois a três minutos, Sergio manipula os personagens, encenando em espanhol um fragmento criterioso de “Oração” (Foto: David Arioch)

O palco de SáD´Zabumbê também foi criado para a encenação do espetáculo “Oração”, do renomado escritor, dramaturgo e cineasta espanhol Fernando Arrabal, de quem Sergio Torrente conseguiu autorização para a montagem da peça. “A minha ‘Oração’ tem direção do capixaba Wilson Coêlho, grande dramaturgo e pesquisador que possui os direitos do espetáculo no Brasil. Apresentei ‘Oração’ na versão original, em espanhol, em 2010 em três festivais na Argentina. Agora quero marcar uma reestreia para 30 a 40 pessoas, discutindo as questões da culpa e da des…culpa, da origem do conhecimento”, pontua enquanto empurra sobre o solo de SáD´Zabumbê um carrinho de bebê com três bonecos que fazem parte do espetáculo, representando Fídio, Lilbé e seu filho.

Por dois a três minutos, Sergio manipula os personagens, encenando em espanhol um fragmento criterioso de “Oração”, a busca do casal por um sentido em suas vidas. Em frente ao modesto palco há uma mamoneira envolta por fitas e uma pinheira. A primeira é uma árvore de recordações em que as fitas representam as histórias, a trajetória humana. “A vida nada mais é do que momentos de felicidade e esses momentos são criados por nós, seja na intenção de viver, ouvir coisas boas ou estar presente. E o Quintal Mágico celebra isso”, argumenta. Sobre o nome, SáD´Zabumbê é um neologismo da junção dos termos regionalistas “sassinhora” e “zabumbê” que juntos significam senhora felicidade. “Se você entrar por baixo, ela vai te levantar. A ideia aqui é manter o espírito de luz, a boa energia em alta”, defende.

A Ação B, o segundo e maior espaço do Quintal Mágico, que fica entre SáD´Zabumbê e a futura Fábrica de Brinquedos, possui um palco com três palmos de altura, usado para apresentações musicais de duas ou três pessoas. Foi construído a partir de cacos de telhas, sobras de lajotas, tijolos e outros restos de entulho. “Assim que mudei pra cá, fui limpando e colocando tudo num canto. Quando vi aquele monte de tranqueira feia pra danar, armei uns palanques, espalhei tudo isso e compactei. Assim surgiu outro palco”, narra.

Torrente: "Armei uns palanques, espalhei tudo isso e compactei. Assim surgiu outro palco” (Foto: David Arioch)

Torrente: “Armei uns palanques, espalhei tudo isso e compactei” (Foto: David Arioch)

Nas “Terças Encantadas”, a partir das 19h30, a diversão no local é baseada em prosa, viola, violão, risos e fogueira. “A gente brinca até as 22h, é o suficiente, até porque o vizinho tem que dormir e nós precisamos trabalhar no dia seguinte”, avisa. No sábado e no domingo os encontros começam às 15h e terminam por volta das 19h. O sinal de que o Quintal Mágico está aberto para quem quiser entrar são as luzinhas acesas na entrada da casa. “Viu a luz? É só vir pro fundo”, sugere.

O céu aberto permite que os convidados tenham um visão privilegiada da Lua e das estrelas enquanto se divertem em torno da fogueira. Nos finais de semana o Quintal Mágico convida todos a retornarem à infância, em rodas de brincadeiras e de cirandas, tocando tambores. “’Esta ciranda quem me deu foi Lia que mora na ilha de Itamaracá…’ E assim por diante. A gente pede que as pessoas se sintam à vontade, pisem no chão, façam coisas que não estão acostumadas a fazer todos os dias”, recomenda o artista que também pretende realizar rodas de congo e coco.

No terceiro espaço do Quintal Mágico, Sergio e o músico Rogério Esquivel vão coordenar pesquisas para a fabricação de brinquedos populares. A ideia é futuramente oferecer oficinas para adultos e crianças. “Queremos incentivar todo mundo a brincar como antigamente. Chegou a hora de desligar um pouco a TV, o computador e o celular. Aqui eles vão aprender a fazer um traca-traca, um mané gostoso – aquele que pula, um jogo de trilhas, damas. Enfim, joguinhos que meu pai brincava comigo quando criança e o pai dele brincou com ele”, explica.

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Antes de eu ir embora, Sergio abraça a viola, canta a plenos pulmões e toca percussão com os pés (Foto: David Arioch)

Cada oficineiro vai assumir o compromisso de produzir três ou quatro brinquedos, feitos principalmente de materiais recicláveis, para doações em comunidades carentes. Além disso, o Quintal Mágico está recebendo brinquedos quebrados para serem consertados e doados. E como diz a letra da música de Torrente: “Uma cidade tem que ter uma canção, um santinho padroeiro para lhe dar proteção. E tem que ter uma bodega sempre aberta, uma cachaça esperta e um louco de plantão. Vamos fazer a nossa bodega aqui”, canta e informa Sergio.

Coordenada por Sol Púrpura, a bodega deve promover ainda mais a interação e a valorização mútua dos frequentadores do Quintal Mágico. “Em breve vamos oferecer pizza, docinhos caseiros, um vinhozinho, uma cachacinha artesanal, os penduricalhos do Seu Tião, brinquedos populares e o que vier. Todo mundo pode trazer alguma coisinha pra expor e vender, inclusive você. Precisamos de pessoas que venham somar, ajudar para que as coisas aconteçam”, declara.

Antes de eu ir embora, Sergio me serve um café fresco, abraça a viola, canta a plenos pulmões e toca percussão com os pés. A cantoria é acompanhada de uma interpretação singular repleta de trejeitos e caretas. A cada batida o chão treme, os objetos passeiam pela estante azul, os penduricalhos se agitam e as cores vibrantes nas paredes reforçam a alegria emanada de um cenário naturalmente festivo. “As cores, a brisa, o olho vibrando, tudo isso faz com que a alma cresça. É muito bom ver que você voltou com vontade de conhecer ainda mais o Quintal Mágico. É bacana. O Quintal Mágico, SáD´Zabumbê, já pegou você!”, anuncia ao notar a minha satisfação em divulgar a magia de um lugar que contrasta com a tecnologia e a célere realidade da vida urbana.

Saiba Mais

Para mais informações sobre os eventos do Quintal Mágico, curta a página no Facebook.

Miodrag Petrović e a arte que nasce da guerra

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Quando a poesia humanista de um sérvio é capaz de eternizar soldados

Miodrag Petrović foi o artista militar que acompanhou o Exército Sérvio até o final da Primeira Guerra Mundial (Acervo: Народна библиотека Србије)

Miodrag Petrović acompanhou o Exército Sérvio até o final da guerra (Acervo: Народна библиотека Србије)

Não faz muito tempo que a Biblioteca Nacional da Sérvia (Народна библиотека Србије) lançou um projeto da Coleções Europeana baseado na obra de Miodrag Petrović, um artista que acompanhou todos os passos do Exército Sérvio na Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Pouco conhecido no mundo todo, com exceção da Sérvia, parte do trabalho de Petrović só se tornou público após mais de 90 anos. Seus desenhos e pinturas são acompanhados de poemas e textos alusivos em que amplifica interpretações pessoais, recria metáforas e enigmas. Vez ou outra detalhava o que acontecia no momento de criação de cada imagem, como se reconhecesse a importância de confundir e ao mesmo tempo situar o espectador no contexto da guerra – em situações de conflito ou bastidores.

Para entender a pluralidade do trabalho de Miodrag Petrović é preciso primeiro saber um pouco sobre o seu passado. Nascido em 1888, começou a estudar arte ainda na infância. Mais tarde, migrou para a Alemanha, onde se aperfeiçoou na Academia de Belas Artes de Munique. Com a animosidade do pré-guerra, retornou para a Sérvia e se alistou no Exército. As boas qualificações lhe garantiram um raro reconhecimento como artista militar.

Petrović participou de várias batalhas ao redor de Belgrado em 1914, até que no inverno de 1915 o enviaram para Montenegro, Albânia e ilha grega de Corfu. Antes da guerra chegar ao fim, o artista tinha documentado muitas impressões e criado inúmeras obras das experiências em Tessalônica, na Grécia, e também nos hospitais das campanhas acirradas na Tunísia e Argélia.

Em 1919, Miodrag retomou os estudos de arte em Paris, onde trabalhou e conviveu com alguns dos mais importantes nomes da pintura francesa da época. Apaixonado pelas artes visuais, prosa e poesia, o artista que faleceu em Belgrado em 1950 desenhou, pintou e escreveu até os últimos meses de vida.

O Funeral no Navio-Hospital Divona (Acervo: Народна библиотека Србије)

O Funeral no Navio-Hospital Divona (Acervo: Народна библиотека Србије)

Uma de suas obras de maior repercussão é O Funeral no Navio-Hospital Divona, sobre a embarcação para onde eram transportados os soldados e oficiais sérvios e franceses – doentes e feridos na Primeira Guerra Mundial. Em um de seus trabalhos disponíveis na Biblioteca Nacional da Sérvia, Miodrag explica que em 1915 participou de uma missão no Divona para enviar a Bizerta, na Tunísia, os impossibilitados de lutar. “Dois de nossos soldados morreram durante a nossa viagem pelo Mar Mediterrâneo. Um estava ferido e o outro doente. Testemunhei seus corpos sendo lançados ao mar sob a noite enluarada”, contou.

No relato, diz que às 20h a lua cheia engrandecia o céu límpido. Os dois jovens mortos eram mantidos com a cabeça voltada às bordas do navio enquanto os pés miravam o mar. “Incrível como aqueles cadáveres estavam mentindo, cobertos com a bandeira francesa. Claro, a cor vermelha mais próxima do mar e o branco e o azul disperso, ao longe”, comentou. Para Miodrag, o mar estava especialmente azul-esverdeado, assim como o céu, com o acréscimo do brilho do luar que refletia na água com certa magia.

As lâmpadas da parte de trás do navio continuavam desligadas. Apenas uma pequena luz parcial do lado direito iluminava a cerimônia fúnebre capitaneada por um sacerdote. O homem vestido de preto e usando uma estola se voltou para os corpos e o mar quando começou a ler a bíblia em voz baixa, quase em silêncio. Logo atrás estava o capitão do navio, também trajando roupa preta e, pela primeira vez em toda a viagem, com a cabeça descoberta.

Prosa e Poesia (Acervo: Народна библиотека Србије)

Prosa e Poesia (Acervo: Народна библиотека Србије)

À esquerda do capitão, havia um oficial francês ferido e dois sérvios. Os corpos estavam ladeados por dois marinheiros à esquerda e dois à direita. “Era possível ver de longe o azul ao redor de suas cabeças, a cabeleira branca e o topete vermelho. Nossos soldados feridos e doentes vinham logo atrás, acompanhados por duas enfermeiras de branco com a cruz vermelha em torno de seus braços”, detalhou.

Enquanto a cerimônia era iluminada por uma trêmula e pálida luz amarela-esverdeada, os rostos de todos os presentes tinham o mesmo aspecto – de tristeza e solenidade. Assim que o padre terminou a oração, as enfermeiras sussurraram a Oração do Senhor. “Me recordo do padre dando alguns passos para trás, fechando a bíblia, virando-se para o capitão e falando: ‘Terminei’. Em seguida, o comandante fez um rápido sinal e se aproximou dos corpos”, confidenciou Petrović.

No discurso arquivado há quase cem anos, e muito bem preservado pela Biblioteca Nacional da Sérvia, o capitão disse o seguinte: “Camaradas, longe de sua terra natal, vocês deram o último suspiro neste fraternal barco francês. Vão para o outro mundo, confiantes de que seus filhos, esposas e pais muito em breve viverão a liberdade que vocês não puderam desfrutar. Adeus, camaradas. Adeus…Adeus…”

A Nova Odisseia (Ulisses) I (Acervo: Народна библиотека Србије)

Primeira parte de A Nova Odisseia (Ulisses) I (Acervo: Народна библиотека Србије)

Ao final, o capitão deu um sinal e dois marinheiros levantaram uma parte do tabuleiro e os deslizaram em direção ao mar, onde os corpos afundaram com 30 quilos de ferro presos aos pés. Logo que os cadáveres se chocaram contra a água, um marinheiro soprou bem alto um apito. O ato foi seguido por cinco minutos de silêncio. “Mesmo que tenhamos enterrado tantos companheiros e visto milhares de defuntos, ainda assim era algo que tinha um impacto muito grande sobre todos, a ponto de ninguém ser capaz de dizer uma palavra”, revelou o artista militar.

Prosa, Poesia e a Nova Odisseia (Ulisses)

Em outra de suas obras, intitulada Prosa e Poesia, Miodrag Petrović apresenta um retrato peculiar e bucólico da guerra, baseado na imagem de um soldado sentado debaixo de uma bela laranjeira, abundante em frutos, tentando remover os piolhos que o incomodavam. “O percebi intoxicado pelo cheiro da laranja. As cascas se deitavam ao seu lado. Ele estava encantado com o céu azul e a superfície azul-esverdeada do mar por onde um barco colorido deslizava. Do outro lado da água, podia-se ver a costa da Albânia com as docas cobertas em neve. O rapaz gentilmente retirou o casaco e interrompeu os incômodos insetos aninhados. Tudo para não se distrair da poesia daquele momento”, escreveu Petrović.

A Nova Odisseia (Ulisses) II (Acervo: Народна библиотека Србије)

Segunda parte de A Nova Odisseia (Ulisses) II (Acervo: Народна библиотека Србије)

Já a obra Nova Odisseia (Ulisses) nasceu de um episódio envolvendo o bombardeamento de um navio por submarinos alemães. A embarcação partia de Bizerta, na Tunísia, para a cidade grega de Tessalônica. Na tragédia, apenas um soldado sérvio, um senegalês e dois franceses – um soldado e um marinheiro – sobreviveram. Os quatro se salvaram graças a uma jangada feita de tábuas grossas, um recurso salva-vidas muito comum nos barcos da Primeira Guerra Mundial.

Chegaram a uma costa rochosa vestindo apenas trapos, morrendo de fome, sede e quase “azuis de frio”. “Só lhe restaram as túnicas de verão. Apesar da exaustão, ficaram muito felizes por sobreviverem depois de remarem tanto com as pernas”, enfatizou. Segundo a obra de Miodrag, o mar ficou extremamente agitado e os quatro só não morreram porque surgiram as nereidas.

Enquanto riam histericamente, as ninfas do mar os rodearam e puxaram a jangada em direção à costa, percorrendo pelo menos cem metros. Os sobreviventes estavam pálidos, assustados e confusos. Sentado sobre uma pedra, o soldado sérvio ficou com o olhar vagando em direção à pátria. Logo atrás, uma nereida em pé tocava uma harpa feita de madeira e cantarolava melodias expansivas, na tentativa de animá-lo. “O mar já estava calmo e o dia claro, mas perto das rochas havia apenas uma caverna”, narra o artista, deixando a interpretação livre.