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O livreiro da Rua Artur Bernardes
De longe, ele parecia um personagem suspeitoso, saído de uma das histórias de Charles Dickens
Pelo menos uma vez por mês, o livreiro João Romani passava em casa, na Rua Artur Bernardes, quando eu tinha nove anos. Por entre os galhos da sete-copas, eu o via atravessando a Rua Silvio Meira e Sá Bezerra e descendo em minha direção, carregando a mesma mala acastanhada, adornada com nomes de dezenas de escritores.
De longe, ele parecia um personagem suspeitoso, saído de uma das histórias de Charles Dickens. Não tinha mais de 35 anos, estatura mediana, pele cor de oliva, um andar peculiar e se vestia como um homem da década de 1920, com seu chapéu fedora cuidadosamente alinhado e paletó cinturado. Junto à mala, sempre trazia um guarda-chuva que podia ser desmontado e usado como bengala.
Quando o conheci, ele estava no portão de casa conversando com minha mãe, oferecendo uma coleção de 16 volumes da Enciclopédia Barsa. Conforme o livreiro falava, num crescente paroxismo, tudo ganhava vida e se tornava mais importante do que realmente era. Ele sorria, gesticulava e movia os pés de um lado para o outro, fazendo da apresentação da enciclopédia uma performance teatralmente didática.
E foi assim que João Romani a convenceu a comprar a coleção numa negociação mais motivada pelos seus métodos de venda do que pela qualidade do produto. Seu poder de convencimento talvez só não superasse suas qualidades humanas mais virtuosas. E naquele dia, ele pediu autorização da minha mãe para descansar por alguns minutos na varanda. Ela consentiu sem pestanejar.
Convidado a entrar, ele sentou em uma cadeira com cordas de nylon e minha mãe foi até a cozinha buscar uma xícara de café enquanto a garoa resplandecia serena sobre o nosso jardim. Antes de abrir a mala, tirou o chapéu da cabeça e o manteve sobre a ponta do guarda-chuva escorado na grade da janela. Ajeitou os cabelos castanhos e ondulados e perguntou meu nome. Respondi e ele deu um grito entusiasmado:
“Uau! Estupendo! David! Será que se seus pais escolheram seu nome por causa do jovem David Copperfield? Você conhece a história dele?” Sorri e, entusiasmado com o seu carisma, questionei se ele falava do mágico ou do menino. “Isto! O menino!”, comentou. Com a simplicidade inerente às crianças, relatei que ele era órfão e sofreu muito porque vivia sozinho no mundo. Apesar disso, acreditava no ser humano, em um mundo melhor.
Muito bom! Sabe de uma coisa, David? Sou de origem romani, cigana, e nós nunca acreditamos que nomes são escolhidos ao acaso. Tenho certeza que o seu diz muito sobre quem você é e vai ser. David Copperfield era extremamente perseverante, um sonhador, e embora eu tenha conhecido você há pouco, acredito que você também será assim. Este nosso encontro tem um significado especial que um dia talvez faça mais sentido na sua vida – declarou o livreiro com uma expressão enigmática que destacou ainda mais seu rosto quadrado e seus olhos grandes e amendoados como o fruto da sete-copas.
Tão rápido minha mãe retornou com o café, João Romani agradeceu e o bebeu em silêncio, observando Happy e Chemmy brincando no jardim, rolando na grama úmida, com olência de jasmim, e teimosamente saltando sobre o canteiro de plantas. Com olhar curioso, o livreiro sorria diante do espetáculo da vida cotidiana. Perscrutava com tanto rigor o trivial que até a mais ordinária das cenas parecia transmitir algo de surreal.
Quando ameacei tirar Happy e Chemmy da grama, evitando que se sujassem mais, ouvi um som duplo e sincronizado. O livreiro estava abrindo a mala. No mesmo instante, me afastei dos dois poodles e me aproximei, intrigado em saber o que ele carregava.
“Olhe, vou contar um segredo. Não costumo mostrar para ninguém o tesouro que carrego comigo, mas como acredito que você seja um genuíno David Copperfield, sei que não há problema”, argumentou, em seguida pedindo que eu fechasse os olhos e estendesse os braços. Logo senti algo plastificado entre meus dedos pequenos.
Sobre as minhas mãos estava um exemplar esmerado de David Copperfield. A capa era esverdeada e trazia instigantes ilustrações das aventuras vividas pelo jovem órfão. Embora eu não entendesse em profundidade a importância daquele momento, fiquei muito feliz em segurar a obra nas mãos. E o semblante de Romani deixou subentendido que eu estava diante de uma oportunidade inestimável.
“É diferente do livro da Escola São Vicente de Paulo. Parece que esse é mais velho e menos colorido. Lembra uma revista antiga, uma cartilha”, comentei sem velar a inocência. O livreiro deu uma breve gargalhada, tirou a obra da embalagem que a protegia e pediu que eu lesse o que estava escrito na capa. “O senhor me desculpe, não sei tanto assim de inglês”, justifiquei. Então ele explicou que não era para eu ler tudo e me mostrou o ano grafado – 1849.
Aquela era a primeira edição de David Copperfield, o maior tesouro da família de João Romani. Seu bisavô Vladimir recebeu o exemplar das mãos do próprio Charles Dickens pouco tempo após o lançamento. “Ele fugiu para a Inglaterra em 1846 e mais tarde conheceu o autor na esquina da Editora Bradbury e Evans, em Londres. Meu bisavô trabalhava como engraxate, e um dia Charles Dickens conversou com ele. Se não me falhe a memória, falou o seguinte antes de entregar David Copperfield: ‘Aqui está uma semente. Quem sabe se torne um presente’”, narrou o livreiro sorrindo.
O jovem cigano encontrou Dickens mais três vezes. No último encontro, o autor fez o garoto de 15 anos chorar quando comentou que talvez tivesse escrito uma história melhor se David Copperfield fosse baseado na vida de Vladimir. Nascido na Romênia, o bisavô de João Romani foi um serf, escravo de um boiardo valaquiano – aristocrata da Transilvânia. Órfão, passou a maior parte da infância realizando serviços domésticos e trabalhando no garimpo em troca de comida, até que um dia conseguiu fugir.
Mesmo ainda criança, fiquei boquiaberto com o relato, e a desenvoltura do livreiro garantia mais realismo à história. O exemplar de David Copperfield, que segurei com as duas mãos, tinha uma dedicatória, e o nome de Vladimir escrito por Charles Dickens figurava sobre o nome do protagonista, num singelo gesto de afeição.
Houve um momento em que o notei com os olhos marejados, se esforçando para não lacrimejar. Fez tanta força que as veias do pescoço saltaram e revelaram uma tatuagem discreta, porém vivida, perto do pescoço. Era baseada em uma combinação de cores que não consegui identificar. Não havia desenho, somente duas palavras – Pacha Dron que descobri há alguns anos que significa O Caminho da Vida.
Logo que a garoa se dissipou, João Romani embalou novamente David Copperfield e o ajeitou dentro da mala com o mesmo esmero que uma mãe dedica ao filho na hora de colocá-lo para dormir no berço. Quando a mala se fechou, senti um ar morno e fugaz acariciando minhas maçãs. O livreiro se levantou, se despediu da minha mãe e eu o acompanhei até o portão. Lá fora, ele estalou os dedos, apontou para mim e falou: “Até logo, David Copperfield!” Deu uma piscadela e desceu a Rua Artur Bernardes como um singular personagem. Se na vinda, e de longe, ele me parecia um tipo de Uriah Heep, na volta, mais lembrava um híbrido de Ham Peggotty e Dr. Strong.
João Romani me visitou ao longo de um ano. Independente de clima e tempo, ele sempre retornava. Um dia, chovia muito quando o livreiro bateu palmas em frente de casa – estava encharcado, desprotegido pelo próprio guarda-chuva tornado arredio pela violência das águas. “Compromisso é compromisso!”, alegou sorrindo. Depois de ouvir uma boa reprimenda de minha mãe, dessas que os pais dão nos filhos mais travessos, ele velou o riso e aceitou cabisbaixo o reproche, até que começamos a rir.
Afeiçoado a um ofício que entrou na sua família por meio do seu bisavô Vladimir, sua maior satisfação era percorrer as ruas vendendo livros. Para ele, nada era mais importante do que o prazer de contar histórias e despertar sensações. Em uma ocasião, quando foi assaltado, entregou todo o dinheiro e se debruçou sobre a mala no meio do asfalto, protegendo os livros; até que os bandidos desapareceram como se nunca tivessem se aproximado dele.
No nosso último encontro, perto do Natal, João Romani me deixou como guardião de uma caneta Fountain que seu bisavô entregou ao seu avô horas antes de falecer. “David Copperfield, essa caneta foi usada por Charles Dickens no rascunho de Grandes Esperanças. Qual maior exemplo de esperança do que ter nas mãos algo que existe desde 1860 ou até antes? Pois é…”, enfatizou. Aquela foi a última vez que vi o livreiro para quem ainda guardo a Fountain.
Oxalá, quando a realidade cessar de existir para mim, como as sombras vaporosas de que a minha imaginação se separa voluntariamente nesta ocasião, eu possa encontrar o que há de verdadeiramente mais importante ao pé de mim, com o dedo levantado a apontar-me o céu! – escreveu Dickens em David Copperfield, num trecho transfigurado por mim.
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Dio, a descoberta do bombachinha
Me surpreendi ao ver no quintal um gavião-bombachinha empoleirado no galho da jabuticabeira
Eu tinha oito ou nove anos. Cheguei em casa e me surpreendi ao ver no quintal um gavião-bombachinha empoleirado no galho da jabuticabeira. Ele era filhote e minha mãe o encontrou ferido nas imediações de um terreno baldio. Cuidou dele e logo ele se recuperou, mas não quis partir. Vivia solto em casa, percorrendo todo e qualquer espaço que lhe agradasse ou atiçasse sua curiosidade. Sua penugem plúmbea contrastava com o céu claro em dias quentes. Eu dizia que ele era o senhor da chuva porque suas penas acinzentadas eram como o firmamento nuvioso. Sempre que alguém me perguntava porque Diodon tinha as penas próximas do pé direito alaranjadas, eu repetia a mesma história que inventei:
“Num dia de pouca claridade ele voou tão alto que o Sol ficou com raiva e apareceu de repente queimando apenas uma pequena porção de suas penas. O susto foi tão grande que até seus olhos azuis mudaram de cor – uma lembrança sem fim de sua teimosia.” Dio era tranquilo e silencioso, porém não gostava de interagir com outros animais. Apenas os assistia à distância, como se do galho onde repousava observasse os súditos de seu reino. Tinha um olhar inquiridor e ao mesmo tempo singelo e lhano. Não era capaz de caçar, então recaía sobre nós a responsabilidade de alimentá-lo com carne moída com carbonato de cálcio em pó.
A primeira vez que ele subiu no meu dedo, senti cócegas. Quando comecei a rir, Dio abriu o bico e emitiu um guincho oxítono e estiolado. Tive a impressão de que ele quis retribuir minhas gargalhadas à sua maneira. Conforme Diodon crescia, meus dedos se tornaram insuficientes para resguardá-lo, e ele decidiu se aninhar em meu braço e ombro, principalmente perto do pescoço, onde aprendeu a me cutucar sutilmente com as garras. Sobre a minha espádua, Dio sempre chamava a atenção de curiosos no centro de Paranavaí. Vez ou outra abria as asas como um leque, reafirmando sua imponência. Seus olhos estalados me davam a impressão de que sua visão atilada contemplava tudo que o cercava, a exemplo de sua audição. Nada passava despercebido, nem mesmo uma folha solitária arrastada pela brisa para dentro de uma boca de lobo.
Ocasionalmente ele se encolhia na presença de estranhos, velando parte do corpo atrás de mim. Era inevitável sentir cócegas e gargalhar ao perceber seu bico ruço ponteando a minha cabeça. Então ele movia os pezinhos à esquerda, até tocar meu deltoide, e me observava com atenção, já ignorando as visitas que ele encarava como intrusão. Apesar do estranhamento que durou meses, os poodles Happy e Chemmy já não eram mais vistos por Dio como ameaças. Ao analisá-los, seu comportamento mudou consideravelmente. Me recordo quando flagrei o caritativo Chemmy lambendo as penas de Diodon. Silencioso, o bombachinha mirava o bico em direção ao céu índigo com ar contemplativo.
Naquele final de tarde, assim que o estrepitoso Happy se aproximou para lamber seu bico, Dio não se posicionou para bicar seu focinho como de costume. A verdade é que não se importou. Talvez nem tivesse notado o que aconteceu e continuou admirando a amplidão celeste, abstraído da terra e lançado aos céus por onde flutuava sob sonhos maviosos como suas penas. Happy estranhou a passividade do gavião e o examinou com expressão exultante e enleada. Os poodles recuaram quando o bombachinha agitou as asas e caminhou até o quintal, em direção à jabuticabeira. Subindo de galho em galho, chegou ao topo. Hesitou por quase um minuto e de repente saltou com as asas abertas.
Durante o voo, Dio guinchava com tanta excitação que chamou a atenção de vizinhos e estranhos que passavam pela Rua Artur Bernardes. Ele estava feliz e até os mais airados percebiam isso. Era como se o céu desanuviado ganhasse um novo dono, um jovem animalzinho que descobriu através da observação que o sopro da vida também subsiste na concessão. Todos os dias à tarde ele voava no mesmo horário. Achando aquilo curioso, comecei a cronometrar a duração de seus passeios e incursões. Uma hora, duas horas, três horas, quatro horas. A cada semana que passava eu notava que menos tempo em casa Diodon ficava. Foi quando me dei conta que seu lar já não era um lugar, mas um espaço inestimado por onde suas asas balouçavam com a pureza de um cavalo alado.
Na última vez que o encontrei em casa, ele bicou carinhosamente a minha cabeça. Suas penas estavam mais vibrantes, assim como seus olhos rutilantes de citrino que me transmitiam astúcia e convicção. Diodon não era mais o miúdo bombachinha que chegou em casa ferido, desnutrido e com poucas penas. Embora não gostasse de abraços, permitiu que eu o envolvesse rapidamente entre os meus, sem sequer apontar suas longas e afiadas garras. O soltei e ele reproduziu o mesmo guinchado da primeira vez em que subiu em meu dedo. Em poucos minutos, Dio foi embora e nunca mais voltou. Não o procuramos porque não há o que encontrar quando a partida é motivada pelo anseio intempestivo de voar.
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