David Arioch – Jornalismo Cultural

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Cheri Vandersluis: “Os animais usados nos testes [em laboratórios] não deveriam ter contato humano, porque isso faria com que tivessem vontade de viver”

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“Ficamos no portão ouvindo os nossos cabritos chorando enquanto eles eram levados embora”

O casal vegano Cheri e Jim administra o santuário Maple Farm no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos (Foto: Maple Farm Sacntuary)

Cheri Ezell-Vandersluis é a fundadora do santuário Maple Farm, criado em parceria com o marido Jim Vandersluis. O local situado na pequena Mendon, no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos, funciona como um refúgio seguro e amoroso para os chamados “animais de criação” ou seja, animais criados para consumo; criaturas que por diversos motivos escaparam de serem enviados para o matadouro. Lá, eles vivem suas vidas em paz e fazem tudo que têm vontade sob a tutela do casal vegano.

No entanto, Cheri admite que antes de fundarem um santuário, ela conheceu o lado mais obscuro e insensível da natureza humana no que diz respeito ao tratamento dispensado aos animais. “Sempre amei os animais, mas cresci em uma sociedade que os trata como bens, coisas. […] Eu não tinha ideia de que a carne que eu comia vinha de vacas de olhos arregalados e galinhas fofinhas e inocentes. Embora eu sempre quisesse trabalhar com animais, levou tempo e várias lições de vida para encontrar um emprego que realmente os beneficiasse”, relata.

O primeiro trabalho em que Cheri Ezell teve contato constante com os animais foi em um laboratório de testes de toxicidade de medicamentos. Ela atuava como técnica em histologia e autópsia: “Disseram-me que a pesquisa beneficiava a humanidade e que o assassinato de animais era um tipo de ‘sacrifício’. Nos diários de bordo onde gravávamos os dados da sala de autópsia, não havia o conceito de matar, mas apenas de “sacrificar números’.”

Essa dissimulação da realidade foi o que sempre facilitou o trabalho das pessoas em laboratórios. Ou seja, evita-se confrontar a realidade e refletir sobre as implicações das ações para as vítimas, nesse caso, os animais. Cheri se recorda de quando caminhava para as seções onde pequenos e doces beagles eram confinados e rotineiramente vitimados pela administração de compostos promotores de crescimento, antibióticos, dopamina e muitos outros fármacos.

“Eu queria conversar com eles, alcançar as gaiolas para acariciá-los, olhar em seus olhos confiantes e desconhecidos. Fiz isso por alguns dias antes de ser flagrada e repreendida por esse comportamento. Me disseram que os animais usados nos testes não deveriam ter contato humano. Deveriam apenas receber os medicamentos, serem examinados, limpos e alimentados, uma vez que qualquer expressão de carinho faria com que tivessem vontade de viver, afetando negativamente sua reação aos compostos”, revela.

Ela conviveu com essa justificativa por quatro anos até que pediu demissão. Então conseguiu um emprego em um aquário destinado a entreter visitantes. Em síntese, mais um trabalho em que “bolsos cheios significam o derramamento de sangue animal”, na perspectiva de Cheri. A sua função de “aquarista” incluía alimentar e monitorar a saúde dos milhares de peixes e mamíferos marinhos – supervisionando a qualidade da água e ajudando a equipe a cuidar dos mamíferos marinhos, além de auxiliar na realização de autópsias.

Um dia, o aquário recebeu quatro golfinhos nariz-de-garrafa. Cheri sentiu-se privilegiada pela oportunidade de nadar com eles durante a adaptação ao cativeiro. Mas a ideia romanesca de golfinhos vivendo muito bem em um ambiente artificial logo foi descortinada pela realidade: “No começo de uma manhã, ouvi gritos agudos. Nós não podemos falar a língua deles, mas a angústia, a tristeza e a frustração são facilmente traduzíveis. Um dos golfinhos machos prendeu seu nariz em uma rede e tentou se libertar. Ele estava retorcido e apertado – aprisionado sob a água. Na natureza, se um golfinho fica doente ou ferido, outros o auxiliam e o empurram para a superfície para conseguir ar. Nessa configuração cativa, eles só poderiam assistir o companheiro se afogando lentamente [os outros não atinham acesso ao local onde um dos golfinhos agonizava].”

Cheri e outro funcionário do aquário mergulharam com uma faca na esperança de cortar a rede onde o golfinho estava preso. Era tarde demais, e o corpo do animal já estava sem vida. Pouco tempo depois, o golfinho foi substituído por outro espécime capturado na natureza, e a rede substituída por uma corrente de metal. Assim o show prosseguiu. “Depois que saí do aquário, passei pouco tempo atuando como designer gráfica antes de entrar para o ramo de leite de cabra. Conheci meu marido, Jim, quando eu estava comprando cabras para o meu negócio. Ele estava vendendo suas vacas leiteiras e se preparando para adquirir novilhas. Nos tornamos inseparáveis”, revela.

Em uma ocasião, quando Jim estava ordenhando uma vaca, Cheri entrou no celeiro e encontrou uma bezerra doente. O marido explicou que a novilha seria vendida para um comerciante de carne e logo mais reduzida a pedaços de carne. “Naquele tempo, eu tinha algum dinheiro e implorei para que ele me deixasse cuidar dela. Ele concordou relutantemente. A levei para uma clínica veterinária, onde aplicaram fluidos intravenosos e antibióticos, e disseram que mais um dia sem cuidados e ela teria morrido. Quando ficou boa o suficiente, eu a trouxe para a fazenda onde ela acabou se tornando uma vaca leiteira”, confidencia.

Com o tempo, Jim e Cheri não conseguiram mais continuar ordenhando vacas. Por isso, aumentaram o rebanho de cabras e começaram a vender leite de caprinos: “O infeliz subproduto disso é: ‘O que fazer com todas as crianças?” Não demorou, e o casal percebeu que em certas comunidades étnicas é uma tradição consumir carne de cabras ainda bebês, ou seja, cabritos, durante o feriado de Páscoa. Pessoas de descendência portuguesa e grega sempre os procuravam nessa época do ano.

“Nós pesávamos os pequenos de 11 a 15 quilos e os clientes pagavam. Eles eram recolhidos e jogados na parte de trás do porta-malas ou na carroceria de uma caminhonete como se fossem pedaços de bagagem. Esses bebês olhavam nos meus olhos com confiança, admiração e medo. Jim e eu sabíamos o destino deles. Trabalhando com laticínios a vida toda, Jim tentava endurecer as minhas emoções. […] Muitas vezes, ficamos no portão ouvindo os nossos cabritos chorando enquanto eles eram levados embora. Foi em um daqueles momentos terríveis que Jim e eu nos olhamos de esguelha e decidimos começar a nossa jornada a favor da vida.”

Cheri e Jim conheceram a organização não-governamental Pessoas Pelo Tratamento Ético dos Animais (Peta) e receberam toda a ajuda necessária para fazer uma transição para uma vida em verdadeira conformidade com o bem-estar animal:

“Entre soluços, falei com uma pessoa maravilhosa que me tranquilizou e disse que estávamos fazendo a coisa certa. Para aliviar o fardo financeiro, nos deram uma lista de santuários para onde poderíamos levar algumas das cabras. Depois de fazer contato com vários santuários sem espaço para mais animais, encontramos o OohMahNee. Os fundadores Cayce Mell e Jason Tracy garantiram que estávamos realmente fazendo o que era certo. Meu coração estava doendo. Eu amava minhas cabras e mandá-las para longe foi difícil mesmo sabendo que seria um lugar seguro para elas. Depois de muito refletirmos, enviamos metade do nosso rebanho para os santuários OohMahNee e PIGs. Foi um dia de sentimentos mistos, mas Cayce e Jason foram meus anjos e nos confortaram durante esse momento angustiante.”

Referência

Satya Magazine. From goat farmer to sanctuary founder. Vandersluis, Cheri-Ezell (junho de 2007).





 

Uma lição de vida

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Sempre me emociono quando vejo o vídeo abaixo. Baita lição de vida. E pensar que esses animais são tratados como se fossem isentos de qualquer razão e sensibilidade. Basta pensarmos no uso hediondo deles em laboratórios, em vivissecção. Triste realidade.

 

Written by David Arioch

June 18th, 2017 at 9:12 pm

Johnny Appleseed, o plantador de árvores que amava todas as criaturas

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Para Johnny, era errado e desnecessário ceifar vidas para conseguir comida

Johnny Appleseed é uma das figuras mais lendárias da história dos Estados Unidos (Arte: Autoria Desconhecida)

Johnny Appleseed é uma das figuras mais lendárias da história dos Estados Unidos. Nascido em 26 de setembro de 1774 em Leominster, Massachusetts, ele optou por deixar o conforto familiar para dedicar 50 anos ao plantio de macieiras, percorrendo milhares de quilômetros dos estados da Pensilvânia, Ohio, Illinois, Indiana e West Virginia. Johnny andava a maior parte do tempo descalço e usava como vestimenta apenas um saco de café com buracos para a cabeça e os braços.

“Ele era, de acordo com todos os relatos, extremamente excêntrico, usando sacos como túnicas. Era vegetariano, embora eu não sei se os esquilos e outros animais realmente passeassem com ele pela floresta”, declarou a escritora e doutora em sociologia Gwen Sharp no artigo “The Real Johnny Appleseed: Alcohol, not Apples”, de 9 de janeiro de 2015.

De acordo com informações da U.S. Apple Association, o plantador de árvores dizia que as roupas não devem ser usadas como adorno, mas somente como recurso de conforto. Até mesmo no inverno, Johnny Appleseed era visto caminhando descalço. Na lenda popular, ele não carregava nenhuma arma e andava descalço por toda parte. Além disso, detestava prejudicar qualquer criatura, era vegetariano e às vezes é descrito como um abstêmio, segundo o artigo “Was Johnny Appleseed a Barefoot Vegetarian?”, da American Orchard, publicado em 6 de setembro de 2014.

No livro “Who Was Johnny Appleseed?”, publicado em 2005, a escritora Joan Holub também afirma que Johnny não comia nenhum tipo de carne, nem mesmo quando se reunia em confraternização com os colonos. “Pioneiros caçavam por comida [animais] e achavam que sua crença era estranha. Enquanto viajava pela floresta, ele fervia a água do córrego em sua panela, adicionava bagas, grãos ou batatas para fazer uma refeição. Ele também comia ‘journey bread’, um pão que os nativos americanos o ensinaram a fazer a partir do milho”, informa Joan.

Johnny sentia compaixão por todos os animais (Arte: Al Schmidt)

Johnny tinha estatura mediana, olhos azuis e cabelos longos castanho-claros. Chamava a atenção pela inocência, coragem e resistência. No livro “Johnny Appleseed and the American Orchard: A Cultural History”, de 2012, William Kerrigan narra que tanto o homem branco quanto o índio confiaram em Johnny Appleseed porque viram que ele era um homem sem malícia. As crianças o admiravam e o cumprimentavam com entusiasmo. “Ele amava todas as criaturas de Deus e não queria prejudicar nenhuma delas. Ele era vegetariano. Livros frequentemente contam como ele sentiu remorso profundo quando em um momento incomum de exaltação golpeou uma serpente que o mordeu”, relata Kerrigan.

Johnny sentia compaixão por todos os animais, mas o que aparentemente o levou a se tornar vegetariano foi uma experiência que teve enquanto descansava sob uma fogueira. Ele viu que o fogo atraía os mosquitos, e que rapidamente morriam queimados. Isso o deixou muito triste e o fez tomar a decisão de não acender mais nenhuma fogueira, mesmo que tivesse de passar frio. “Deus me livre de ter que fazer uma fogueira para o meu conforto, porque isso significaria destruir as criaturas de Deus”, teria justificado. Essa experiência o motivou a assumir um compromisso de compartilhar o seu amor com todos os animais.

Para Johnny, era errado e desnecessário ceifar vidas para conseguir comida. Por isso, ele se tornou ainda mais zeloso no seu trabalho de motivar as pessoas a plantarem e cultivarem frutos. A ele, é atribuída à valorização da maçã como alimento tradicional e simbólico nos Estados Unidos. Há quem diga que é praticamente impossível não encontrar macieiras nos lugares percorridos por Johnny Appleseed, filho do capitão Nathaniel Chapman que serviu na Guerra Revolucionária.

“Ele era São Francisco de Assis e Papai Noel embrulhados em um pacote” (Arte: Harper’s New Monthly)

Em 1797, segundo William Kerrigan, o plantador de macieiras pode ter comprado três pares de mocassins na loja Holland Land Company. “Eram fáceis de transportar e poderiam ser trocadas por outras coisas que ele precisava, ou doados a outros em necessidade”, declara Kerrigan. Entretanto, isso é um episódio à parte. Johnny era um sujeito tão simples e empático que ocasionalmente, apenas em caso de última necessidade, usava botas, e somente se estivessem desgastadas ou fossem descartadas por outras pessoas.

E não demorava para que ele as doasse para alguém que julgava mais necessitado. Comprometido com uma vida alheia ao materialismo, Johnny amava a floresta, a considerava o seu verdadeiro lar, e só buscava abrigo entre paredes se o tempo estivesse muito ruim. Todas as histórias sobre ele, apesar de algumas divergências dependendo das fontes, mostram que sua popularidade veio de sua generosidade que não se baseava em espécie. Pessoas, animais e plantas, tudo para ele tinha a sua própria razão de ser. Ao reconhecer isso, Johnny Appleseed, que optou por levar uma vida de abnegação, mostrou o quanto é importante o respeito à vida.

“[…] Pessoas em todo o Meio-Oeste, e até além, dizem que cada antiga árvore de maçã do seu próprio bairro já foi uma das mudas de Johnny Appleseed. Ele era São Francisco de Assis e Papai Noel embrulhados em um pacote [uma menção ao saco que ele usava como vestimenta]”, escreveu William Kerrigan, autor do livro “Johnny Appleseed and the American Orchard: A Cultural History”.

Saiba Mais

John Chapman, mais conhecido como Johnny Appleseed, faleceu aos 70 anos, em 18 de março de 1875, em Fort Wayne, Indiana, onde o seu túmulo pode ser visitado no Johnny Appleseed Park.

Há autores que defendem que Johnny Appleseed foi um dos primeiros divulgadores do vegetarianismo nos Estados Unidos.

Referências

Kerrigan, William. Johnny Appleseed and the American Orchard: A Cultural History. Johns Hopkins University Press (2012).

Holub, Joan. Who Was Johnny Appleseed. Grosset & Dunlap (2005).

Was Johnny Appleseed a Barefoot Vegetarian?

The Real Johnny Appleseed: Alcohol, not Apples

 

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Um corpo que padece

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Parei de andar tem alguns meses, logo que meu corpo assumiu o controle da minha vida

(Arte: Mindcage, de Rodrigo Aviles)

“Continuo sem me mover e só consigo pensar na última vez em que fiquei em pé” (Arte: Mindcage, de Rodrigo Aviles)

Acordei um dia e percebi que meu corpo já não era meu. Tentei me movimentar na cama e não adiantou. Eu pertencia a ele, mas ele não me pertencia. Então continuei deitado observando o teto em meio à escuridão plangente. Havia traços disformes e oscilantes. Não! Mais do que isso! Uma imundície densa e clara que me lembrou aquelas medonhas bactérias que vi nas aulas de biologia na adolescência.

Eu nunca tinha reparado como o forro podia ser tão sujo. Acho que concentra a medula da nossa podridão. Ou será que era minha imaginação? Talvez eu fosse a própria bactéria, agraciada com uma visão panorâmica de mim mesmo. Vai saber! A verdade é que minha respiração continuava fétida e ruidosa. Como era horrível! Meu nariz simulava um aterro sanitário, espalhando chorume a cada expirada. E o que escorria dele eu nem sentia ou via. Afinal, desse espetáculo repulsivo que usava meu corpo como palco, fui relegado a mero espectador.

Como me esforcei para silenciar minha mente. Claro que não consegui! Fechei os olhos por alguns minutos e a temperatura do ambiente caiu para cinco ou seis graus Celsius. Tremi mais de ódio do que de frio. Eu estava coberto com um edredom branco, velho e encardido, com algumas manchas amareladas – rodelas de mijo que o maldito do gato do vizinho deixou de presente quando invadiu meu guarda-roupas. Que lazarento!

Tudo bem! Logo esqueci do bichano e quis me levantar para dar uma lição na mãe natureza. Como eu queria arrastá-la pelos cabelos. Quem sabe a cada chumaço arrancado ela subisse um grau de temperatura. Com 15 chumaços, eu a deixaria parcialmente careca e teria 20 ou 21 graus. E que vitória! Ainda poderia usar aqueles cabelos para fazer um espanador ou uma pequena cortina para um teatrinho de bonecos.

Rinite, bronquite e sinusite, sinusite, bronquite e rinite, difícil descobrir quem queria me ferrar mais. Bah! Quero enganar a quem? Fumei mesmo! E fumei muito! Chegando a quatro maços por dia! Eu era uma chaminé mais eficaz do que qualquer Maria Fumaça já vista. Sou o maior colecionador de doenças pulmonares que este mundo desconhece. Eu deveria estar no Guinness Book! Segurando o meu maior troféu, o único pulmão que me restou, tão preto que parece sobejo de carvão pós-churrasco.

E daí? Meus dentes eram tão louros, e meu hálito tão fedegoso que eu poderia fazer cosplay do Beetlejuice. Eu adorava jogar fumaça na cara dos outros, principalmente de quem desprezava fumantes. Eu chegava pertinho, como quem não queria nada, concentrava bem a fumaça e a soltava bem na hora que alguém abria a boca para falar alguma coisa. Daí era só falsear expressão de constrangimento – um par de olhos arregalados, uma respirada profunda e uma inclinada de cabeça, pedir desculpas e me afastar. Me diverti muito quando não existia ambiente para não fumantes. Ah! Deixa pra lá…Não quero mais falar disso!

Olhe! Nunca tinha reparado como o forro ganha desenhos tracejados na madrugada. São como lombrigas abjetas que dominam os bastidores da casa. Acho que também sou uma porque já não sinto mais minhas vértebras. Me resumo a uma matéria modorrenta e estiolada. Quem sabe tudo que vejo e desprezo seja em alguma proporção uma representação de mim mesmo.

Fiquei imaginando quantos bichos tétricos e horrendos não habitam este lugar noite após noite. Aposto que se eu derrubasse tudo encontraria centenas de animais sem nome, jamais catalogados. Seres que só existem por poucas horas da madrugada, quando confundimos realidade, sonho e pesadelo. Pode ser que se alimentem de esperanças, devaneios e reflexões prolongadas.

Certo! Continuo sem me mover e só consigo pensar na última vez em que fiquei em pé. Me parecia tão irrelevante, inútil. “Cuidado com a coluna, postura ereta, um passo após o outro”, quanta tolice! Eu só queria sentar e deitar, deitar e sentar. Talvez eu tivesse nascido para ser um tatu-bola. Só que rolar também exige tanto esforço que sinto calafrios só de imaginar. E a pressão abdominal na hora de girar? Triste e dolorosa! Ser uma lesma é igualmente desprezível porque sou impaciente e quero tudo na hora. Bom, não me sinto representado por nenhum animal, racional ou não.

Como gosto de comida! Me alimentei tão mal a minha vida toda e isso me proporcionava o mais insólito dos prazeres. Onde havia alguém se alimentando corretamente, eu me aproximava e sentava ao lado. Queria que a pessoa ficasse incomodada com a minha presença. Eu era um despertador de reações sorumbáticas. Eu queria chocá-la, vê-la siderada pelos meus maus hábitos.

“Isto! Este sou eu! E sou contra tudo aquilo em que você acredita. Estou aqui como a prova cabal de que o mundo não pertence a vocês. A ditadura da saúde não vai prevalecer. Ainda somos maioria e não seremos derrotados. Eu não permitirei! Nunca! Nunca! Veja! Olhe o tamanho dele, quanta gordura! Pedi que a atendente colocasse mais 200 gramas de bacon e 200 gramas de queijo cheddar. Quanto mais industrializado, melhor! Exigi o triplo de gordura trans! Observe! Observe o óleo escorrendo pelas rebarbas do meu lanche. Tem tanto óleo que poderemos fritar batata dentro da minha boca depois que eu comê-lo. Você aceita?”, sugeri, exibindo meus dentes saburrentos e caramelizados pelos churros que comi antes como aperitivo. Chocada, a moça ao meu lado na praça de alimentação levantou-se e foi embora sem dizer palavra.

Atividades físicas? Eu as desprezei desde o primeiro dia que as vi! Em qualquer lugar por onde eu passasse, se alguém me convidasse para me exercitar, eu não pensava duas vezes antes de mandar às favas. Que desaforo! Para os diabos com essa baboseira! Viverei e morrerei como quiser! Para que ficar em pé, caminhar ou correr? Odeio tudo isso com todas as minhas forças! Não acredito nem mesmo que fomos feitos para andar! De quem foi essa ideia? Tomara que o morfético tenha morrido brutalmente!

Pensando em bípedes e quadrúpedes, como eu adorava carne! Comia mais de 15 quilos por semana, até que contraí aterosclerose. Beleza! O que está feito está feito. Só que não há como negar que foi uma das melhores fases da minha vida. Quando eu andava pelo centro da cidade, as pessoas achavam que estavam próximas de um açougue ou matadouro. Não! Não havia nada do tipo por perto. Era a fragrância natural exalada pelo meu corpo. “Que cheiro de carne crua, de onde vem isso?”, “Nossa! Que fedor de vaca morta!”, “Acho que tem um açougue novo por perto”, ouvia.

As bebedeiras constantes também marcaram a minha vida. Claro! Eu dizia que era um socialzinho. Haha! Bobo de quem acreditasse. O que eu bebia três vezes por semana era o que muitos não consumiam em um mês. Eu precisava ser bom no que fazia. Por isso descobri um método eficaz para ampliar a minha tolerância ao álcool. Claro que não vou dizer qual é! Sim! Fui bem longe, tão longe que meu fígado não teve condições de me acompanhar. Hoje vivemos em lugares separados.

Agora me veio à mente as lembranças da minha transformação. Parei de andar tem alguns meses, logo que meu corpo assumiu o controle da minha vida. Se manifestava sobre onde queria ir e quando. Tão caprichoso, genioso! Caso não gostasse da ideia, ele travava como um brinquedo com pilha gasta. Será que é vingativo? Pois é! Como pode ser tão odioso? Na semana passada, permitiu pela última vez que eu movimentasse a perna direita e o braço esquerdo.

Continuo observando o forro, atento a duas lagartixas que se alimentam de um besouro. Apoiado sobre a janela aberta, o gato endiabrado do vizinho, com as orelhas mirando a lua cheia, lambe as próprias patas e as observa. Me recordo do Escaravelho do Diabo, tão valioso e tão inútil, assim como é a vida para tanta gente. Me sinto cansado, alheio ao meu corpo. Meus olhos se fecham e reconheço que não sou mais humano, somente presa de quem fui predador. “Que o teu corpo não seja a primeira cova do teu esqueleto”, escreveu Jean Giraudoux no livro Notes Et Maximes, Le Sport, de 1928.

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O garotinho que acreditava que sua casa era uma cidade

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Brincando entre um cômodo e outro, ele simulava que tinha percorrido quilômetros

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Seus pais se fantasiavam à noite e o levavam para percorrer a Rua John Kennedy (Foto: David Arioch)

Conheci um garotinho na minha adolescência que acreditava que sua casa era uma cidade, sua rua um estado e Paranavaí um país. Seu nome era Natanael e ele era tão criativo que nominou os cômodos de sua casa como se fossem ruas. Um dia sentou no chão, fez plaquinhas a partir de caixas de papelão e as fixou nas paredes.

Havia a Rua Leão Mágico, Rua Peter Pan, Rua Pequeno Polegar, Rua Pinóquio, Rua do Gato e do Rato e Rua Três Porquinhos. E todas as plaquinhas que cintilavam no escuro por causa da tinta fosforescente traziam uma ilustração. Natanael achava importante mostrar quem eram os homenageados. E se alguém o perguntasse o porquê, ele justificava com grande facilidade.

“Por que você colocou o nome de Leão Mágico neste corredor aqui entre a sala e o seu quarto?”, questionei um dia. Então respondeu que o leão era o maior e mais forte guardião da casa e, como ele tinha o poder de desaparecer e reaparecer onde quisesse, Natanael sempre estaria seguro, assim como seus pais.

Brincando entre um cômodo e outro, ele simulava que tinha percorrido quilômetros, atravessado bairros, estradas rurais e colhido frutas no campo enquanto um ventinho fresco acariciava seu rosto. As fantasias de Natanael eram incentivadas pelos familiares.

Depois de estudar física e eletromecânica, o pai construiu um ventilador especial que simulava o som e a intensidade natural do vento. Já a mãe criou algumas pequenas árvores artificiais e aromatizadas em uma velha despensa e, sobre os galhos que balouçavam como se fossem reais, todos os dias pela manhã ela prendia frutas como maçãs, peras, laranjas e mangas, as preferidas do filho.

As paredes foram pintadas por um tio artista que morava no Rio Grande do Sul e veio a Paranavaí para criar um cenário inspirado na obra Campos de Papoula, do impressionista Claude Monet. Natanael sorria tanto no meio daquele cenário pastoril que sentia até as beiradinhas da boca formigando.

Ele girava em torno das pequenas árvores, se acocorava em um canto, sobre um piso coberto por uma camada grossa de terra que garantia mais realismo ao ambiente, e comia um pedaço de fruta com tanto anelo e satisfação que parecia carregar o que existe de melhor no mundo dentro de si mesmo. Era apenas uma criança, mas dotada de um tipo de sensibilidade encontrada em uma pessoa entre milhões.

Natanael tinha cabelos escuros e lisos, uma pele jamais tocada pelo sol e os olhos grandes, redondos e escuros como jabuticabas gigantes. Vez ou outra, o próprio riso o levava às gargalhadas e quando ele exibia os dentes o ambiente ficava mais iluminado. Sempre descalço, mostrava com orgulho as solas avermelhadas e encardidas dos pés.

Para criar novos cômodos na casa, os pais reduziram o próprio quarto a 1/3 do tamanho original. Também diminuíram a sala e a cozinha. Tudo era feito com a intenção de expandir o mundinho de Natanael que chegava a passar meses dentro de casa. “Hoje vou te levar até a Praça dos Pioneiros pra você brincar no parque. Que tal?”, revelou o pai numa surpresa matutina de sábado.

O homem arqueou os braços formando uma cadeirinha e pediu que Natanael subisse a bordo, escorando as costas em seu peito. A mãe entregou a ele um volante do tamanho de um pires e o pai simulou com a boca o som do ronco de um motor. Reproduziram até os solavancos das lombadas, fazendo o garotinho rir e agarrar o braço do pai como um animalzinho protegido pelo tronco de uma sequoia.

A Praça dos Pioneiros de Natanael era um quarto com escorregador, gangorra, balanço e gira-gira. Todos os brinquedos, tornados os mais belos em seu ideário meninil, foram feitos com peças baratas compradas em um ferro-velho. E sobre sua cabeça, o que mais o emocionava e impressionava, entre tudo que possuía, não era nenhum brinquedo, e sim um sol giratório feito de papelão que ficava suspenso no ponto mais alto da área interna da casa.

Conforme o pai ou a mãe puxava uma cordinha, a lírica réplica sorria e piscava para Natanael que se sentia “quentinho” diante dele apesar da ausência de luz solar. “Por que o sol não queima o teto, mamãe? E por que ele nunca se põe? Será que não sente falta da casa dele?”, inquiriu. A mãe respondeu que aquele era o Solzinho, filho do Sol, e se mudou para a Terra para crescer junto com ele. “Quando o Solzinho for grande, ele também vai ter que partir. Enquanto isso vocês podem ser grandes amigos”, comentou. Natanael ficou em silêncio.

Ele amava tanto o sol que muitas das suas roupas traziam desenhos com as mais diferentes representações da estrela. Até mesmo o teto do seu quarto tinha um sol próprio que resplandecia na escuridão noturna como uma paródia prodigiosa da lua de de Le Voyage dans la Lune, de Georges Méliès.

Com o pôr do sol, Natanael saía de casa para brincar no quintal. À noite, depois de muito tempo, uma vez o encontrei chorando debaixo do pé de manga, reclamando que não entendia porque o “Sol Maior”, aquele que traz a alegria do dia, não gostava dele. “O ‘Sol Maior’ deixa tudo brilhando. Ilumina tanta coisa, menos a minha vida”, reclamou. Apesar da casual melancolia, sempre melhorava com o despertar do dia.

Quando Natanael ficava muito triste, seus pais se fantasiavam à noite e o levavam para percorrer a Rua John Kennedy. Criavam histórias quiméricas sobre seres fantásticos que surgiam com o poente, protegendo pessoas e animais. Para cada quadra, o garotinho dava o nome de uma cidade. “Alto Paraná, Nova Esperança, Presidente Castelo Branco, Mandaguaçu, Maringá, Sarandi…”, dizia, usando como referência um mapa do Paraná que guardava embaixo da cama.

Às vezes, ia além, atravessando o centro e dezenas de bairros, despertando em seu mundo diminuto a sensação de um desbravador atravessando países e continentes. Numa manhã fria e escura de inverno o levaram para conhecer o Bosque Municipal. Natanael ficou chateado porque os animais não apareceram.

Sem saber o que fazer, seus pais o chamaram para ir embora, preocupados com a previsão de que o sol logo despontaria. De repente um macaquinho-prego se aproximou, deu cinco piruetas e guinchou. Lágrimas escorreram pelas maçãs de Natanael que deu ao lugar o apelido de Amazoninha.

Após o aniversário de nove anos, o garotinho teve a oportunidade de ver o sol a céu aberto pela primeira vez. Seus pais conseguiram economizar dinheiro o suficiente para comprar uma roupa especial que o cobriu dos pés à cabeça, evitando as severas agressões do sol.

Hirto, Natanael assistiu extasiado a luz natural que o rodeava. Ajoelhou no quintal de casa por alguns minutos, se levantou e correu em torno das mangueiras e da jabuticabeira. Empolgado, encostou as mãos protegidas por luvas em todos os pontos onde a incidência da luz solar era maior. “Acho que o sol tá começando a gostar de mim. Hoje é o melhor dia da minha vida!”, gritou, acompanhado por Dino, um cãozinho mestiço e serelepe.

Menos de um mês depois, Natanael foi diagnosticado com melanoma metastático, um câncer de pele associado à xerodermia pigmentosa, doença que o acompanhou desde o nascimento e o impedia de se expor ao sol. O garotinho recluso faleceu em casa antes de completar dez anos. “Será que o leão mágico não vem hoje?”, brincou, exprimindo um sorriso fragilizado.

Quando a morte se aproximou como um sono sempiterno, o sol reluziu na janela. Seus pais abriram a cortina e ele sentiu o “quentinho” que pousou sobre a ponta do dedinho. “É talvez o último dia da minha vida. Saudei o Sol, levantando a mão direita, mas não o saudei, dizendo-lhe adeus, fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada”, escreveu Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) em Poemas Inconjuntos.

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Um assalto no cemitério

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Quando me despedi, Noé veio atrás de mim, deu dois toques em meu ombro e fez um convite

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Eu estava no Cemitério Municipal de Alto Paraná conversando com um desconhecido chamado Noé (Foto: Reprodução)

Em um dia normal, ainda distante do Dia de Finados, eu estava no Cemitério Municipal de Alto Paraná conversando com um desconhecido chamado Noé. A curta distância da entrada, falávamos sobre vida e morte enquanto poucas pessoas entravam e saíam do lugar.

O clima seguia ameno e o sol não tinha despontado naquela manhã, me fazendo observar tudo à minha frente como se eu estivesse diante de uma pintura gótica, onde a pouca luminosidade enaltecia as sombras e evidenciava de maneira insólita túmulos, cruzes, pessoas e animais que compunham aquele cenário tipicamente cristão.

Por um momento, esfreguei meus olhos e percebi que o fato de tudo transparecer maior não era ilusão, mas sim uma manifestação temporária da natureza, capaz de apequenar ou engrandecer os seres humanos das mais diferentes formas, simplesmente manipulando o clima, o tempo e o senso espacial.

Notei que tinha chovido há alguns dias e as árvores que envolviam o cemitério exalavam olência de casca e raízes, numa perfumaria mesclada que confundiria até os melhores boticários. Uma delas, vez ou outra balouçava os galhos e gotejava sobre a minha cabeça, como se quisesse me alertar sobre algo.

Eu apenas esfregava as mãos sobre o cabelo pontualmente úmido e continuava a ouvir Noé relatando suas aventuras quando viajava a pé por estradas de terra, dormindo sobre túmulos de cemitérios abandonados. Uma vez, amanheceu com as falanges da mão de um cadáver apoiada em seu peito. Nunca soube como aqueles ossos foram parar sobre seu corpo.

Num instante de silêncio, ouvi o canto de um surucuá com peito cor de bronze. Sobre uma cruz altaneira, ele parecia ensimesmado, me observando enquanto o nevoeiro velava seus pés. “Já ouviu falar em pragueira verduga?”, perguntou Noé, desviando minha atenção do pássaro. Respondi que não e ele explicou que é um verme que corrói placas de bronze sempre que a umidade do ar está muito alta.

Quando me despedi e caminhei em direção ao estacionamento, onde não havia mais ninguém, Noé veio atrás de mim, deu dois toques em meu ombro e fez um convite: “Cara, bora entrar lá dentro pra catar umas placas de bronze. Deve ter algumas muito boas ainda. Vamo aí?” Espaventado, não acreditei no que ouvi. Ele insistiu na oferta e recusei prontamente.

Sua catadura mudou na hora. O semblante sereno e ponderado foi substituído por um olhar fulminante e um riso vil. Noé inclinou a cabeça em direção aos próprios pés e declarou com sorriso sardônico: “Tá certo! Mas tenho um presente pra você. Chamo de filosofia da pólvora. Ela queima instantaneamente, permitindo um novo tipo de compreensão da vida.”

Inerte, assisti Noé exibir um revólver de calibre 38 enrolado em um pedaço de flanela alaranjada dentro da mochila. Sem titubear, ordenou que eu entregasse os R$ 2 mil guardados dentro da minha carteira. “Não tenho esse dinheiro na carteira. De onde tirou essa ideia?”, perguntei. Ele disse que teve uma visão de que alguém com o meu perfil chegaria ao cemitério pela manhã carregando R$ 2 mil. Abri minha carteira e mostrei que eu tinha R$ 200.

Inclusive coloquei o dinheiro sobre uma mureta e lancei minha carteira a seus pés para que ele a checasse. Irritado, Noé mirou o revólver em minha direção. Não corri nem ameacei atacá-lo. Simplesmente mantive os olhos em sua direção enquanto minhas pernas pareciam se dissolver, querendo se entranhar no solo úmido e moscado. “Quem sabe eu me torne algo que brote da terra ou desapareça como num rastilho da própria pólvora que me invade”, pensei antes de me perder num vácuo onde existência e inexistência transpareciam igualmente insones.

Noé acionou o gatilho, mas não havia balas; nem ele sabia disso. Correu até a margem da estrada, entrou em um Santana Quantum preto, estilo carro de funerária, e desapareceu. Meus R$ 200 continuavam imóveis sobre a mureta onde a brisa movia tudo menos as notas. Peguei minha carteira, o dinheiro, fui até o aterro sanitário perto do cemitério e entreguei o dinheiro às crianças que procuravam algo aproveitável entre os detritos. Na mesma semana, li no jornal que Noé retornou ao Hospital Psiquiátrico Nosso Lar, de Loanda.

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A tempestade de fuligem

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Ela era artista e obra, uma autora travessa que aprendeu a se guiar pelo vento

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Escura e minúscula parecia livre para fazer o que quisesse no seu mundo corrente (Foto: Reprodução)

Foi num dia de clima ameno que cheguei em casa no final da tarde e encontrei a garagem e as roupas no varal cobertas de fuligem da queimada de cana-de-açúcar. A forma como se moviam pelo espaço me dava a impressão de que eu estava diante dos vestígios de uma tempestade caliginosa, flexuosa e suja.

A fuligem serpentava pelo ar de forma zombeteira. Quando eu tentava tocá-la, ela desviava com agilidade e se fixava em alguma coisa que ingênuo eu me esforçava para proteger. Havia sujeira por todos os lados. Sem constrição, a fuligem grafitava tudo que pelo caminho encontrava.

Ela era artista e obra, uma autora travessa que aprendeu a se guiar pelo vento. Podia ser tocada em sua minúcia, mas nunca possuída, porque depois que nascia a mais ninguém ela pertencia. Escura e minúscula parecia livre para fazer o que quisesse no seu mundo corrente.

Meu carro branco e asseado ficou encarvoado quando a conheceu. Sem condições de se mover, testemunhou o vento especioso transportando tanta fuligem que até o sol desapareceu atrás das sombras massificadas de imundície. O brilho da lataria sumiu, embaciado pela soberania malemolente da falsa plumbagina.

Esfreguei o dedo no capô e notei uma mixórdia de cinzas e grafite de baixa qualidade que se desvaneceu sob o meu indicador direito. Para minha surpresa ainda preservava o aroma de cana-de-açúcar crestada. Repousando no seco, ela se arrastava como alguém que engatinhava. E agarrada ao úmido ou molhado, a fuligem se dissolvia, criando desenhos nem sempre incompreensíveis ou vazios em sentido.

No centro de uma camiseta branca que brandia sobre o varal, vi o adunco formato de uma mão diminuta e estriada. Tinha até unhas carcomidas, e algumas eram mais encardidas que as outras. Cheguei a crer que a fuligem possuía sua própria memória, uma lembrança perene do momento em que se desprendeu da cana-de-açúcar para sumir na imensidão do céu e da aragem outonal.

Talvez fosse a mais depreciativa das Fênix, já que ela renascia das cinzas e quase como cinzas, sem o direito de transformar-se em algo belo, bom e frutuoso que as pessoas pudessem gostar de assistir ou aspirar. Rebento do palhiço de cana, nasceu feinha e sem motivação existencial.

Gestada no borralho, a fuligem percorria dezenas de quilômetros até chegar ao seu destino – residências da área urbana, inclusive de pessoas que nem sabiam que ela existia. Aquela era sua sina, a curta vida de quem despontou casmurrada pela queimada. Não a culpo pela indisciplina. Deve ser horrível acordar sentindo algo quente te obrigando a partir.

Mergulhei dentro da minha mente e assisti seu primeiro voo, tímido e lânguido. Soprada para longe, obedeceu sem questionar a ordem natural das coisas. Apesar de tudo, sentiu o frescor remanescente do verde que se extinguia a dezenas de metros de distância do solo. A fuligem se esforçou para chorar, vendo-se tão turva e uniforme quanto insignificante. Se contorceu no ar, mas de nada adiantou. Relegada a uma existência estéril, era mais seca que a mais contumaz das estiagens.

Encolerizada por não ter direito a nada, e ciente de que não duraria mais do que horas e, com muita sorte, alguns dias, se insurgiu contra o seu fado. Fez um acordo com o vento, prometendo reverenciá-lo como um deus se ele a ajudasse a ir o mais longe possível em sua zaragata. Ele concordou.

Depois de se transformar em tempestade, a aragem a arrastou. Com sua força nímia e sobranceira, condensou toda a fuligem do canavial, criando uma pequena e turva réplica da lua. Num percurso de dezenas de quilômetros, a esfera se desfez e seus fragmentos seguiram pelas mais diferentes direções – atravessando pastos, lavouras, vilas, distritos e cidades da região de Paranavaí.

Naquele dia, a fuligem invadiu a Rua John Kennedy, cruzou o céu da minha casa e deixou centenas de vestígios indesejáveis, acompanhados de um som cicioso que imitava o tinir dos facões. O aroma de cana-de-açúcar ainda persistia. E por um descuido, enquanto eu decidia o que fazer, a fuligem entrou no meu nariz e eu a inalei. Mais tarde senti uma queimação no peito. Tive a impressão de que algo insólito estava vivo dentro de mim e se movendo.

Fui ao médico no dia seguinte e na mesma semana fiz alguns exames. Ele me mostrou que havia uma mancha estranha que se distendia sobre um dos meus pulmões. Não nego que senti um misto de preocupação, raiva e tristeza. “Tenho quase certeza de que são vestígios de monóxido de nitrogênio, dióxido de nitrogênio, dióxido de carbono e amônia. Precisamos cuidar disso, porque senão rapidamente pode virar asma, câncer de pulmão ou até peniano”, alertou o pneumologista.

“Senti a morte despedaçar-se de encontro à minha cabeça, como se um bólide houvesse caído do espaço e fosse escolher justamente o meu crânio para campo de pouso”, escreveu Campos de Carvalho em “A Lua vem da Ásia”. Na segunda e na terceira bateria de exames, realizadas no mês seguinte, não havia mais nada em meus pulmões. Então me recordei que 15 dias antes um prolongado espirro me proporcionou uma ímpar sensação de alívio. E o que saiu do meu nariz não era claro como a água, mas turvo como o vácuo da inexistência.

Chegando em casa, deitei na cama e percebi através da janela que do outro lado repousava uma nova mancha de fuligem na parede – parecia uma sarça ardente. Caí no sono, pensando apenas em outra passagem de Campos de Carvalho. “À noite a lua vem da Ásia, mas pode não vir, o que demonstra que nem tudo neste mundo é perfeito.”

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Dio, a descoberta do bombachinha

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Me surpreendi ao ver no quintal um gavião-bombachinha empoleirado no galho da jabuticabeira

Vivia solto, percorrendo todo e qualquer espaço que lhe agradasse ou atiçasse sua curiosidade

Eu tinha oito ou nove anos. Cheguei em casa e me surpreendi ao ver no quintal um gavião-bombachinha empoleirado no galho da jabuticabeira. Ele era filhote e minha mãe o encontrou ferido nas imediações de um terreno baldio. Cuidou dele e logo ele se recuperou, mas não quis partir. Vivia solto em casa, percorrendo todo e qualquer espaço que lhe agradasse ou atiçasse sua curiosidade. Sua penugem plúmbea contrastava com o céu claro em dias quentes. Eu dizia que ele era o senhor da chuva porque suas penas acinzentadas eram como o firmamento nuvioso. Sempre que alguém me perguntava porque Diodon tinha as penas próximas do pé direito alaranjadas, eu repetia a mesma história que inventei:

“Num dia de pouca claridade ele voou tão alto que o Sol ficou com raiva e apareceu de repente queimando apenas uma pequena porção de suas penas. O susto foi tão grande que até seus olhos azuis mudaram de cor – uma lembrança sem fim de sua teimosia.” Dio era tranquilo e silencioso, porém não gostava de interagir com outros animais. Apenas os assistia à distância, como se do galho onde repousava observasse os súditos de seu reino. Tinha um olhar inquiridor e ao mesmo tempo singelo e lhano. Não era capaz de caçar, então recaía sobre nós a responsabilidade de alimentá-lo com carne moída com carbonato de cálcio em pó.

A primeira vez que ele subiu no meu dedo, senti cócegas. Quando comecei a rir, Dio abriu o bico e emitiu um guincho oxítono e estiolado. Tive a impressão de que ele quis retribuir minhas gargalhadas à sua maneira. Conforme Diodon crescia, meus dedos se tornaram insuficientes para resguardá-lo, e ele decidiu se aninhar em meu braço e ombro, principalmente perto do pescoço, onde aprendeu a me cutucar sutilmente com as garras. Sobre a minha espádua, Dio sempre chamava a atenção de curiosos no centro de Paranavaí. Vez ou outra abria as asas como um leque, reafirmando sua imponência. Seus olhos estalados me davam a impressão de que sua visão atilada contemplava tudo que o cercava, a exemplo de sua audição. Nada passava despercebido, nem mesmo uma folha solitária arrastada pela brisa para dentro de uma boca de lobo.

Ocasionalmente ele se encolhia na presença de estranhos, velando parte do corpo atrás de mim. Era inevitável sentir cócegas e gargalhar ao perceber seu bico ruço ponteando a minha cabeça. Então ele movia os pezinhos à esquerda, até tocar meu deltoide, e me observava com atenção, já ignorando as visitas que ele encarava como intrusão. Apesar do estranhamento que durou meses, os poodles Happy e Chemmy já não eram mais vistos por Dio como ameaças. Ao analisá-los, seu comportamento mudou consideravelmente. Me recordo quando flagrei o caritativo Chemmy lambendo as penas de Diodon. Silencioso, o bombachinha mirava o bico em direção ao céu índigo com ar contemplativo.

Naquele final de tarde, assim que o estrepitoso Happy se aproximou para lamber seu bico, Dio não se posicionou para bicar seu focinho como de costume. A verdade é que não se importou. Talvez nem tivesse notado o que aconteceu e continuou admirando a amplidão celeste, abstraído da terra e lançado aos céus por onde flutuava sob sonhos maviosos como suas penas. Happy estranhou a passividade do gavião e o examinou com expressão exultante e enleada. Os poodles recuaram quando o bombachinha agitou as asas e caminhou até o quintal, em direção à jabuticabeira. Subindo de galho em galho, chegou ao topo. Hesitou por quase um minuto e de repente saltou com as asas abertas.

Durante o voo, Dio guinchava com tanta excitação que chamou a atenção de vizinhos e estranhos que passavam pela Rua Artur Bernardes. Ele estava feliz e até os mais airados percebiam isso. Era como se o céu desanuviado ganhasse um novo dono, um jovem animalzinho que descobriu através da observação que o sopro da vida também subsiste na concessão. Todos os dias à tarde ele voava no mesmo horário. Achando aquilo curioso, comecei a cronometrar a duração de seus passeios e incursões. Uma hora, duas horas, três horas, quatro horas. A cada semana que passava eu notava que menos tempo em casa Diodon ficava. Foi quando me dei conta que seu lar já não era um lugar, mas um espaço inestimado por onde suas asas balouçavam com a pureza de um cavalo alado.

Na última vez que o encontrei em casa, ele bicou carinhosamente a minha cabeça. Suas penas estavam mais vibrantes, assim como seus olhos rutilantes de citrino que me transmitiam astúcia e convicção. Diodon não era mais o miúdo bombachinha que chegou em casa ferido, desnutrido e com poucas penas. Embora não gostasse de abraços, permitiu que eu o envolvesse rapidamente entre os meus, sem sequer apontar suas longas e afiadas garras. O soltei e ele reproduziu o mesmo guinchado da primeira vez em que subiu em meu dedo. Em poucos minutos, Dio foi embora e nunca mais voltou. Não o procuramos porque não há o que encontrar quando a partida é motivada pelo anseio intempestivo de voar.

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Quando Vico planejou a própria morte

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Vico não se movia. Continuou estatelado no chão morno com os olhos fechados, parcialmente cobertos

Na Avenida Lázaro Vieira, o gato continuou nos seguindo, indo de um lado para o outro e roçando o rabo entre as minhas pernas (Foto: David Arioch)

Na Avenida Lázaro Vieira, o siamês continuou nos seguindo, indo de um lado para o outro e roçando o rabo entre as minhas pernas (Foto: David Arioch)

Não me esqueço de um amigo que quando éramos adolescentes planejou a própria morte. Naquele tempo eu o chamava de Vico porque ele era fã do filósofo italiano Giambattista Vico. “A razão é a consciência do ser, não o conhecimento dele. A partir do nosso raciocínio, podemos ter conhecimento da nossa existência, mas não o conhecimento total de quem realmente somos”, dizia meu amigo inquiridor que cada vez mais parecia o filósofo que tanto admirava.

Vico, assim como seu mestre homônimo, levava uma vida frugal. Rendido ao desejo do saber, pouco se interessava em socializar. Era casto por natureza e da vida aspirava o entendimento do que definia como pequenas coisas existenciais. Quando andávamos pelas ruas com a simples motivação de respirar o mundo e sentir a vibração da vida que habita a singeleza, parávamos, sentávamos no meio-fio e fazíamos anotações.

No centro de Paranavaí, algumas pessoas riam e de longe zombavam do nosso comportamento julgado extemporâneo. E nós ríamos também, sem precisar abrir a boca e mostrar os dentes. Afinal, a fantasia é a memória dilatada e para sorvê-la é preciso convidá-la. E a nós estrambótica era a deletéria incompreensão, menos digno de zombaria e mais de comiseração. Escrevíamos sobre pessoas, animais, plantas e objetos. E todas as constatações eram discutidas livremente em um grupo pequeno que fundamos através da internet com o nome de Caballaria.

Principalmente nos finais de tarde, observar a vida ao longo de uma hora era um exercício recompensador, porque era o único período do dia em que nos tornávamos alheios a nós mesmos, nossas fragilidades, falhas e cegueiras. “Olha esses moleques à toa! No meu tempo, não tinha essa vagabundagem juvenil”, comentou um senhor engravatado de meia-idade levando a amante para almoçar em um restaurante na Rua Manoel Ribas.

Observávamos sem reagir às críticas e piadas que ouvíamos com certa frequência. Não faria sentido estar lá para intervir, mas tão somente inferir. Do contrário, tudo deixaria de ter um propósito. A maior lição subentendia a missão de nos tornarmos aquilo que nos furtava a atenção. Num primeiro momento, éramos como voyeurs. E creio que aos olhos que nos miravam, não passávamos disso, embora não nos incomodasse sobretudo. A verdade é que logo não existíamos apenas dentro de nós, mas também fora, não mais reduzidos aos ocos limites da nossa canhestra individualidade.

Em pouco tempo o barulho trivial e a movimentação rotineira de carros, motos, caminhões e pessoas não mais equacionavam nossa concentração. Sentados, ouvíamos tudo se perdendo em meio a um barulho tão difuso e pleonástico que o próprio som cotidiano se tornava irrelevante. Não exigia mais respostas dos nossos sentidos. E ficávamos lá, atentos ao que chamávamos de Orquestra do Mouco, nada mais que o silêncio que soava como o próprio rearranjo da natureza. E assim como as coisas mais simples e implícitas da vida, ele ganhava formas ocasionalmente pouco perceptíveis.

Lugares, pessoas, animais e objetos requeriam de nós um exercício diário de elucubração e compreensão. Eles mudavam diante de nós e nós mudávamos diante deles, provando que um olhar desatento poderia nos entorpecer. Acreditávamos que se tudo que víssemos a cada dia transparecesse comum ou ordinário era porque nos faltava habilidade para ir além. Em síntese, o pouco da percepção corria o risco de se confirmar como um danoso arquétipo da insipiência, isso porque ele nos empurrava para as armadilhas das nossas limitações.

Numa dessas longevas observações, uma vez um filhote de bem-te-vi caiu em cima da minha mochila posicionada na calçada, atrás das minhas costas. Não vi nem ouvi nada, mas senti a repentina aragem que tocou minha nuca como um sopro. Quando me virei, um gato siamês estava prestes a abocanhar o filhote. Consegui afastá-lo com as mãos apesar da sua ruidosa resistência. Percebendo que o passarinho não apresentava ferimento, escalei a árvore e o coloquei novamente no ninho antes de partir.

Depois, caminhando perto da Igreja São Sebastião, notei que o farto felino continuava nos acompanhando e se ocultando entre os arbustos. Só que era barulhento demais para passar despercebido. Perto da Sanepar, ele pendurou na minha mochila, fugindo de um cão grande e mestiço, com características de rottweiler, que tentou atacá-lo. Então o cachorro recuou assim que Vico lhe lançou um grande biscoito canino. Ele sempre carregava petiscos para animais dentro da mochila.

Na Avenida Lázaro Vieira, o siamês continuou nos seguindo, indo de um lado para o outro e roçando o rabo entre as minhas pernas. E o cachorro maior veio logo atrás, remansoso e mantendo os olhos em nossos passos. Mais adiante, outros cães e gatos endossaram a marcha. Contei doze animais. De repente, para minha surpresa, um jovem no quintal da própria casa arremessou com violência uma grande manga verde contra nossos seguidores. Errou o alvo e atingiu Vico na cabeça.

Ele caiu de frente com o corpo estendido sobre o asfalto e os braços abertos. Vico não se movia. Continuou estatelado no chão morno com os olhos fechados, parcialmente cobertos pelos cabelos castanhos, e as mãos e pernas levemente raladas. Os cães começaram a uivar e os gatos se esfregaram na cabeça e no dorso de Vico. Desesperado, o agressor adolescente levou as mãos à cabeça e correu para dentro de casa.

Me aproximei do portão, bati palmas e vi o rapaz escondido logo abaixo da janela. “Você matou meu amigo, cara! Sua brincadeira tirou a vida dele! Como você atira manga na cabeça das pessoas que passam perto da sua casa? Qual é o seu problema?”, questionei energicamente. Dois cães se aproximaram da grade, como se quisessem invadir a casa. O garoto não respondeu, mas ouvi seu choro suprimido e ele balbuciando consigo mesmo que seu pai iria matá-lo.

No chão e cercado por animais, Vico ainda não se mexia. O cão grande e mestiço tentou empurrá-lo em vão com o focinho. Alguns curiosos assistiam de longe, indecisos em se aproximar. Cinco minutos após a queda, ele se levantou e sorriu apesar das escoriações e do galo na cabeça. Dei uma gargalhada e seguimos nossa caminhada.

Atraídos pela ração e pelos petiscos que vazavam por um pequeno furo proposital no fundo da mochila, os animais começaram a se dispersar quando perceberam que já não restava mais alimento. Subindo a Avenida Distrito Federal, notamos que a turma se foi – ficou apenas a dupla. Chacoalhei a minha mochila também vazia, onde eu guardava o caderno em um compartimento menor, e sorri. “Amanhã eles voltam. Eles sempre voltam”, comentou Vico.

O chamado dos animais

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Se transformaram em uma porquinha eufórica que grunhia e girava em torno do próprio rabo

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Era um porquinho landrace que percorria meu rosto com a língua (Arte: Cari Humphry)

Ainda tenho fresca na minha memória a lembrança da última vez em que comi carne. Me ofereceram um lanche, o que eu passava até meses sem comer, e aceitei. Afinal, era uma sexta-feira à noite. “Tudo bem, é só hoje”, pensei. Mordi sem pressa e sem o prazer de outrora o alimento que trazia uma variedade de carnes – filé de frango, hambúrguer e pedacinhos de bacon. Era enorme e mal cabia nas minhas mãos, embora elas não sejam pequenas.

Depois de comer, observei o papel branco que envolvia o lanche. O enrolei e o joguei na lixeira. Há muito tempo me acostumei a não comer demais porque não vejo sentido em ir além das minhas necessidades. Sentado, perdi o interesse em continuar lendo um livro que até então invadia meus pensamentos e divagações. Me senti inchado, não pela quantidade de alimento que ingeri, mas por algum motivador que acredito ser biologicamente inexplicável. De súbito, minha boca ficou azeda como se tivesse recebido uma dose de fel. Fui até o meu quarto, me olhei no espelho e não me reconheci. Meus olhos estavam translúcidos e dentro deles vi algo se movendo repentinamente, como que motivado por um descomedido desconforto.

Levei as mãos ao meu abdômen e notei que minha barriga chapada tinha se tornado irreconhecível, disforme e malemolente. Involuntariamente, se distendia numa ocultação criteriosa. Era incompreensível porque não comi tanto. Quando voltei a atenção ao meu rosto no espelho, havia alguns riscos carminados nas escleróticas. Fechei os olhos por um momento e quando os abri tinham se desvanecido. O mesmo aconteceu com as marcas que surgiram na minha barriga, lembrando toques de uma pata. “Que coisa mais estranha! O que está acontecendo comigo?”, me questionei assustado.

Desliguei o computador, apaguei a luz e deitei na cama. Eu estava cansado e o sono prosseguia distante do meu desejo. Fiquei observando o teto e notei que ele se movia aos poucos. Não poderia ser tontura porque minha noção espacial persistia precisa. Ao meu lado, eu enxergava tudo com exímia clareza. Assim que o teto se abriu, como se fosse deslocado de lugar, sem causar qualquer tipo de barulho, desordem ou sujeira, a chuva fresca se lançou diligente sobre mim. Me movimentei sobre a cama com a ligeireza de quem está sofrendo de espasmo hípnico. Em pé e hipnotizado pelo céu enluarado que iluminava meu quarto com uma luz cerúlea, continuei calado, inerte.

A beleza da madrugada outonal que ofertava um aroma variegado de folhas e flores foi ofuscada pelo miasma trazido por uma vaquinha voadora com focinho de porco e pés de galinha. Apesar de tudo, era um animal lindo na sua singularidade desarmônica. Me recordei das pinturas de Corine Perier e Chris Buzelli. A diferença era que elas não tinham cheiro de morte. Quando a vaquinha pousou ao meu lado, a pestilência se intensificou. “Nem bebo! Que bizarrice é essa? Será que estou pirando?”, refleti. Ela ficou me observando sem emitir som. Seus olhos se agigantavam e em seguida diminuíam. Parecia um coração pulsando. E o fedor só aumentando. De repente, deu um mugido misturado com cacarejo e grunhido. Então se inclinou para que eu massageasse sua cabeça.

Um deles pulou no meu travesseiro e começou a piar, como se quisesse alguma coisa (Arte: Dan Kosmayer)

Um deles pulou no meu travesseiro e começou a piar como se quisesse alguma coisa (Arte: Dan Kosmayer)

Antes que eu a tocasse, a vaquinha partiu da mesma forma que chegou – voando e lançando de suas mamas alguns jatos de leite encorpado misturado com sangue. Uma porção impactou sobre minha cabeça. Passei a mão e notei meus cabelos engordurados, com fedentina de coalhada e ferrugem. Respirei profundamente com olhos fechados, tentando restabelecer a serenidade, e quando os abri tudo tinha sumido, com exceção do cheiro de morte que na realidade era emanado do meu corpo, não da vaquinha.

Voltei para a cama sofrendo de indisposição estomacal – dava a impressão de que o lanche estava revirando meu estômago. Dormi menos de uma hora porque ouvi um barulho insólito que se repetia a cada cinco ou dez segundos. Incomodado, inclinei a cabeça por baixo da cama e percebi um bichinho úmido e morno acariciando a minha tez. Era um porquinho landrace que percorria meu rosto com a língua. No escuro, seus olhos cintilavam como se tivessem luz própria. Ele sorria e aquilo era intrigante.

Prestando muita atenção em mim, recuou sorrateiramente, como que arrependido. Tropeçou sobre as próprias patas e chorou. Suas lágrimas escorriam pelo focinho. Acuado num canto ao lado da porta, o medo destacava ainda mais a sua pele rosácea. Fiquei mais confuso e sobressaltado quando o porquinho me fez uma pergunta com voz titubeante: “Por que você comeu minha mãe?”

O questionamento não se repetiu e imaginei que eu estivesse delirando. Não respondi. Preservei o silêncio até a chegada repentina da ânsia de vômito. Pálido, vi minhas mãos tornadas diáfanas. Algo subia dentro de mim enquanto meu corpo esquentava e esfriava. Quando abri a boca, os pedacinhos de bacon se lançaram ao chão inteiriços. Se juntaram como se fossem magnetizados.

Em poucos segundos se transformaram em uma porquinha eufórica que grunhia e girava em torno do próprio rabo. Extasiado, o filhote se jogou sobre ela e, sôfrego, a lambeu. Os dois ficaram ali, juntos, tão próximos que tive a impressão de que dividiam a mesma respiração. Quando desviei os olhos rapidamente, eles desapareceram. Deitei na cama outra vez. Dormi por duas ou três horas até perceber um animal tocando as minhas costas. Era leve e tinha cheiro de quirera de milho e farelo de soja. Havia três pintinhos andando em cima de mim.

Um deles pulou no meu travesseiro e começou a piar como se quisesse alguma coisa. Ciscava tentando transmitir uma mensagem. Levantei e o observei subir pelo meu braço como se fosse uma ponte. Sobre o meu ombro, ele piava com ternura, se comunicando com os outros dois que repetiam o trajeto. Num rompante, a ânsia de vômito veio com tudo. De minha boca saíram alguns pedaços pequenos e inteiros de filé de frango que antes de caírem no chão ganharam a forma de um frango que voou por curta distância batendo as asas e fazendo uma balbúrdia gangosa.

 Somente um boi que se apresentou como Pastiche falou comigo (Arte: OuShiMei)

Somente um boi que se apresentou como Pastiche falou comigo (Arte: OuShiMei)

Os pintinhos saltaram sobre ele e os quatro correram porta afora, na escuridão amena da madrugada. Não fui atrás. Com os braços apoiados sobre a cama, assisti tudo sentado, com olhos combalidos e semicerrados. Extenuado, caí na cama e adormeci. Em sono profundo, me vi comendo o lanche da noite passada. A cada mordida, eu sentia a dor da finitude, o aroma ininterrupto da morte. Toda a tristeza diante do passamento era absorvida pelo meu organismo e corpo, fazendo-me experimentar pontuais calafrios.

Medo, ansiedade, estresse, impotência e agonia. Os animais mortos concentravam tudo isso em suas carnes que recheavam meu lanche, fazendo vibrar dentro de mim a aglutinação de uma energia negativa intempestiva e solene emanada pela certeza do definhamento. A dor atravessava a minha essência e me fazia assistir os instantes finais de bovinos, suínos, caprinos e aves. Muitos choravam antes da execução porque reconheciam que suas vitalidades foram inibidas precocemente.

A morte perfazia um caminho tortuoso que subsistia dentro de mim. “Veja a minha dor, sinta a minha dor. Um mundo com animais demais e vidas de menos. Um dia, os humanos vão sofrer como nós. A carne há de sobrar, mas não haverá a quem dar de comer. E assim o mundo vai apodrecer rendido aos excessos desenfreados da produção”, ecoava na minha mente uma voz que embora bem articulada simulava um sincretismo de sons de animais de várias espécies.

“Nasci por esses dias. Veja só o meu tamanho, como cresci. E amanhã já vou morrer porque assim quis o meu criador”, comentou um frango resignado dentro de uma gaiola plástica, antes de ter os pés decepados por um facão. Os mais ingênuos, que não sabiam de seu destino, batiam as asas em vão. Se feriam gravemente, mas lutavam pela liberdade com inocência e inaptidão, já que desconheciam outra realidade que não a do confinamento.

Em uma fazenda enorme a perder de vista, os porcos comentavam entre si que haveria um grande abate no dia seguinte. Um deles conseguiu escapar e revelar a trama aos outros animais encarcerados a 50 e até 100 metros de distância. “Fomos criados pra morrer! Pra morrer! Só isso! Nada mais!”, berrava um jovem porco desajeitado. Durante a madrugada os animais se reuniram e cavaram uma vala mastodôntica. Em sequência saltaram no cabouco e pediram que dezenas de cavalos da coudelaria os cobrissem com terra.

“Pelo menos vamos morrer com dignidade”, argumentou um dos porcos mais bem cotados da propriedade. Optaram por se matar porque acreditavam que perdiam a alma quando serviam de alimento aos humanos. No dia seguinte, todos estavam mortos – filhotes, jovens adultos e animais velhos, abraçados independente de espécie. Em frente ao enorme sepulcro improvisado havia uma frase riscada sobre a terra – “O antiespecismo é como uma vela resfolegando sob a chuva.”

Acordei mais uma vez quando ouvi um grito. Me vi entre grades sendo transportado sobre um caminhão. Procurei minhas mãos e não as encontrei. Olhei para baixo e percebi que eu não era mais um ser humano, a não ser pela minha própria consciência, condição psicológica e emocional. Fisicamente eu era um robusto boi preto ladeado por outros bois. A maioria mantinha-se em silêncio. Somente um boi que se apresentou como Pastiche falou comigo.

“Tá chegando a hora, amigo. Nossa jornada chegou ao fim. Pasto, confinamento e abate. É a nossa sina”, lamentou, projetando um mugido fúnebre e prolongado. De repente, todos ficaram em silêncio, com suas cabeças vultosas mirando as próprias patas. Ouvi um som estranho e uníssono. Era como um ritual que eu não entendia porque eu não era um boi de verdade.

Reconheci o peso da morte quando o motorista do caminhão perdeu o controle e caímos de uma ribanceira. Lá embaixo, onde o capim penetrava minhas narinas e invadia minha boca a contragosto, vi a carroceria quebrada e aberta. Ao meu redor, meus companheiros de viagem estavam mortos, inclusive Pastiche que trazia uma expressão de satisfação em meio à penúria. Havia um cheiro estupefaciente de sangue, estrume e ração à base de milho.

Com poucos ferimentos e escoriações, me levantei e corri pelo prado verdejante. Minhas orelhas altaneiras captaram o som oxítono de uma revoada de andorinhas. Continuei correndo sem parar, por uma terra infinita onde o ser humano jamais poderia me alcançar. Recém-despertado de mais um sonho, fiquei sobressaltado, com o coração disparado, sentindo em meus lábios sabor que parecia ser da minha própria carne. Enleado, vi que ainda repousava ao meu lado o papel branco do lanche, lembrança inolvidável de uma avalanche.

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