David Arioch – Jornalismo Cultural

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Diante do banheiro

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Experiências diante do banheiro de uma clínica de mastologia (Foto: Reprodução)

De manhã, fui ao mastologista entregar alguns exames que fiz nos últimos meses. Antes de ser atendido, senti muita vontade de urinar. Atravessei a clínica e, diante do banheiro, girei a maçaneta – a porta estava trancada. Havia uma pessoa lá dentro. Tudo bem! Me afastei e aguardei a minha vez.

Nesse ínterim, chegou uma mulher grávida acompanhada do marido. Me observaram suspeitosamente. Assim que um homem saiu do banheiro, ela se adiantou e, sem perguntar nada, entrou e trancou a porta. Não vi problema algum nisso, mesmo ansiando por usá-lo. Afinal, era uma mulher grávida. Eu poderia continuar esperando, mesmo intranquilo.

Em menos de minuto, o marido da grávida se afastou e continuou me analisando. Não movimentei minha cabeça ou olhos para retribuir a dúvida, curiosidade ou suspeita. Enquanto simulava minha atenção em ponto fixo, notei o marido se aproximando, retirando uma toalha de papel de um balcão a centímetros de mim e se afastando. Por poucos segundos, o vi caminhando em direção à sala de espera.

Continuei ali, imóvel, com semblante imperscrutável, sentindo-me tão fleumático que por pouco não me tornei uma extensão do balcão. Sem demora, o homem retornou. Ainda me observava. Não conseguia fingir que não o fazia. Fortuitamente se esforçava para fazer algum tipo de oposição a si mesmo. Talvez estivesse em conflito. Então sua esposa saiu do banheiro. Ela direcionou os olhos pra mim, sem que eu precisasse fazer o mesmo. Percebi sem qualquer esforço que eles me assistiam à direita e à esquerda. Ok!

Tive a impressão de que tentavam me comprimir com os olhos. Sem me comunicar, ignorei. Entrei no banheiro sem olhar para trás, e pareceu-me que havia algum tipo de surpresa nisso, pelo menos por parte deles que demonstravam não entender o que eu fazia ali. Enquanto urinava, senti o corpo mais leve, principalmente minha cabeça que parecia carregar o peso de olhos que não eram meus. Lavei as mãos, tirei minha blusa, ajeitei a barba e os cabelos. Atravessei o corredor e a segunda sala de espera sem mirar coisa alguma.

Notei alguns pares de olhos e caminhei até a primeira sala de espera, onde deixei os resultados dos meus exames sobre uma das poltronas. Depois que fui atendido pelo mastologista, pedi a recepcionista que me entregasse a guia original da solicitação de exames porque eu precisava apresentá-la no laboratório. Logo o casal dantes se aproximou. Quando o marido viu que eu estava me preparando para sair, apoiou o capacete em um dos braços e cordialmente sorriu, abrindo a porta do consultório para que eu partisse.

Written by David Arioch

September 21st, 2016 at 11:56 pm

Benílio, um tipo de Verlaine travestido de Rimbaud

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Como se feito de ironias, Benílio era visto por mim como um sujeito vivendo um paradoxo existencial

Benílio, que não aparece na foto, frequentava o Projeto Mais Cinema na Casa da Cultura (Foto: Amauri Martineli)

Benílio, que não aparece na foto, participava das discussões do Projeto Mais Cinema na Casa da Cultura (Foto: Amauri Martineli)

Já passei por situações muito incomuns e estranhas na minha vida e hoje vou relatar uma delas. Em 2008, comecei a coordenar um projeto de cinema na Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade. O público era modesto, mas bastante participativo, tanto que com o tempo estreitei contato com os frequentadores mais assíduos. Afinal, tínhamos em comum o amor pelo cinema e o interesse em discutir sobre o tema. Os encontros ocorriam às quartas-feiras, quando exibíamos algum filme fora do circuito comercial. Ao final, eu fazia uma análise e em seguida abria espaço para o público fazer perguntas. Foi assim até 2013. Era gratificante ver que até pessoas de outras cidades gostavam do projeto.

Em 2010, um rapaz a quem chamo de Benílio, para preservar a sua identidade, compareceu ao Mais Cinema. Na primeira vez em que participou, se mostrou bastante atento ao filme, a discussão e tudo que o cercava. Basicamente, um sujeito tranquilo, questionador, com bons argumentos e um humor sardônico. Algum tempo depois, Benílio começou a sumir e ressurgir durante as sessões de cinema. Parecia agitado e incomodado, o que contrastava com tudo que notei anteriormente sobre seu comportamento. A expressão ponderada, o olhar quiescente, foram substituídos por uma agitação frequente que o fazia se levantar da poltrona como se o estofamento estivesse dominado por percevejos.

Às vezes mudava de poltrona, até que sem observar lado algum abandonava o local com pressa, coçando os olhos com tanto vigor que mesmo ao longe dava a impressão de que o objetivo era esmagar o globo ocular com pontadas de dedo. Apesar disso, Benílio continuou frequentando o projeto. Sorridente e trocista, aparentava ser mais jovem do que realmente era. Andava sempre à vontade; de camiseta, bermuda e tênis ou sandálias. Mas ostentava um olhar amaneirado para compartilhar com pessoas de quem desgostava. Como se feito de ironias e de uma acidez vocabular inconstante, Benílio era visto por mim como um sujeito vivendo um paradoxo existencial.

Assim como na Gioconda de Da Vinci, seus olhos eram como uma antítese do sorriso, o que relevava mais intransparência e ardil do que insegurança. Com naturalidade dúbia, despertava reticência, principalmente sobre suas intenções e elucubrações durante as conversas. Jupiteriano, pouco se importava em transmitir clareza quando não simpatizava com alguém. Na realidade, fazia até questão de minar a conversa para afastar o interlocutor. Afeiçoado à arte clássica, ele desprezava com poucas ressalvas a arte contemporânea.

Por volta dos 20 anos, Benílio abandonou o curso de medicina da Universidade Federal do Paraná, mais tarde sendo relegado à pária por colegas, amigos e até familiares. Não se importava com as convenções sociais e as postulações de um mundo em que se deve viver sob a égide cronológica dos deveres. Parecia-lhe um despautério a ideia de que o ser humano deveria se limitar a estudar o suficiente para conseguir um bom trabalho, se casar, ter filhos, netos e falecer; assim não fazendo mais do que uma formiga obreira que percorre o chão nu transportando alimentos em horários estratégicos.

Seu nível de inteligência e cultura estava muito acima da média, o que era endossado por décadas mergulhado em livros, música e outras formas de arte. Um dia, me relatou alguns de seus conflitos amorosos com uma jovem com quem rompeu relacionamento de longa data. “Eis uma perda de tempo, uma relação que minora a alma em vez de alongá-la”, dizia. Em complemento e observação, citei que todo o nosso saber se reduz a aprender a renunciar nossa existência para podermos existir, segundo um aforismo de Goethe.

Ocasionalmente, Benílio me pedia carona na saída da Casa da Cultura. O deixei algumas vezes no cruzamento da Rua Manoel Ribas com a Avenida Paraná, no centro de Paranavaí. À época, eu dirigia ouvindo uma banda romena de rock chamada Travka que curiosamente falava de conflitos de identidade, do recrudescimento humano e da minoração da sensibilidade. Enfim, existentialisme par l’existentialisme.

Notei mais tarde que o rapaz era emocionalmente inconstante e por isso consumia com frequência medicamentos controlados. Solitário, tinha um pai aventureiro que há muito tempo se mudou para Rondônia. A mãe, com quem também pouco convivia, recebia visitas esporádicas do filho no Jardim Santos Dumont. Benílio morava sozinho em uma velha pensão na Rua Amapá, onde dividia o espaço com os mais diferentes personagens marginalizados. A maioria, pessoas que percorriam sob os ditames da penúria um chão de paralelepípedos tão maciço quanto a dor da invisibilidade velada por um sorriso frugal.

Um dia, eu corria pela Avenida Lázaro Vieira, no Jardim Progresso, quando ouvi Benílio me chamando. Olhei para o lado, ele sorriu e se aproximou de mim. Relatou que estava estudando Programação Neurolinguística (PNL) porque acreditava que as ações humanas são motivadas pelas próprias experiências, não pela realidade em si. “A mente e o corpo formam um sistema que a PNL ajuda a harmonizar, estimulando novas formas de pensar, sentir e agir. É um meio de minimizar conflitos entre o corpo e a mente”, comentou.

Na semana seguinte, após mais uma sessão do projeto Mais Cinema, Benílio pediu que eu o deixasse na Praça dos Pioneiros. Eram quase 23h, ele desceu do carro e começou a caminhar sozinho em torno da praça, sem se enfastiar com a solitude e a frágil iluminação precária e açafroada dos postes que atraíam somente insetos. Andou alguns metros e desapareceu no meio da quadra na outonal escuridão enevoada. Ignorava lados e direções, despreocupado em ser expulso da própria introspecção por sacomanos, ladrões, delinquentes ou vadios.

Como já fazia parte da minha rotina percorrer a cidade a trabalho, vez ou outra eu o via vagando sozinho pelos mais distantes pontos da área urbana. Nunca perguntei o que fazia. De qualquer modo, não era difícil perceber que Benílio não se importava em ignorar pessoas e deixar claro que sentia ojeriza pela superficialidade. Demonstrava grande amor por muitas conquistas humanas. Em contraponto, nutria indiferença e desgosto por tanta gente. Julgava o mundo como tornado doente e usava isso como justificativa da pontual ausência de empatia.

Uma vez, há alguns anos, eu e meu amigo Sobhi Abdallah fomos até a casa da mãe de Benílio, onde ele estava hospedado enquanto ela viajava. O objetivo era conversar sobre o roteiro e a pré-produção de um documentário baseado na vida de um eremita conhecido como Negão do Surucuá. Entre tereré e palavras, a tarde até que rendeu bem. Dias depois, Benílio me ligou avisando que precisávamos discutir novamente sobre o roteiro. Segundo ele, a reunião também havia sido acertada com Abdallah e meu amigo Amauri Martineli.

Quando cheguei ao local, estacionei o carro e estranhei que não havia nenhuma movimentação na varanda. De repente, Benílio gritou, pedindo que eu entrasse. Lá dentro, perguntei sobre os outros convidados e ele mentiu afirmando que eles não puderam comparecer. Após minutos, o rapaz se aproximou e me convidou para tomar café. Assim que coloquei os pés na soleira, perguntei o que ele estava preparando. “Não estou preparando nada. O café somos nós dois!”, comentou com naturalidade enquanto penetrava a massa escura de um pão preto com uma longa faca de cozinha. Em seguida, me observou atentamente os olhos, revelando um sorriso narcísico e pela primeira vez naturalmente mórbido.

Me afastei de Benílio, que não reconheci naquela figura tétrica e medonha. Contrariando todas as minhas possibilidades de reação diante de situação tão imprevisível e espantosa, expliquei tranquilamente que iria até o carro buscar o pré-roteiro do documentário. “Já volto. É rapidinho!”, argumentei sem titubear. Ele assentiu com a cabeça e continuou na cozinha. Caminhei a passos curtos e pesados, enojado, sentindo meu olhos queimando e minhas mãos suando. O enorme portão parecia a quilômetros de distância e suspeitei até que Benílio poderia tê-lo trancado. Então me preparei para saltá-lo se necessário. Questionei até se ele não teria deixado ao alcance das mãos uma arma de fogo, caso eu fugisse. Por bem, consegui abri-lo e lá fora senti o sol em todo seu esplendor me revigorando, me banhando com sua energia imperecível.

Por segundos, meus sentidos ficaram mais aguçados do que nunca. Ouvi cães latindo, mãe empurrando carrinho de bebê, homem estacionando carreta e duas crianças brincando de pular corda. Assim que entrei no carro, virei a chave e ouvi o som do motor, meu coração desacelerou. Parti com a sensação de que apesar de tudo o mundo ainda era o mesmo e estava lá para lucilar diante de meus olhos escuros. Nunca mais vi Benílio. Fiquei sabendo apenas que, assim como um tipo peculiar de Verlaine travestido de Rimbaud, foi embora para Rondônia tornar-se desbravador de coisa alguma.

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Psicopatia Tarantinesca

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Reservoir Dogs e a incursão por um mundo dissocial

Em Reservoir Dogs, Tarantino explora a violência e a ironia (Foto: Reprodução)

Em Reservoir Dogs, Tarantino explora a violência e a ironia da criminalidade (Foto: Reprodução)

Lançado em 1992, Reservoir Dogs, que chegou ao Brasil com o título de Cães de Aluguel, é o longa-metragem de estreia do cineasta Quentin Tarantino. A partir de imagens e diálogos tão violentos quanto irônicos, o filme propõe incursão a um universo onde criminosos se confrontam, motivados pela própria natureza.

É sempre bom lembrar que Quentin Tarantino se tornou cineasta tendo como principal formação os centenas de filmes que assistiu quando trabalhava como atendente de uma videolocadora. Justamente por isso, a sua primeira obra reúne heterogeneidade e cosmopolitismo, características que o acompanhariam por toda a filmografia da carreira.

Com influências que vão da cultura pop até o cinema alternativo, Reservoir Dogs conta a história de seis criminosos que não se conhecem e são contratados para praticar um grande assalto a uma joalheria. No entanto, durante o crime, a polícia chega ao local antes do previsto e na fuga um dos assaltantes é baleado e morre. Os sobreviventes, entre eles um gravemente ferido, fogem e vão para um galpão, onde aguardam a chegada do chefe da quadrilha. Enquanto isso, os bandidos trocam acusações sobre quem os delatou para a polícia.

Steve Buscemi e Harvey Keitel em cena antológica (Foto: Reprodução)

Steve Buscemi e Harvey Keitel em cena antológica (Foto: Reprodução)

No filme, a primeira cena em que discutem sobre a música Like a Virgin, da diva pop Madonna, funciona como uma ponte de alegorias. Cada personagem interpreta com extrema pessoalidade o significado da letra, denunciando traços da personalidade. Tarantino ousa ainda mais. Tanto que um dos criminosos cita uma canção como referência para a criação de uma metáfora que revela importantes informações sobre a história.

Sem se ater a linearidade, o cineasta mostra com requinte descritivo alguns fragmentos da vida dos bandidos. Aos poucos, o espectador percebe que a quadrilha reúne muitas das características inerentes a um ser humano aparentemente comum, seja sob uma perspectiva maniqueísta ou não. Nesses momentos, são destacados desde a complacência até a exasperação e a psicopatia – transtorno de personalidade dissocial que no filme só pode ser percebido de acordo com a ânsia do personagem.

Para o elenco, o diretor reuniu nomes de peso como Harvey Keitel, Steve Buscemi, Tim Roth, Michael Madsen e Chris Penn. No primeiro longa-metragem da carreira, Quentin Tarantino apresenta uma curiosa estética cinematográfica – enaltece os detalhes sem prejudicar a trama. Além de uma câmera testemunhal, o filme é pautado em uma narrativa agressiva e que combate o falso moralismo.

O autor deixa evidente sua opinião na obra: “Para uma mente criminosa, a vida é descartável como um copo.” Prova isso visualmente quando mistura – sem qualquer parcimônia – sangue, morte e comicidade, ratificando a banalização do “existir”.