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“Ô Seu Luiz, quer comprar milho?”
Uma história de furto de milho com crianças de três e nove anos
Há pouco tempo, o artista plástico Luiz Carlos Prates, morador da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, estava trabalhando no atelier no fundo de casa quando ouviu alguém o chamando em frente ao portão. Foi ver quem era e se deparou com dois garotos sobre uma carroça cheia de sacos de milho. Um deles gritou: “Ô Seu Luiz, quer comprar milho?”
O artista perguntou o preço e o garoto respondeu que cada saco custava R$ 15. “Achei o preço bom, até porque crio animais e preciso de milho para alimentá-los”, explica. Satisfeito pelo bom negócio, Luiz Carlos ficou intrigado no dia seguinte quando os garotos retornaram oferecendo para a sua namorada, Lindinalva Silva Santos, que mora na casa ao lado, um saco de milho por R$ 5.
“Estranhei porque o preço mudou muito rápido de um dia pro outro. Não consegui ver lógica nisso, mas deixei passar”, comenta. No terceiro dia, os garotos apareceram novamente com uma carroça cheia de milho e ofereceram ao artista quatro sacos por R$ 15. “Depois dessa, não tive dúvida e falei pra eles: ‘Vocês tão furtando milho, né? De onde tá saindo todo esse milho que não acaba mais? Não adianta vir com conversa fiada, pode falar a verdade”, esbravejou Prates, preocupado com a procedência do cereal.
Os garotos entraram em conflito na hora de se justificar. Um falou que o milho foi repassado para revenda e o outro declarou que encontraram os sacos abandonados em uma mata não muito distante do bairro. “Sabia que era mentira porque conheço bem essa molecada. Pra você ter uma ideia, tinha tanto milho que eles ficaram uma semana vendendo. Repassaram o produto até pra outras pessoas comercializarem”, destaca.
Ao longo de sete dias, Luiz Carlos perdeu as contas de quantas carroças encontrou pelo bairro, guiadas por crianças que ofereciam sacos de milho para quem criava animais como galinhas, patos, porcos e cavalos. “Lá pra cima já ouvia a criançada gritando: “Olha o milho, olha o milho, olha o milho, baratinho, baratinho, baratinho”, relata.
Preocupado, o artista decidiu investigar a origem do produto. Descobriu que os dois garotos que lhe ofereceram o milho tinham invadido um depósito de cereais em uma fazenda nas imediações da Vila Alta. “O mais incrível é que eles tinham só nove anos. Fizeram um buraco na parede do depósito e a irmã de um deles, prestes a completar três anos, passou pela abertura e abriu uma das janelas para eles entrarem”, enfatiza. Enquanto furtavam o milho, a irmãzinha ficou na janela, à espreita, vendo se não aparecia ninguém.
Quando Luiz Carlos ainda não sabia a verdade, a garotinha viu o cereal na casa do artista e disse ao irmão: “Olha aqui, o tio Lú tem um saco de milho. A gente que pegou aquele dia, lembra? Igual aquele que você levou pra casa!” Evasivo, o garoto de nove anos retrucou: “Você tá enganada! Aquilo que levei pra casa era travesseiro, não era saco de milho não!”
Bravo com a situação e também por ter sido enganado, Luiz Carlos despejou todo o milho em um terreno baldio e reuniu todos os envolvidos na ação criminosa e na venda do produto. “Dei um sermão neles e expliquei que isso não se faz. É errado, é coisa de bandido”, lembra. Uma das ironias da história é que o milho despejado no terreno deu origem a um pequeno milharal abandonado que se desenvolveu sem qualquer cuidado ou supervisão.
Mais tarde, uma das crianças que articulou a invasão ao depósito contraiu sarna. Um dia, chegou até a casa do artista plástico com o corpo repleto por feridas. Sensibilizado, Luiz Carlos cuidou do garoto ao longo de uma semana. “Fui até a casa dele para conversar com a família. Me falaram que os pais dele tinham ido embora para uma Vila Rural. Quando expliquei para a avó que o caso do menino era grave, ela disse o seguinte: ‘Leva esse traste daqui. Pega ele pro senhor, não quero ele mesmo.’”
Surpreso, o artista foi informado que o garoto dormia fora de casa, no quintal, em companhia de diversos animais. Para convencer a criança a receber um tratamento diário à base de sal e limão, Luiz Carlos e a namorada, Lindinalva, prepararam lanches para alguns garotos do bairro a semana inteira. “É só oferecer comida que a criançada vem. Deu tudo certo e na semana seguinte ele sarou. Hoje o menino mora com os pais em uma Vila Rural”, revela o artista plástico.
Ajudando jovens em situação de risco
Oficina do Tio Lú tira crianças e adolescentes das ruas de Paranavaí, no Noroeste do Paraná
Na Vila Alta, há poucos metros do Bosque Municipal de Paranavaí, na Casa 10 da Rua B, um corredor leva à Oficina do Tio Lú, um atelier bastante movimentado, onde 12 crianças e adolescentes em situação de risco ocupam o tempo livre transformando pedaços de madeira em obras de arte.
Sob a tutela do artista plástico Luiz Carlos Prates Lima, de 83 anos, aqueles que estão tendo o primeiro contato com a atividade aprendem sobre a utilidade de cada ferramenta, além de conservação de materiais e precauções de uso. “Ensino a lixar, medir e trabalhar simetria. Explico como reconhecer as qualidades de cada tipo de madeira. Aqui existe um passo a passo pra tudo”, garante Luiz Carlos que mostra também a importância do trabalho coletivo na criação de cada obra, o que melhora também a capacidade de socialização dos participantes.
Os mais experientes aprendem a fazer um bom acabamento e a desenhar peças, levando em conta a finalidade das obras. Se for decorativa, há uma preocupação maior com o valor estético. “Sou feliz aqui porque o ‘Seu Luiz’ é como um pai pra nós. Prefiro ficar na oficina do que na rua ou em casa”, comenta o aluno Robson Silva, de 12 anos, que se emociona e sorri com timidez ao contar que já lucrou R$ 50 com as peças produzidas na Oficina do Tio Lú.
Aproveitando a presença do amigo, Ariel Gonçalves Souza, também de 12 anos, se aproxima e conta com orgulho que sabe fazer carrinho, carroça e calhambeque de madeira. “Lixo bem, pode ver!”, comenta em tom de voz seguro. Luiz Carlos confirma: “É verdade. Ele monta direitinho cada peça.”
A harmonia na oficina é conduzida pelo jeito sério, mas comunicativo e carinhoso do artista plástico que se preocupa com o que acontece com os alunos dentro e fora da oficina. “Você ‘tá’ precisando de outro calçado. Nós vamos dar um jeito nisso”, diz Luiz Carlos para o lixador Vitor Hugo Gonçalves Souza, de 12 anos, que estava usando um tênis com dois furos grandes nas laterais.
Mateus Brito Gonçalves, primo de Vitor, ajeita o boné e conta que aprendeu a fazer até fogãozinho. “Ah! Tenho um amigo que conseguiu arrumar a bicicleta com o dinheiro das peças que fez e vendeu”, revela Robson. Ao longo da conversa, o artista plástico chama a atenção de um garoto que fala um palavrão sem perceber a gravidade do ato. “Foi mal, ‘Seu Luiz’”, reconhece o aluno envergonhado e cabisbaixo.
Os participantes da Oficina do Tio Lú são todos amigos. A maioria se conhece há anos. Mesmo assim as brincadeiras são permitidas só nos intervalos, como a “hora do lanche” que começa às 17h, pouco antes do final da aula. Durante a oficina, os sons mais altos saem principalmente das lixadeiras. “Aqui é bom porque a gente não fica na rua e ainda ganha um lanche caprichado”, comenta Mateus sorrindo.
Uma vez por semana, Luiz Carlos também oferece almoço para a garotada. No sábado que antecedeu o Dia das Crianças, o aroma do frango desfiado, especialidade da artesã Lindinalva Silva Santos, companheira do artista plástico, foi tão longe que até quem não era aluno pediu para participar da festinha que reuniu 16 crianças e adolescentes. “Gosto assim, todo mundo comendo à vontade e saindo daqui satisfeito”, diz Luiz Carlos que ao final do almoço costuma reunir todo mundo para um bate-papo sincero.
Na ocasião, os garotos falam sobre a vida, a família e o cotidiano. Em seguida, ouvem conselhos de quem os trata como se fossem filhos. É interessante ver como respeitam Luiz Carlos, provavelmente porque encontraram no artista uma figura paterna, alguém que se importa muito com o futuro deles.
Não é à toa que a Oficina do Tio Lú, criada para atender jovens em situação de risco de segunda a quarta, das 14h às 18h, hoje funciona de segunda a sexta, das 8h às 11h30 e das 14h às 17h30. “Se dependesse deles, não iriam embora não. Agora faço minhas peças só de madrugada. Durante o dia, me dedico à oficina porque sei que eles precisam mais de mim do que eu de dinheiro”, avalia Luiz Carlos que também desempenha funções de pai substituto.
Mesmo sob sol escaldante, Luiz Carlos e Lindinalva já saíram muitas vezes de bicicleta para levar alunos enfermos ao Pronto Atendimento Municipal e Unidade Básica de Saúde (UBS). “Tiramos bicho-de-pé, lidamos com anemia, sarna e outras coisas mais. Fazemos tudo ao nosso alcance quando não conseguimos ajuda profissional”, garante o artista.
Saiba Mais
Localizada na periferia, a Vila Alta é um dos bairros mais pobres de Paranavaí.
Criada de forma independente por Luiz Carlos Prates Lima, hoje a Oficina do Tio Lú é um exemplo de trabalho social em prol de jovens carentes.
Casal tenta sobreviver com R$ 280 por mês
Ivan e Rose moram em um dos poucos barracos que ainda restam na Vila Alta
Nos anos 1970 e 1980, quem visitava a Vila do Sossego, atual Vila Alta, em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, se surpreendia com a quantidade de barracos de lona. Cada um, em média, abrigava quatro pessoas. Quando chovia, o desespero tomava conta. Todos tinham de passar a noite acordados e apoiados nas extremidades do barraco para evitar que ficassem descampados.
Com o tempo, o cenário mudou, e hoje o bairro tem poucas pessoas vivendo em situação de pobreza extrema, embora muitos ainda não ganhem o suficiente para viver com dignidade. “Antes a gente reclamava porque não tinha onde morar. Agora cada um pelo menos tem a sua casinha, mesmo que não seja boa”, diz a dona de casa Cristiane Santos França.
Circulando pelo bairro e conversando com os moradores, logo você é informado que muitas moradias só existem porque a comunidade se uniu para construí-las. Ainda assim, é um privilégio que não chegou a todos que vivem no bairro. O casal de catadores de recicláveis Rose Maria Santos e Ivan Cardoso Martins representa bem essa realidade.
Quem chega em frente ao terreno onde eles moram, nem imagina que ali existe uma “casa” de dois cômodos, com um banheiro improvisado no quintal. A entrada é coberta por materiais recicláveis, o único meio de subsistência de Rose e Ivan que dividem o espaço com cães e gatos, animais que recebem o mesmo tratamento de um filho.
Para entrar no casebre feito à base de materiais descartados na rua, preciso me abaixar para não bater a cabeça no batente fora de medida. O ambiente é escuro e pouco arejado. A luz entra somente por uma pequena janela que dependendo do horário do dia pode ser confundida com uma fresta. No interior do barraco, Rose sorri com timidez e me convida para sentar em uma poltrona bastante judiada, retirada próxima de uma sarjeta.
Nos cumprimentamos e ela me conta que é muito difícil viver nessa situação. Em uma olhadela, percebo que ali não existe nada que algum dia tenham comprado em uma loja. Está tudo muito desgastado. “É difícil porque a casa molha, né? E molha tudo. A gente não tem condições de fazer outra. Molha cozinha, quarto, pinga por tudo”, confidencia Rose visivelmente gripada e enxugando o rosto com um pedaço de pano.
Os móveis, que jamais seriam aproveitados por uma família de classe média, sofrem com a ação da chuva, se deteriorando rapidamente. Quando chove demais, a água arrasta a lama para dentro do casebre. A história se repete há 15 anos, desde que Rose e Ivan fizeram o barraco. “Tudo aqui foi feito por conta própria, juntando aos poucos”, enfatiza a catadora de recicláveis. Enquanto conversamos, escuto um gemido no quarto, cômodo que fica ao lado da sala-cozinha.
Lá, em meio a roupas velhas e objetos antigos, repousa o “Seu Ivan”, como é mais conhecido. Vítima de mal de Parkinson, passa por crises tão severas que há dias em que não consegue andar. Se obriga sempre a se apoiar em algo para evitar a queda, seja uma muleta, um andador ou o próprio carrinho de recicláveis.
Quando percebe a minha presença, Ivan se levanta de um colchão velho, sem roupa de cama, e com muito esforço consegue chegar até nós. Me cumprimenta, sorri e senta ao lado da mulher. Inicia a conversa informando que só não chove em cima do colchão porque conseguiram cobrir parte do casebre com um pedaço de lona doada. “Aí tem cada buracão de pedra que caiu. O madeiramento tá tudo budocando [embodocando]”, afirma.
“De vez em quando me dá uma tremedeira que nada segura. Não consigo manter nem o copo na mão”, declara com um olhar miúdo e um tom de voz calmo e pausado. Para minimizar o problema, o medicamento não pode faltar. Cardoso também sofre de hipertensão e tem enfisema pulmonar.
Com 61 anos, o homem foi castigado pelas precárias condições de vida. Quem o vê de perto, pensa que é bem mais velho. Mesmo doente, Ivan, assim como Rose, não pode parar de trabalhar. Juntos, eles saem todos os dias pouco antes das 8h e retornam só depois das 20h. São mais de 12 horas diárias de trabalho para lucrar 70 reais por semana, ou seja, 280 reais por mês.
“É o que a gente consegue quando não perde nenhum dia. Agora se ele ficar muito ruim, o ganho é menor”, garante Rose Santos. Entre uma tosse e outra, lembra que o marido sofreu dois infartos nos últimos oito anos. Nas ruas, nem todos respeitam o trabalho dos catadores de materiais recicláveis. Enquanto alguns contribuem, inclusive separando o material para o casal transportar, outros exigem que para recolhê-los é preciso levar também o lixo.
“Pegamos papelão, plástico, latinha, mas latinha rende pouco, né? Ferro também. O preço é de 10 centavos por quilo. Então tem que conseguir pelo menos 100 pra ganhar um dinheirinho”, explica Rose. Seu Ivan se emociona quando se recorda da época em que carregava mais de 100 quilos no carrinho. “Agora se você me chamar pra ir até o portão pegar dez quilos, não aguento porque não consigo levantar esse peso. Se colocar na cabeça, caio para o outro lado”, lamenta sem esconder a tristeza e o constrangimento. Com olhos marejados, revela que toma banho sentado ou com a ajuda de Rose.
Ivan Cardoso Martins trabalha desde a infância e até hoje não conseguiu se aposentar, seja por tempo de serviço ou pelas limitações impostas pela doença. Sem dia certo para aparecer, as crises podem acontecer com intervalo de dois dias ou até uma semana. “Quando vem, parece que vou morrer. E pode ser que da próxima vez aconteça mesmo”, comenta.
Ivan e Rose, que são facilmente vistos circulando pelas ruas centrais de Paranavaí, sonham em comprar materiais para construir dois ou três cômodos em frente ao barraco. “Se alguém pudesse ajudar, a gente ficaria muito feliz”, admite Ivan em declaração partilhada por Rose. Sem saneamento básico e energia elétrica, o casal parece alheio à realidade dos vizinhos e principalmente dos moradores do bairro ao lado, a Vila Operária.
Assim que agradeço a cordialidade e me despeço, Seu Ivan faz questão de me acompanhar até a entrada, se apoiando com muito esforço em um andador feito e doado pelo artista plástico Luiz Carlos Prates Lima. Apesar da vida de penúria e da invisibilidade social, o homem ainda preserva a sua fé e se despede com um gesto verbal de benevolência: “Muito obrigado pela visita. Vá com Deus, meu filho.”
Contribuição
Quem quiser contribuir com o casal, pode ligar para a Fundação Cultural de Paranavaí: (44) 3902-1128 ou (44) 9865-1391 e falar com Luiz Carlos.
Oficina do Tio Lú
Uma viagem por um universo de abnegação
Lançado no início da semana, Oficina do Tio Lú é o meu mais novo trabalho audiovisual. Parte da série “Realidade da Periferia”, o documentário conta a história do artista plástico Luiz Carlos Prates Lima, de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, que se dedica a recuperar crianças e adolescentes em situação de risco.
Na Vila Alta, um dos bairros mais pobres da cidade, Luiz Carlos, que está sempre enfrentando dificuldades financeiras, deixa de lucrar para ensinar os mais jovens a criarem obras de arte a partir das mais diferentes fontes de matéria-prima.
A oficina do artista fica no fundo da própria casa, onde ele faz crianças e adolescentes se distanciarem do mundo das drogas, da fome e da miséria. Oficina do Tio Lú é uma viagem por um universo de abnegação. Na obra, Tio Lú mostra que não é preciso muito dinheiro para fazer a diferença em um mundo cada vez mais consumista e materialista.
Ficha Técnica
Roteiro e Direção: David Arioch
Colaboração: Jesus Soares
Trilha Sonora: Crash Nomada, Racionais MC’s, Ney Matogrosso e Cólera
Fotos: David Arioch, Gugu Ditzel e Arquivo Pessoal de Luiz Carlos Prates Lima
Personagens: Luiz Carlos Prates Lima, Jesus Soares, Paulo José Zanelato Silva, Lindinalva Silva Santos, Maria de Fátima Oliveira, Danilo Medeiros França, Lucas Antônio Souza Silva, Odair Correa Junior, Gustavo Jesus Souza, Vagner Souza Santos, Weder França Melo, Kelvin Santos Melo, Ariel Gonçalves Souza, Robson Silva, João Paulo Rodrigues Alves e Juvenal Ferreira Silva.
Duração: 46 Minutos