Archive for the ‘Crônicas/Chronicles’ Category
O desenho e as sementes do andarilho
Na minha infância, havia um andarilho que passava em frente de casa todos os dias – nunca pedia nada. Carregava um caderno com folhas em branco debaixo do braço. Do outro, levava um envelope grande com sementes. Um dia, quando eu estava sentado no meio-fio, ele se aproximou.
Ficou sorrindo e me olhando. Eu não sabia que tinha um pouco de pó de grafite no meu rosto. “Faz assim”, disse em tom baixo e balançando a cabeça. Balancei e ele abriu o caderno. O pó deitou sobre uma das folhas. Parou de sorrir e passou a mão suavemente por ela, usando dois dedos – os indicadores de cada mão.
Quando olhei outra vez para o caderno, vi um desenho idêntico ao meu rosto criado em não mais que 20 segundos. Ele tirou a folha e me entregou sem dizer palavra. Noutro dia, a folha já estava em branco. Fiquei lá fora o esperando passar outra vez pra perguntar o que tinha acontecido.
Ele apenas sorriu e sinalizou pra eu formar uma concha com as mãos. Me deu algumas sementes e disse que se eu as plantasse naquele dia, elas não desapareceriam. Mas se deixasse para o dia seguinte, elas correriam. Foi o que fiz. Quando a chuva-de-ouro nasceu, soube que ele morreu – cardiopatia congênita.
À noite
À noite, quando já não precisava mais ouvir ninguém, gostava de deitar no chão e observar o teto. Imaginava que se abria e permitia que todos os desconfortos do dia fossem purificados pela vontade. Pássaros, morcegos e corujas se acomodavam na curta distância lá de cima. Ninguém ansiava por mais proximidade. Parecia suficiente. Observar, sentir e inferir. Não era preciso compreender.
Seria presunção acreditar que somos seres de contemplação. “O que há para ser contemplado?” Mas não importava tanto, para ninguém. Bastava estar ali, diante de um buraco retangular que fazia um pedaço de céu enuviado parecer um chapéu com pontinhos móveis. Imaginava como seria carregá-lo na cabeça – indo de lá pra cá, de cá para ali.
“E se algo muito pesado, intenso e célere voasse em direção à minha cabeça? Sobreviveria? O que restaria?” Depende, seria um avião, um bicho ou um humano voador? São tantas possibilidades plausíveis ou impensáveis nas limitações da consciência – coisas que já se chocam contra a cabeça na ausência do chapéu de céu.
E se, aproveitando o silêncio tardio, eu corresse o máximo que pudesse e o chapéu se transformasse em um sumidouro? Balançaria a cabeça com força e, em resposta a cada comando, faria com que engolisse toda a indignidade ao meu alcance. Quando já fosse inalcançável, cortaria um pedaço do chapéu e entraria eu mesmo dentro do sumidouro para ressurgir em outros lugares.
Vagaria pela breve eternidade da vida, realocando, sem aparecer, pessoas, animais e coisas. Realmente, há algo de muito grave e errado em um mundo com tantas coisas fora do lugar. Depois voltaria ao chão e deitaria outra vez. O céu poderia se abrir ou não. Os pássaros, morcegos e corujas já não estariam na curta distância lá de cima, e eu poderia acordar ou não.
A moça e as maritacas
Na praça havia uma moça com uma máscara colorida. Trazia o desenho de uma vaquinha, daquelas que encontramos em roupas infantis. Observava uma maritaca indo de um lado para o outro entre os galhos. Suspeitei que sorria, mantendo as mãos enluvadas sobre os joelhos.
Horas mais tarde, voltando para casa, ela continuava na mesma posição. Notei mais maritacas do que antes – como se atravessassem umas às outras. Seu nariz ainda mirava o céu. Parecia decidida no seu intento. Vi beleza naquela contemplação de uma talisca de natureza.
À noite, retornando outra vez para casa, a moça continuava lá. Imaginei então que só poderia estar esperando alguém, já que até as maritacas tinham desaparecido. Tão perto de casa, nunca tinha visto alguém passar tantas horas seguidas naquele lugar.
Pensei em me aproximar e sugerir que ela fosse para casa, já que havia escurecido bastante e a iluminação no local não era das melhores – insuficiente para agradar uma porção de mariposas. Mas tive receio de ser confundido com algum pervertido.
Pela manhã, a moça já estava lá. “Será que dormiu aqui ou retornou?” Quando tomei a decisão de me aproximar pelo menos o suficiente para saber se estava tudo bem, um caminhão encostou, um homem desceu e levou a moça embora. Uma das maritacas fez cocô no meu ombro e continuou voando com as outras. Acho que nunca vi uma manequim tão realista.
Chovia
Dias atrás, chovia quando eu retornava da academia para casa. Em menos de dois ou três minutos, senti os pés pesados – peso que massageava os dedos.
Minha imagem refletia na chuva que descia sem violência pelas galerias, nas paredes de vidro. Escorria pela minha cabeça e fazia cócegas no nariz. Sorria sozinho.
Quem me via, se via, não sei o que pensou, porque eu não mirava o que ia ou o que vinha. Só seguia. Abria boca e sentia pontadinhas no palato, suavidade da infância em forma d’água.
Um afago que vem do céu também faz as pessoas acelerarem. Preferi desacelerar porque não sei quando ela vai voltar.
Vagando de uma esquina à outra
Desconcertados, com olhos perdidos, vagando de uma esquina à outra, revirando os sacos de lixo que logo mais os catadores recolheriam. Àquela hora da tarde, sempre uma oportunidade. Tudo ficava ao chão; era a chance de encontrar alguma coisa comestível que pudesse aplacar a fome.
Quando alguém se aproximava, os sacos de lixo viravam esconderijos, pelo menos para os pequeninos. Os maiores só tinham tempo de correr (os mais agitados) ou se encolher em vão (os mais assustados).
Um deles trazia no dorso o carimbo doloroso de uma sola. Se pudessem, acho que gostariam de ter dois olhos que pudessem mirar coisas diferentes – a comida e quem se aproxima. É difícil escolher entre comer ou correr, porque das duas ações dependem a sobrevivência.
Os mais fracos vão resfolegando na correria – imunidade baixa que se intensifica. As costelas à mostra revelam mais do que fome – medo, terror, desamor. A miséria estimula solidariedade entre alguns e violência entre outros. Personalidades distintas, assim como o peso do trauma.
Passam-se os olhos de lá pra cá, e de cá pra lá. Dizem que falta tempo ou dinheiro. “Não é problema meu nem seu” – mantra da omissão. Os corpos vão se acumulando e apodrecendo em qualquer lugar. O mau cheiro revela mais sobre nós do que sobre eles.
Hoje havia dois misturados aos entulhos em uma caçamba – dizem que foram atropelados de madrugada enquanto rasgavam sacos de lixo numa esquina.
Diante do luar
Deito fora os desconfortos da minha alma diante do luar. Não em definitivo. Existe um aroma imperceptível trazido pela noite que invade essências filtrando suas inconsistências e pacificando seus conflitos. Mas é preciso serenar por tempo que pode variar.
Cada um sabe qual é o seu momento. Os olhos voltados tanto para lá quanto para cá – o diante e o eu mesmo – que miro sem precisar intervalar. Parece impossível, mas não. Apenas exercício.
Uns aprendem, outros desistem. Outros nem tentam. Sente-se alguma coisa ou coisa nenhuma. Verdade, placebo (como se pudesse ser ingerido na sua imensidão) ou superstição.
Não há relevância nessa consideração. É apenas acreditar ou não acreditar. Na pior das conclusões, não há tempo perdido, quando há um céu lá fora a se observar. E alguém diz imerso num sonho: “Como se sempre a nos esperar.”
Guarda-chuva para dois
Estava chovendo quando saí da academia pouco antes das 18h30. Uma senhora, com seus mais de 70 anos, me chamou.
Imaginei que pediria informação, mas queria apenas que eu não me molhasse e disse que poderíamos dividir o guarda-chuva.
Expliquei que não era necessário, que prevendo chuva, saí de casa de carro, e que não me importaria em me molhar um pouquinho. Mas ela insistiu: “Pelo menos até a outra esquina.”
Como ela era pequenina, segurei o guarda-chuva e atravessamos a rua. Seus passos eram bem curtos e, enquanto andávamos pela calçada, ela escorregou e quase foi ao chão, mas conseguiu segurar no meu braço.
“Viu só como não foi perda de tempo? Te ajudei com o guarda-chuva e você me ajudou com o braço. Isso é mutualidade. Ninguém saiu perdendo.”
“A senhora tem razão. Agradeço a generosidade.” Sorrimos e mais adiante nos despedimos.
A vida tem um cheiro estranho
Com nove ou dez anos, encontrei um senhor em frente de casa, subindo a rua e carregando apenas uma pequena mala. Ele disse: “A vida tem um cheiro estranho….é….a vida tem um cheiro estranho….tem sim….a vida tem um cheiro estranho…”
Parou e me observou enquanto eu acariciava o pelo do Happy. “Você não concorda comigo?”, perguntou. “Não sei.” “Tem sim, meu jovem, um cheiro muito estranho.” “Que cheiro é esse?” “Depende, o que você comeu hoje, o que você fez hoje, com quem você falou hoje?”
“Estou vendo você e esse cachorro aí. O cheiro dele em você, e o seu cheiro nele. Vejo que você estava brincando e se sujou um pouco também.” “Mas a gente toma banho e acaba não ficando cheiro nenhum disso, né?”
“Não é bem assim, o cheiro que desaparece é o cheiro que deixa vestígio no corpo, mas há um cheiro que é aquele que acumulamos ao longo da vida. Somos sortidos de cheiros. E você sabia que o cheiro pesa?” “Como assim?” “Sim, o cheiro pesa.” “Como o cheiro pesa?”
“Ora, imagine carregar tanto cheiro desde o momento em que nasce até o dia em que se morre. Por quantos lugares você passou, quantas pessoas conheceu, quantas situações viveu…tudo isso tem cheiro…que se transformam num pequeno universo de cheiros que nos habita, irreconhecíveis para a maioria. Imagine se colocássemos todos esses cheiros em uma garrafa, nem eu nem você conseguiríamos carregá-la, por certo.”
“Mas isso não faz mal pra saúde?”, questionei. O homem coçou a barba e riu. “Pode fazer mal tanto quanto pode fazer bem. Tudo depende da origem do cheiro, da emoção, sentimento ou experiência que trouxe esse cheiro. O cheiro surge tanto pela intenção quanto pela reação e associação. Os bons são levinhos e os ruins podem ser bem pesados. Mas também podem se transmutar e o bom pode ficar ruim e vice-versa. Então recomendo evitar a condenação sem razão. Seja paciente.”
“Ué, mas não tem jeito de se livrar do cheiro?” “Para o bem ou para o mal, não tem, porque de alguma forma o cheiro somos nós e nós somos o cheiro.” “Humm….” “O que você pode fazer é se esforçar mais para encontrar os cheiros bons ou que pareçam bons, assim quando você acumular cheiros ruins, sejam eles transmutáveis ou não, você terá uma vantagem gerada pelas buscas anteriores ou recorrentes.”
“Isso parece difícil…” “Sim, não é fácil, mas vale a pena, porque com o tempo os cheiros ruins que se acumulam drenam nossa energia. Imagine como seria ficar sem fazer as coisas que você gosta porque não restou muitas forças…”
“Parece terrível…” “Pois saiba que sim, muito…” “E o senhor sabe quanto cheiro já acumulou?” “Ninguém sabe, e é importante não saber, para não se acomodar. Mas estou aqui e é isso que importa, não é mesmo?”
“É…acho que sim.” “A vida tem um cheiro estranho….é….a vida tem um cheiro estranho…tem sim…a vida tem um cheiro estranho…”, disse o homem antes de partir e deixar a pequena mala vazia ao lado do Happy. Nela, uma frase: “Guarde bem os seus cheiros.”
Perica
Quando eu tinha dez anos, meu pai me levou para a casa de seu amigo Perica, um senhor já idoso que há mais de 20 anos vivia sozinho no campo com sua biblioteca e seus tonéis. Cheiro de papel e cheiro de vinho, de um lado, do outro, por todos os lados. Perguntou se eu bebia. Respondi que não, que o álcool é nojento. Ele achou engraçado.
“Mas lê pelo menos?”, Sim, leio, respondi. “Então tudo bem! Não esqueça que a morte precoce acontece quando não alimentamos a vida, e sim nos alimentamos dela”, disse. Certo, comentei. Perica foi meu mentor nas férias de verão. Era um sujeito incomum. Bebia e lia, lia ou bebia, e lia e bebia. Mas nunca o vi bêbado. No último dia antes de voltar para casa, perguntei como era possível ele tomar tanto vinho e nunca ficar bêbado.
“Na realidade, eu não bebo.” Como? “Isso, não bebo.” Mas esse cheiro, esses tonéis, o copo na mão?, questionei. “Eu te induzi a acreditar nisso a partir da sua chegada, da nossa conversa, do primeiro dia. O cenário ajuda, mas o que eu trazia no copo nunca era vinho. Não cheguei a produzir vinho, meus pais sim. O que você acha disso?”
Acho que você está me enganando, comentei. “Não…isso seria desnecessário e imprudente.” Realmente havia um copo na mão de Perica, mas não com vinho, e os tonéis, de fato, traziam aroma de vinho, mas era simplesmente sinestesia. “A minha verdade, a sua verdade, às vezes não é fácil distinguir se a mente se liberta para a realidade ou para a criatividade ou constrói a sua própria grade”, disse Perica.
Acordou
Acordou. Não conseguia ficar de pé nem se mover. “Chamem uma ambulância, a situação é grave!” Só babava e rosnava. Raiva? Cachorro? “Alguém mordeu este homem!”, advertiu o paramédico. Não, não tem nenhum animal aqui, a não ser o próprio paciente. É só ele mesmo, segundo a vizinha. Como pode ser tão pesado? Não aparentava mais de 70 quilos, mas parecia impossível levantá-lo. “Que coisa bizarra, estranha…”
“Pois é…vamos tentar de novo” Não, não! Não vai. Chame mais gente. Quatro homens – dois segurando as pernas e dois segurando os braços. Nada de colocar o sujeito na maca, pesado demais. A baba caía apurada e baça no piso de taco. Escorria e corria. Se tinha vida? Ninguém via ou sabia. Bora de novo! O homem tremia, olhos vermelhos, rajadas de fogo, estrias nervosas na esclerótica. Será que vai? Não, não vai.
“Chame mais gente! Não saio daqui enquanto não levar este homem. Missão dada é missão cumprida!” Dez tentando erguer o sujeito. Ranger de dentes, franzir de testa, carantonhas. Vai! Vai! Vai! Não….não vai! “Não é possível uma coisa dessas!” O homem não parava de babar. O chão enturvecia e logo o esputo sumia. Engasgou, engasgou, e agora? Bate nas costas. Isso, nas costas! “Como? Ninguém consegue virar esse sujeito!” Acamado, num esforço sobressaltado rolou e arroxeou. Cinco batidas.
A boca se abriu e o homem vomitou. Expelia sem parar. Minutos e mais minutos. Nada de comida ou bebida, só ódio, cólera, intemperança, jactância, pedaços cevados de ignorância. Que ar pesado, hein? Mau cheiro medonho! “Caramba! Quanta coisa!” “Tragam um balde! Não, um não, o máximo possível”, pediram. Os baldes não deram conta e alguns começaram a derreter. Chegou um carrinho de mão. A rodinha entortou e o pneu murchou. O homem arrotou, coçou a barriga e se levantou.