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Os 35 anos do clássico punk pela libertação animal “Carne Significa Assassinato”
Dois anos antes do The Smiths lançar “Meat is Murder”, a banda britânica de anarco-punk Conflict lançou o clássico “Meat Means Murder” ou “Carne Significa Assassinato”, que faz uma crítica direta ao consumo de carne e à exploração animal. A música faz parte do álbum “It’s Time to See Who’s Who”, lançado em Londres em março de 1983, e que à época se tornou uma referência para o movimento pela libertação animal na Inglaterra.
Em entrevista a Pete Woods, do Ave Noctum, publicada em 5 de dezembro de 2013, o vocalista e membro-fundador do Conflict, Colin Jerwood, disse que a princípio a ideia era simplesmente formar uma banda sem maiores pretensões. Porém, com o tempo, eles ficaram surpresos com o impacto que suas músicas tiveram entre os ativistas pelos direitos animais. “Na verdade, nunca imaginei que essas palavras que escrevi teriam esse impacto e inspirariam tantas pessoas”, disse.
Quando “Meat Means Murder” foi lançada, Colin era apenas um jovem vegetariano de 20 anos, que mais tarde se tornaria vegano. Em entrevista a Niall McGuirk, publicada pelo The Thumped em 5 de maio de 2013, ele relatou que logo se envolveu com o grupo de ação direta Animal Liberation Front (A.L.F), conhecido por invadir lojas, laboratórios e fazendas para libertar animais. “A A.L.F teve que ser muito cuidadosa depois de algumas grandes prisões. Coisas ainda acontecem. Há um grupo chamado A-Team que tenta acabar com brigas de cães [na Inglaterra]. Não são tantos os estabelecimentos de vivissecção que podem ser invadidos agora porque eles são intocáveis por causa do dinheiro”, revelou.
Em 1984, o Conflict realizou shows em protesto contra a prisão de membros da A.L.F. Também arrecadou dinheiro para a libertação dos ativistas. Na página 166 do seu livro “No Future: Punk, Politics and British Youth Culture – 1976-1984”, lançado em 2017, Matthew Worley escreveu que em termos práticos o anarquismo punk tende a desautorizar a organização política formal a favor da ação, e entre as suas diversas facetas, principalmente na Inglaterra, estão ações de libertação animal, sabotagem à caça e levantamento de fundos para grupos de ativismo animalista: “Alguns, incluindo Colin Jerwood, do Conflict, alinharam-se com a Animal Liberation Front (A.L.F), o que condiz com a ação direta defendida em seu EP To a Nation of Animal Lovers EP (1983).”
Outro autor que reconhece a importância musical do Conflict como instrumento de conscientização sobre a realidade da exploração animal e do chamamento para o ativismo em favor dos direitos animais a partir da década de 1980 é Ian Glasper, autor do livro “The Day the Country Died: A History of Anarcho Punk 1980-1984″, de 2006. “Depois do Crass, a maioria das pessoas quando fala no gênero anarco-punk pensa imediatamente no Conflict, uma banda cuja música era honesta, agressiva e intransigente, e que fazia dos direitos animais a sua questão principal”, destacou na página 104 do seu livro.
No artigo “Nailing Descartes to the Wall: animal rights, veganism and punk culture”, publicado em 2014 na Anarchist Library, Len Tilbürger e Chris P. Kale citam que entre as inúmeras bandas anarco-punk que abraçaram os direitos animais e o veganismo nos anos 1980, Conflict é considerada a mais importante: “Para complementar suas exortações líricas, eles projetavam imagens de vídeo, obtidas pela própria banda que se infiltrou em matadouros, em telas por trás do palco enquanto se apresentavam. Eles também exaltavam os movimentos de ativistas pela libertação animal na década de 1980”.
Nas páginas 232 e 233 da tese de PhD “An Investigation into the Emergence of the Anarcho-Punk Scene of the 1980s”, publicada pela Universidade de Salford, no Reino Unido, em outubro de 2004, o autor Mike Dines observa que muito do material do Conflict oferece um “chamado às armas” na luta contra matadouros e as estruturas do governo. Ele usa como exemplo a faixa “Ungovernable Force”, de 1986, em que Colin Jerwood questiona: “O que significa ação direta?” Então ele continua: “Isso significa que não estamos mais preparados para continuarmos sentados e permitir que coisas terríveis e cruéis aconteçam. Ação direta pelos direitos animais significa causar danos econômicos aos que abusam e lucram com a exploração”.
Meat Means Murder (Carne Significa Assassinato) – 1983
A fábrica está produzindo, tudo processado, embalado e organizado
Uma substância abatida e obscura, e no rótulo lê-se “carne”
Escondida por trás de nomes falsos como porco, presunto, vitela e bife
Um olho é um olho, uma vida é uma vida, a atual crença esquecida
A linha de produção diária ainda está alimentando essa farsa
Para acabar sobre a sua mesa e então sair pela sua bunda
Você ainda continua na fila e continua assistindo
Serrarem os membros adequadamente para os ensopados
Carcaças empilhadas num monte
Sortidos, macios, suculentos pedaços congelados
Bem, você não percebe que aquele suco é sangue?
De gargantas recém-nascidas, rios de sangue jorram
Sangue de jovens corações, sangue de veias
Seu sangue, o sangue deles, serve da mesma maneira!
Agora você está diante da mesa, sentado, sorrindo
Sentado ali comendo, você nunca perceberá como aquilo foi feito.
Está servido sobre um prato esterilizado, você não pensará na matança
O mais longe que seu cérebro irá é “isso é pra fritar ou grelhar?”
Você lamenta pelo abate de focas, pelo massacre de baleias
Mas realmente importa se vive na terra ou na água?
Você nunca teve um casaco de pele, você acha que é cruel com os visons
Bem, e quanto à vaca, o porco ou a ovelha? Eles não te fazem pensar?
Desde o dia em que você nasceu, nunca te contaram da peça que está faltando?
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O Conflict foi fundado em Eltham, Sul de Londres, em 1981. A formação original da banda era Colin Jerwood (vocal), Francisco ‘Paco’ Carreno bateria), Big John (guitarra), Steve (Guitarra) e Pauline (vocal). O primeiro lançamento do Conflict foi o EP “The House Man Built”, de 1982. Em 1983, no EP “To a Nation of Animal Lovers”, Steve Ignorant, do lendário Crass, fez uma participação especial. Mais tarde, com o fim do Crass, ele ingressou como segundo vocalista.
Referências
Woods, Pete. Interview – Conflict. Ave Noctum (5 de dezembro de 2013).
McGuirk, Niall. It’s Not About Sitting In Your Slippers – An Interview With Conflict’s Colin Jerwood. The Thumped (5 de maio de 2013).
Worley, Matthew. No Future: Punk, Politics and British Youth Culture – 1976-1984. Página 166. Cambridge University Press (2017).
Glasper, Ian. The Day the Country Died: A History of Anarcho Punk 1980-1984. Página 104. PM Press (2014).
Tilbürger, Len; Kale, Chris P. Nailing Descartes to the Wall: animal rights, veganism and punk culture. Anarchist Library (2014).
Dines, An Investigation into the Emergence of the Anarcho-punk Scene of the 1980s. PhD thesis. University of Salford, UK. Páginas 232-233 (2004).
José Oiticica definia o consumo de carne como um vício social
Para o escritor e anarquista, a saúde humana deve envolver a alimentação vegetariana
“Ele comprovou ser o homem, como primata (pelo seu tubo digestivo, intestinos, glândulas, fórmula dentária, por sua estrutura anatômica, por sua natureza, enfim), animal vegetalivoro, como muitos povos orientais e habitantes de aldeias da Europa, e não carnívoro, como as feras. Compreendeu então que a doença apareceu no homem, como nas plantas, em consequência de um erro de nutrição. A doença é, assim, uma decorrência da violação das leis biológicas, como que uma punição da natureza. Oiticica converte-se então ao vegetarianismo e a abstinência e combate ao álcool e o tabaco, discorrendo em muitas conferências sobre esses vícios sociais”, escreveu o anarquista e vegetariano Roberto das Neves, reproduzindo a visão do amigo anarquista, poeta, filólogo e ativista vegetariano José Oiticica no livro “Ação direta: meio século de pregação libertária”.
Oiticica já era vegetariano em 1912, e desde então assumiu a posição de conciliar sua ideologia política com a defesa do vegetarianismo. De acordo com Neves, ele abandonou o curso de medicina quando conheceu livros sobre evolucionistas e naturalistas que qualificavam a alimentação como a melhor forma de prevenção e combate às doenças.
“Sempre fui meio rebelde. Ainda garoto fui expulso do seminário São José porque recusei a mão à palmatória. Mas acabei indo para a Faculdade de Direito e com tal crença que disputei sempre os primeiros lugares com Levi Carneiro, que foi da minha turma. Pois, assim, com uma crença sagrada no direito, fui ao Fôro levar um alvará para registro. O oficial do registro me cobrou 13$600, quando o Regimento de Custos marcava para o caso apenas 3$600. Protestei. O homenzinho foi peremptório: ‘Não me interessa o que o Regimento diz. Eu preciso viver’. Após isto larguei o direito”, revela José Oiticica em entrevista ao jornalista Mario Camarina em “Confissões de um Anarquista Emérito”, publicada na revista O Cruzeiro de 23 de maio de 1953.
Oiticica defendia que todo anarquista deveria tornar-se vegetariano e trabalhar em prol da extirpação dos vícios. Segundo ele, a saúde do homem, tanto física como mental, deve envolver a alimentação vegetariana e uma nova relação com a natureza, com o corpo e com a mente. “A inteligência e o aprofundamento intelectual, o exercício da vontade associado à moral, a habilidade e a solidariedade, são elementos essenciais para o progresso humano. A forma pela qual os indivíduos usam as suas energias em relação às energias cósmicas como o sol, o ar e a terra chama-se trabalho”, declarou em registro publicado no livro “Nem barbárie Nem Civilização”, de Tereza Ventura.
Entre os anos de 1911 e 1955, José Oiticica lançou 14 livros de poesia, teoria anarquista e filologia. Também escreveu as peças teatrais “Azalan!”, “Pedras que Rolam” e “Quem os Salva”. “Publicou obras de sociologia e linguística, inclusive em jornais populares; difundiu o vegetarianismo entre os trabalhadores; além de ter deixado obras espiritualistas como o opúsculo ‘Os Sete Eu Sou’ e uma tradução dos ‘Versos Áureos’, atribuídos a Pitágoras”, comenta Tereza.
Oiticica vivia um conflito entre o espírito ativo e ativista, portador de conceitos de uma visão política, e o espírito sensível e inspirado de um poeta preocupado com a natureza humana, segundo o artigo “Anarquia nos Sonetos de José Oiticica”, de Maria Aparecida Munhoz de Omena. Considerado pré-modernista, ele produziu muitos sonetos, principalmente nos anos de 1911 e 1919. Ainda assim, passou despercebido pelas publicações que contam a história do modernismo no Brasil – talvez por suas inclinações ideológicas. “Uma primeira leitura do último livro que publicou em vida, ‘Fonte Perene’, de 1954, revela uma poesia vigorosa, à altura dos considerados bons poetas do período”, enfatiza Maria Omena.
Idealista, José Oiticica que se dividia entre a literatura, o magistério e a militância anarquista, escreveu no livro “Princípios e Fins do Programa Anarquista-Comunista”, de 1919, que o fim mais alto do anarquismo é a elevação da plebe, dos verdadeiros produtores, a sentimentos e gostos aristocráticos, substituindo assim a democracia atual, calcada na ignorância e na pobreza, por uma aristocracia geral, humana. E como o poeta era um desdobramento natural do anarquista, suas insatisfações eram comumente transmitidas em seus poemas:
“Essa invisível causa, que eu procuro
nos meus tormentos de meditação,
inda é o mesmo problema ingrato e obscuro
Que atormenta homens bons desde Platão
Esse maldito sonho de ser puro
– Apurado na dor – é sonho vão:
E ira semeando dores no futuro…
Pobres sonhadores que virão!”
O falecido professor e filólogo Olmar Guterres da Silveira, membro da Academia Brasileira de Filologia, definia José Oiticica como um sujeito de semblante fechado, sem refinamentos elementares e de sobrecenho carregado. “Eis o exterior de um homem cujo brilho eterno desmentia a primeira impressão: culto, dedicado, agradável naquilo que fazia e suave no trato com os alunos”, assinalou. Oiticica faleceu em decorrência de infarto no Rio de Janeiro em 30 de junho de 1957, aos 74 anos. Após sua morte, o advogado e escritor Levi Carneiro o descreveu em matéria publicada no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, como um homem de virtudes físicas, morais e intelectuais que não gostava muito de aparecer. Preferia refugiar-se dentro de si mesmo, dedicando-se aos estudos.
O anarquista e escritor foi qualificado como um homem que nada ambicionava a não ser o saber: “Nada receava, senão errar. (…) Erudito, cada vez mais refugiado no seu pensamento, não deserdava das ideias que afirmava, nem transigia com os interesses criados numa sociedade da qual se considerava parte”, publicou o Correio da Manhã, também do Rio de Janeiro, no dia 2 de julho de 1957. É atribuída a José Oiticica uma frase que parece referenciar criticamente tanto as desigualdades sociais quanto a relação da humanidade com os animais: “Quem vence um fraco, sempre sai vencido.”
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José Rodrigues Leite e Oiticica nasceu em 22 de julho de 1882 em Oliveira, Minas Gerais. Era o quarto filho do senador e constituinte Francisco Leite e Oiticica.
Referências
Neves, Roberto. José Oiticica: Um anarquista exemplar e uma figura ímpar na história do Brasil – Rio de Janeiro (1970).
Oiticica, José. Ação Direta: meio século de pregação libertária. Introdução e notas de Roberto das Neves. Rio de Janeiro. Editora Germinal (1970).
Ventura, Tereza. Nem Barbárie Nem Civilização! São Paulo. Annablume (2006).
Omena, Maria Aparecida Munhoz. Anarquia nos sonetos de José Oiticica. Revista Litteris (2009).
Junior, Renato Luiz Lauris. José Oiticica: reflexões e vivências de um anarquista. Universidade Estadual Paulista (2009).
Camarina, Mario. Confissões de um Anarquista Emérito. Revista O Cruzeiro, 23/05/1953. Ano XXV. Nº 32.
Silveira, Olmar Guterres. Para um ideário do professor José Oiticica. Revista Idioma. Nº 20 (1998).
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