David Arioch – Jornalismo Cultural

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O boi Fujão

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Alguém gritou: “Segura! Segura! Pega! Pega ele!” (Foto: Reprodução)

Tarde de 1992. Vi um boi correndo por uma das estradas nas imediações da Fazenda Ipiranga. Alguém gritou: “Segura! Segura! Pega! Pega ele!” O boiadeiro seguiu na treita do animal que ziguezagueava confuso, como se não soubesse o que fazer; mas não queria ceder. Era enorme, o maior visto na minha infância. Mais homens foram atrás. Faziam círculos no ar com corda americana.

Na primeira tentativa, o peão da dianteira fez do laço um colar malquisto no pescoço do boi. Breve gemido. Outros quatro também o laçaram em sequência e saltaram dos cavalos. Cinco homens e um esforço tremendo. Suas vontades não se comparavam a do boi que os arrastou como papel ao vento. Um deles bateu a cabeça contra um pedregulho e sangrou, sangrou. Nem levantou – só rolou. Outro peão recuou. A perseguição continuou.

“Você vai pro matadouro, bichão!”, gritou, levantando o punho e mostrando uma mão coberta por luva de couro. O boi parou e assistiu a movimentação levantando poeira em sua direção. Destemor. Os cavalos empacaram. Não queriam continuar. Gritos. Nada. Espora na carne? Sim, sangue dimanando. Nenhum efeito. É, os bichos se entendiam. Troca de olhares, comandos ignorados.

“Vambora, seu filho da puta!”, berrou um deles chicoteando o dorso do cavalo com tanta raiva que babava. O cavalo? Nem reagia, anestesiado, modorrado. Pés no chão. A situação mudou. O boi abaixou a cabeça, levantou e correu em direção aos peões. Mano a mano, cabeçada violenta no estômago do primeiro o lançando em uma vala. Se juntaram para pegá-lo.

“Vou te furar, seu merda!”, berrou o mais afoito correndo em direção ao boi. “Não faça isso, seu babaca! Se matar esse bicho aqui você vai pra rua!”, repreendeu o chefe dos peões. “Agora é uma questão de honra!” O boi nocauteou mais um – cabeça com cabeça. Descuido, canivete de castração no lombo.

O sangue vertia – mas ele não cedia. Arremessou o chefe dos peões contra uma árvore. Caiu sentado com as pernas abertas e a boca sangrando: “Suma da minha frente!” Fujão, nome dado em 1992, desapareceu na poeira da contenda. Adotado por Geraldo, filho de Seu Santo, faleceu no mês passado, 27 anos – 25 distante da violência humana.





 

Written by David Arioch

February 27th, 2018 at 12:10 am

Tonho o boiadeiro

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“Quando o céu sobre a terra desabar, o homem há de acordar. E todos vamos pastar pelo simples prazer de verdejar”

Foto: á fora, Tonho assobiou e Atalante apareceu, um cavalo preto e robusto de 15 anos (Pintura: Amanda Kate)

Lá fora, Tonho assobiou e Atalante apareceu, um cavalo preto e robusto de 15 anos (Pintura: Amanda Kate)

Tonho abriu os olhos, sentou na cama e observou através da janela o céu revolto e avermelhado na madrugada de domingo. Estranhou o silêncio do galo, mas não se importou. Levantou e caminhou até uma pia no canto do quarto. Lavou o rosto, umedeceu os cabelos, ajeitou a barba com as pontas dos dedos e manteve a cabeça baixa enquanto a água escorria. “Acho que o dia não quer nascer, o sol tá de teimosia. De quem deve ser a culpa? Sei lá eu!”, monologou coçando o peito musculoso.

Vestiu calça jeans e camisa azul, lustrou a fivela cintilante que trazia a letra T em destaque e calçou um par de botas de cano alto. Antes de sair para trabalhar, alinhou o chapéu sobre a cabeça, preparou o café, tomou uma caneca e limpou a barba com o dorso da mão direita. “Agora tô pronto!”, disse sorrindo, batendo solas no piso de tacos, e observando o próprio reflexo no espelho pendurado num prego.

Lá fora, Tonho assobiou e Atalante apareceu, um cavalo preto e robusto de 15 anos. Preparou a sela, subiu sobre o lombo do animal e cavalgou em direção à invernada. Nas primeiras horas da manhã, sem berrante e sem assistência, o rapaz mestiço, de origem caiuá e caucasiana, reuniu mais de mil bois cantando “Cabirúchichi”, uma canção que fala sobre a renovação do amor dos seres humanos pelos animais depois de 30 dias de trovoadas e tempestades.

— Quando o céu sobre a terra desabar, o homem há de acordar. E todos vamos pastar pelo simples prazer de verdejar. É o dia que chega, meus amigos!

O gado entendia as palavras de Tonho. Sempre que ele terminava sua canção e seu discurso, eles o observavam com atenção e complacência. E o silêncio de segundos era ofuscado por um coro de mugidos em direção ao céu. A reação da boiada fazia o pasto vibrar e a relva balouçar.

Aquela era a vida do boiadeiro há mais de 10 anos, e ultimamente seu trato com os animais começou a causar estranhamento nos outros peões. Durante a tradicional travessia do Riacho de Santa Luzia, ele tentava confortar a boiada.

— Fica assim não, Rufião. Você consegue! Olhe pra você, cara! Lindão e forte. Veja também quantos de seus amigos estão esperando você atravessar pra te seguir. Vamos lá! Confie em mim. Por favor!

Hesitante, com os cascos apoiados às margens do riacho, Rufião cedeu ao pedido de Tonho. A travessia de Santa Luzia sempre assustava o gado porque fazia parte do percurso final antes do confinamento seguido de abate. Eles pressentiam que o pior estava por vir. Do outro lado do riacho, a boiada pastava lastimosa, como se seguisse um cortejo fúnebre. Tonho tentava animá-los em vão. Nenhum boi queria enxergar nada além da grama queimada e das pegadas de seus irmãos que jamais retornaram.

Alguns escoravam a cabeça sobre os companheiros mais próximos, crentes de que isso poderia protegê-los e afastá-los da morte. Cansados, mugiam baixinho, até que desapareciam no horizonte ensolarado para nunca mais serem vistos por aquelas bandas. Uma semana depois da última travessia, Tonho pulou no Ribeirão Guararema para salvar um bezerro, filho de Rufião, arrastado pela correnteza.

Quando saiu encharcado da água, com o bezerro tremendo e gemendo em seus braços, notou três homens o esperando, sentados sobre a relva, fumando palheiro. Um deles, Cambuci, o mais velho, parou de furar a terra com um canivete de lâmina escura e disse:

— A gente percebeu que você tá diferente, Tonho. Parou de comer carne, ovo e beber leite. E ainda fica tratando bicho que nem gente. Até aí tudo bem! Tenho nada a ver com suas loucuras. Agora o que você fez foi demais. O patrão ficou sabendo de tudo e disse que isso não tá certo, que você traiu a confiança dele e precisa pagar.

Tonho colocou o bezerro na grama, deu um tapinha em seu lombo e o bicho correu para longe.

— Faça o que tiver de fazer, mas saiba que o mundo de hoje e o mundo de amanhã não há de ser o mesmo, independente da sua vontade ou do patrão. A terra sangra junto com os animais. Vai dizer que tu nunca percebeu? Olha o que isso aqui virou. Esse pasto queimado, castigado por mais de 100 dias de estiagem.

Enquanto falava, recebeu cinco balaços no peito e deitou às margens do riacho. Sem replicar, os três pistoleiros travestidos de peões viraram as costas e partiram. Tonho não chorou, gritou ou gemeu, só observou o céu mais claro do que nunca e sentiu uma porção de água acariciando suas orelhas e massageando seus cabelos.

Também assistiu o filho de Rufião lutando para empurrar seu corpo para fora da água com a cabeça. O bezerro gemia e fazia um esforço descomunal. De repente, um longo filete de sangue escorreu da boca de Tonho e se misturou à água, seguindo a correnteza como se tivesse vida própria. “Siga o sangue, siga o sangue, siga o sangue…”, repetiu antes de falecer.

O bezerro se jogou no Guararema e partiu com a aguagem, sendo arrastado por quilômetros. Estonteado e enfraquecido, foi lançado sobre um banco de areia, onde deitou choroso. Em poucos minutos, ouviu um mugido para além da mangueira. Era seu pai, Rufião, inquieto, tentando atravessar a cerca. Surpresa e emocionada, Mirela, namorada de Tonho, se aproximou e pediu que dois rapazes carregassem o bezerro. Batizado como Obajara aquele foi o primeiro dia do jovem sobrevivente no clandestino Santuário Parassú, para onde Tonho enviou centenas de animais nos últimos meses.

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Written by David Arioch

July 31st, 2016 at 3:51 pm

A sina de Nenê, um ex-peão de boiadeiro

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Enquanto gesticula, coça a cabeça e sorri de forma acanhada, ele informa que é dia de música

Nenê:

Nenê: “Vô rum-a píi-a po radímm” (Foto: David Arioch)

Na Rua B da Vila Alta, enquanto eu converso com o artista plástico Tio Lú em frente a um terreno baldio, um homem se aproxima. Não entendo quase nada do que ele diz e suspeito que o sujeito esteja embriagado. Ele carrega um relógio muito bonito, que já não funciona mais. Tio Lú pede que eu aguarde um minuto, entra dentro de sua casa e traz um rádio pequeno. Nenê sorri efusivamente e pega o radinho com uma das mãos. Exibindo os poucos dentes que lhe restam na boca, parece uma criança quando ganha um doce.

Ele segura minha mão e diz algumas frases – entendo não mais do que meia dúzia de palavras e o observo se afastando. Então pergunto ao Tio Lú se ele pode chamar o Nenê novamente para responder uma ou duas perguntas. Em menos de 30 segundos, Nenê retorna e me diz com muita dificuldade que já foi peão de boiadeiro.

Conta que não sente falta dos tempos de boiadeiro, apenas da saúde. Anos atrás, antes de prometer a si mesmo que jamais montaria em um animal novamente, caiu de cima de um touro e bateu a cabeça com força no chão de terra, ficando em coma por vários dias. Quem o conhecia como boiadeiro, decidiu se afastar, julgando que o rapaz nada mais tinha a oferecer. A queda o deixou com graves sequelas, dificultando sua fala, dando a impressão de que está sempre embriagado.

Enquanto gesticula algumas vezes, coça a cabeça e sorri de forma acanhada, ele informa que hoje é dia de música. “Vô rum-a píi-a po radímm”, explica com dificuldade. Dias atrás, Nenê estava caminhando perto da estrada de terra da Farinheira Cassava quando alguns jovens começaram a importuná-lo. Como ele não gosta de briga, tentou se afastar, mas o jogaram no meio de uma roda, o empurraram e o estapearam até que as agressões se intensificaram.

Sem ter como fugir, Nenê derrubou quatro rapazes, distribuindo apenas quatro socos. “Ele é quieto, mas extremamente forte”, declara Tio Lú que toda semana separa algum objeto para entregar a Nenê que gosta de caminhar ladeado pelo Bosque Municipal, tratando cada presente como um motivo a mais para viver no seu universo de inocência e redescoberta tardia.