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Igão, uma vida dura e sonhos modestos
“Eu achava comida no lixo e comia. Sentia fome, né? Tinha bolo, pão doce, essas coisas de padaria”
Na adolescência, depois de ser expulso da casa da avó pelo tio, Igão deixou a Vila Alta e vagou sem rumo, até que seu pai o convidou para morar com ele e a madrasta na casa da sogra na Vila City, também na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. “Logo que comecei a trabalhar eu nem conhecia dinheiro e tive que forçar o cérebro. Catei material reciclável por quase três anos e quando fui pra lá ajudei a sogra do meu pai na mesma atividade. Naquele tempo eu achava comida no lixo e comia. Sentia fome, né? Tinha bolo, pão doce, essas coisas de padaria. Algumas vinham embaladinhas e outras não. A vida era doida”, conta.
Igão, que hoje tem 34 anos, se recorda que por “viver de favor” na Vila City tinha que seguir a disciplina da casa – horário para comer e dormir. “Nunca tive hora pra isso e não consegui seguir o ritmo, então ficava sem comida às vezes. Meu pai sentia dó e me dava o prato dele quando eu chegava”, relata. Meses mais tarde, por não ter conseguido se adaptar, acabou saindo da casa.
Ainda coletando materiais recicláveis, um dia o rapaz desmaiou de fome, caindo sobre o asfalto. “Não é todo dia que as pessoas estão de bom humor pra receber alguém na porta de casa e dar um prato de comida. E como era normal não ganhar o suficiente pra marmita acontecia de apagar na rua mesmo”, narra.
Apesar da vida difícil, Igão nunca desistiu de lutar. Ainda assim, no início da fase adulta não conseguia escapar da miséria. “Saía cedo pra pista e não tinha hora pra voltar. Quando não conseguia nada chegava em casa estressado. Sou um cara que mal sabe ler e escrever, é complicado conseguir qualquer coisa. Já quem tem estudo vai em frente de um jeito que ninguém acredita”, diz.
Em um dia, Igão percorria até os bairros mais distantes da Vila Alta, como Jardim Morumbi, Vila City, Jardim Ipê e Sumaré – distrito de Paranavaí. Igão é muito conhecido na Vila Alta por suas boas ações. Já afastou crianças e adolescentes do mundo do crime e das drogas. Também convenceu alguns a retornaram para a escola, chegando inclusive a levá-los até a entrada do colégio. Além disso, sempre que a chuva arrasta a terra da estrada em frente ao Bosque Municipal até a Rua B, ele reúne alguns amigos para fazer a limpeza de forma voluntária. “Apesar de todas as dificuldades, amanheço sempre alegre e agradecendo a Deus por mais um dia de vida”, garante e afirma que sonha em conseguir um trabalho com carteira assinada.
O rapaz, que já atuou em lavouras de mandioca e algodão, tem experiência como servente de pedreiro e trabalhou na construção de muitas bocas de lobo na Vila Alta. “Atuei nesse ramo por um bom tempo. Torci para que minha carteira esquentasse. O problema é que me demitiram antes. Se tivesse carteira de pedreiro, conseguiria um bom trabalho fácil. A melhor fase da minha vida foi quando trabalhei registrado como operador de betoneira. Tinha até planos de fazer a minha casa”, revela.
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Igão não tem boas lembranças do trabalho no campo porque a jornada diária ultrapassava 12 horas. “Chegava em casa até oito horas da noite e molhado de orvalho. Era sofrido demais”, justifica.
As dificuldades de ser bancário em Paranavaí nos anos 1950
Segundo Adelchi Ferrari, trabalhar em banco era uma ilusão que inebriava os jovens
Andar bem vestido – com paletó alinhado, sapatos sempre engraxados e cabelos cuidadosamente penteados, ser respeitado pela sociedade e convidado para os eventos sociais mais importantes da cidade era o que motivava muitos jovens a se tornarem bancários nos anos 1950. O perfil de pessoa considerada letrada, informada, articulada e versada em números também agradava aos mais entusiasmados.
Era um privilégio e um grande contraste em um país com uma população de mais de 50% de analfabetos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A imagem de bancário ajudava até mesmo na conquista da simpatia das moças. O status era mais atrativo do que o próprio salário oferecido pelas instituições financeiras, principalmente privadas.
“O banco era o trabalho da época, o sonho dos jovens. Você ingressava como bancário e logo era classificado como alguém da sociedade, pura ilusão. Trabalhava que nem um miserável e não ganhava bem pelo que fazia. O ordenado era ruim. Quero dizer, dava para sobreviver, mas não sobrava”, conta o ex-bancário Adelchi Benedito Ferrari que fez parte da primeira geração de bancários de Paranavaí, no Noroeste do Paraná.
Naquele tempo, o expediente começava bem cedo e terminava só à noite. Sem energia elétrica, o costume era ter sempre uma vela ou lampião ao alcance das mãos. “O rosto chegava a ficar coberto de fuligem. Trabalhei assim por 15 anos. Era normal sair meia-noite do banco. Não esqueço que fui convidado a passar o Natal com a família de um amigo e não pude ir porque tivemos que trabalhar até de madrugada”, explica Ferrari.
O ex-bancário também se recorda do episódio em que o filho do empreendedor Remo Massi chegou ao Banco Noroeste quase no final do expediente. “Rapaz, ele voltou de São Paulo com uma pasta cheia de dinheiro, daí o gerente mandou a gente depositar e refazer todo o relatório. A noite foi longa. Tinha vela e lampião por todos os lados”, destaca.
Em uma ocasião, Adelchi Ferrari confidenciou à esposa Mercedes que iria pedir demissão porque não estava mais suportando a intensa jornada de trabalho. “Tinha muita pressão. Certa vez, terminei um relatório meia-noite e apareceu um cara lá com dinheiro para pagar. Fiquei nervoso e esbravejei: ‘Não vou pagar merda nenhuma!’”, relata.
Pelo menos para os funcionários do Banco Noroeste de Paranavaí, a situação começou a melhorar nos anos 1960. Um dia, por volta das 8h, chegou ao banco um senhor de São Paulo conhecido pelo sobrenome Godoy. “Entrou, veio em minha direção, perguntou meu nome e função”, conta Adelchi.
Na tarde daquele dia, o movimento era tão intenso que havia dezenas de cavalos amarrados nas grades ao lado da entrada. Por volta das 16h, Godoy se aproximou do caixa e disse: “Pode virar o carimbo e continuar amanhã”, o que na linguagem da época significava não atender mais nenhum cliente.
Irritado com a cena, o gerente Raul Piccinin se aproximou e desafiou o homem. “Não, senhor! Sou o gerente aqui e quem manda sou eu. Vocês vão trabalhar até a hora que eu quiser!”, narra Ferrari, citando as palavras usadas pelo chefe.
Godoy então perguntou a Piccinin se ele pagava hora extra aos funcionários. Imediatamente respondeu que não. “Não? Então o que você é mesmo?”, questionou o homem. Quando Raul confirmou que era o gerente, Godoy se apresentou como auditor e disse que veio a Paranavaí justamente por saber que os funcionários estavam sendo explorados no Banco Noroeste.
Antes de retornar para São Paulo, o auditor ficou mais 15 dias em Paranavaí acompanhando a situação dos bancários. “Qualquer coisa que ele exigir, vocês podem me telefonar que eu resolvo a situação”, prometeu Godoy. Após as advertências do auditor, nenhum funcionário do Banco Noroeste recebeu ameaças ou foi obrigado a fazer hora extra. De acordo com Adelchi Ferrari, funcionários do Banco Comercial, Banco América do Sul e Bradesco também sofreram trabalhando no período da noite. “A única exceção era o Banco do Brasil”, frisa.
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O Banco Noroeste se situava onde é hoje o pátio do Banco Bradesco.
Adelchi Benedito Ferrari nasceu em 23 de fevereiro de 1930 em Promissão, interior de São Paulo.
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Paranavaí e a sociedade de “colonização bruta”
Uma cidade que de tão heterogênea surgiu com grandes falhas sociais
Não são poucos os pioneiros que afirmam que Paranavaí, no Noroeste do Paraná, é uma cidade formada a partir de uma sociedade de “colonização bruta”. Mas qual é o significado disso?Declarações como essa são justificadas por fatos envolvendo principalmente distinções culturais. Paranavaí foi colonizada pelo governo paranaense, ou seja, houve pouca participação ou abertura para a colonização de iniciativa privada ou planejada. Assim a organização precisava partir da própria comunidade.
Nos anos 1940, nos tempos da Fazenda Brasileira, Paranavaí contava com uma sociedade restrita, pouco sociável e formada pela política da conquista de novas terras. A colônia atraía todo tipo de gente porque os lotes eram baratos e, em algumas situações, até doados. “Havia a coletividade, mas sem articulação social. A maior parte das pessoas vinha pra cá com esse interesse em comum. Não socializavam quase. Assim surgiu uma sociedade com uma colonização bruta, sustentada apenas pelos mesmos objetivos econômicos”, afirma o pioneiro Ephraim Marques Machado.
Como havia povos das mais diferentes origens, por vários anos persistiu uma segregação entre os moradores. Muitos se relacionavam apenas com pessoas que vieram do mesmo estado, região ou país. “Em Paranavaí, naquele tempo, mineiro era chamado de nortista e nortista aqui era considerado ladrão para os migrantes preconceituosos. Sofri muito com isso”, lembra o pioneiro Sátiro Dias de Melo. O testemunho é endossado pelo pioneiro cearense João Mariano que viu muitos peões e colonos nordestinos serem escravizados por migrantes do Sul e Sudeste nos anos 1950 e 1960.
De acordo com Ephraim Machado, a heterogeneidade podia ser vista como um problema social, já que Paranavaí lembrava uma colônia dividida em pequenos povoados. “Os nortistas e os sulistas eram muito diferentes, então o distanciamento foi inevitável. Sem dúvida, algo que interferiu na evolução local. Paranavaí demorou para começar a se constituir como o que chamamos de sociedade nos moldes atuais”, avalia Machado.
A facilidade de acesso às terras fez Paranavaí receber muita gente diferente, não apenas migrantes que sonhavam com um pedaço de terra para construir uma moradia, plantar e assegurar o futuro da família. Aventureiros e oportunistas das mais diversas regiões do Brasil, até mesmo assassinos e ladrões, vinham para a região, crentes de que encontrariam um lugar isolado e de muitas riquezas. “O governo até fretava aviões para abandonar criminosos nas matas virgens das imediações de Paranavaí. O objetivo era não ter despesas e responsabilidades com essa gente”, diz João Mariano.
Pelo país afora, a colônia era conhecida como um local administrado pelo poder público, com pouca interferência da iniciativa privada. “Muitos gostaram daqui por isso”, declara Mariano. Já cidades colonizadas por companhias não atraíam tanta gente assim. O custo de vida não era barato e o investimento era maior em função do planejamento minucioso. E claro, também tinha mais exigências e mais burocracia. Outro diferencial é que em áreas loteadas pelo poder público havia menor participação de autoridades e maior facilidade na realização de negociações escusas.
Intimidada pelo baixo custo dos lotes da antiga Fazenda Brasileira, a Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), conhecida por vender imóveis por preços mais altos, criou uma situação desconfortável entre as décadas de 1940 e 1950. “A companhia chegou até Nova Esperança e ali parou. Eles queriam nos isolar. Não deixavam ninguém fazer nada em Paranavaí, inclusive convenciam quem queria investir aqui de que seria um mau negócio”, lamenta Mariano.
Nos tempos de colonização, Paranavaí foi palco de muitas brigas de corretores de imóveis. “Não esqueço que em 1950, antes de me casar, eu morava no Hotel Real, na antiga Rua Espírito Santo, e ali mesmo o Cangerana assassinou um sujeito por causa de comissão de terras”, relata Machado. Os pioneiros também se recordam do episódio em que um homem matou na Avenida Paraná, no prédio do antigo Banespa, três pessoas que o enganaram em uma negociação.
“Os maiores crimes dos tempos da colonização foram provocados por causa de comissão e não disputa de terras”, ressalta Ephraim Machado, embora admita que houve muitas situações em que o capitão Telmo Ribeiro, braço direito do ex-diretor da Penitenciária do Estado do Paraná, Achilles Pimpão, e amigo do interventor federal Manoel Ribas, teve de intervir em casos de grilagem de terras. Ribeiro foi proprietário de uma fazenda que se transformou no Jardim São Jorge.
No entanto, nada se sabe sobre as implicações legais das atuações de grileiros em Paranavaí, deixando subentendido que muita gente pode ter construído fortunas sem se submeter, em qualquer momento, aos rigores da lei. “Desconheço qualquer caso de alguém de Paranavaí que foi punido por causa disso. Ainda assim, sei que encrenca maior se deu na Gleba Sutucu, Areia Branca, dos Pismel e também na Gleba 23. Teve quem foi tirado da terra à força. Juridicamente, não tenho a mínima ideia de como tudo foi feito”, comenta Machado.
O fato de Paranavaí ser tão grande até o início dos anos 1950 facilitava a grilagem de terras. À época, a colônia tinha uma vasta área que ia até as fronteiras com os estados do Mato Grosso (área do atual Mato Grosso do Sul) e São Paulo. Quem iria fiscalizar tudo isso e com quais recursos, sendo que hoje, mesmo com tantos avanços, ainda existe grilagem no Brasil?”, questiona João Mariano.
Uma transformação social imposta pela pecuária
O pioneiro Ephraim Marques Machado explica que até os anos 1960 era comum um proprietário de terras contratar meeiros para se responsabilizarem pela produção agrícola. “O camarada ia até São Paulo e Minas e falava: ‘Olha, eu tenho 200 alqueires em Paranavaí e vou produzir 100 mil pés de café. Preciso de cinco famílias e dou a ‘meia’ para plantar. Então ele dividia tudo em partes iguais e cada um cuidava de um pedaço”, exemplifica. Com isso, o bom resultado financeiro foi garantido até o surgimento das geadas. A última que castigou a região foi a de 1975.
Nas décadas de 1960 e 1970, Machado viu centenas de meeiros de Paranavaí migrarem para as regiões de Toledo, Marechal Cândido Rondon, Umuarama e Naviraí, no Mato Grosso do Sul. Outros se mudaram para o Norte. Muitas propriedades foram transformadas em pasto depois de 1964 e 1965, quando a colonização caiu bastante. “É aquela: ‘onde entra o boi sai o homem’. O café já não tinha mais tanto valor e o pasto acabou com o que sobrou”, pondera Ephraim. Quem partiu para novas frentes de trabalho trocou a lavoura de café por algodão, amendoim e arroz.
Fazendas que tinham 300 alqueires e garantiam o sustento de pelo menos 15 famílias passaram a ser ocupadas por apenas uma. Em outros casos, nem isso. “A migração modificou a sociedade local. A própria cultura da cidade passou por uma transformação”, enfatiza Ephraim Machado. A partir da década de 1970, Paranavaí, que até então atraiu tanta mão de obra para as lavouras, chamou muita atenção de empreendedores e pecuaristas de outras cidades e estados. Eram pessoas de alto poder aquisitivo que aqui se fixaram para ocupar posição de grande status econômico e social.
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Nos anos 1950, já viviam em Paranavaí, além de migrantes de todas as regiões do Brasil, portugueses, italianos, alemães, poloneses, russos, ucranianos, tchecos, iugoslavos, húngaros, espanhóis, neerlandeses, japoneses, franceses, suíços, sírios e libaneses, além de outros povos.
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