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Sócrates e o consumo de carne como símbolo da injustiça e das desigualdades
A redução dos animais à comida seria um gatilho para minar as condições de construção de uma sociedade mais justa
Um dos fundadores da filosofia ocidental, o filósofo ateniense Sócrates ficou conhecido principalmente pela sua contribuição no campo da ética e da epistemologia. Suas crenças e ideias tornaram-se mundialmente famosas por meio de seus diálogos e discursos registrados por seus discípulos Platão e Xenofonte. Embora não seja possível afirmar se Sócrates foi vegetariano ou protovegetariano, na obra “A República”, escrita por Platão, está clara a sua preocupação sobre as consequências do consumo de carne e da exploração animal, além das implicações desse hábito na saúde humana.
Na página 77 de “A República”, Sócrates comenta com Glauco que levando em conta a forma como as pessoas viviam nas cidades, logo seria considerada imprescindível a criação de gado de todos os tipos. “Mas, levando este tipo de vida, teremos necessidade de muito mais médicos do que antes”, diz Sócrates a Glauco, que concorda com a associação do consumo de carne com o surgimento de problemas de saúde.
Sócrates também critica o hábito dos pastores da época de treinarem os cães para auxiliá-los no trabalho com os rebanhos de carneiros, reconhecendo que esse costume poderia endurecer a natureza dos animais, excitando a intemperança dos cães e tornando-os seres brutos. “A fome ou qualquer hábito vicioso os levaria a fazer mal aos carneiros e a tornarem-se iguais aos lobos [que apenas agiam instintivamente] dos quais os deveriam proteger”, declarou o filósofo ateniense na página 147 de “A República”. A observação de Sócrates revela uma preocupação com o fato da humanidade subverter a natureza animal para benefício próprio.
Na segunda parte de “A República” Platão apresenta Sócrates como um sujeito preocupado com as implicações morais do abate de animais, embora ele demonstre que, primariamente, o que o incomodava era a possibilidade de que o consumo de animais pudesse corromper cada vez mais a humanidade, a distanciando de sua natureza justa e complacente. “Esse hábito de comer animais não exigiria que abatêssemos animais que conhecemos como indivíduos, e em cujos olhos poderíamos olhar e ver-nos refletidos, apenas algumas horas antes de nossa refeição?”, questiona, ao que Glauco responde prontamente: “Esse hábito exigiria isso de nós.”
A coisificação dos animais não humanos é apontada por Sócrates e Glauco como algo capaz de impedir a humanidade de alcançar a felicidade. “E, se seguirmos esse modo de vida, não teremos de visitar o médico com mais frequência?”, questiona o filósofo, que recebe a confirmação de Glauco: “Teríamos tal necessidade.” Sócrates prevê ainda que o hábito de comer animais e criá-los com a finalidade de vendê-los transformaria o ser humano em alguém não somente ambicioso, mas ganancioso a ponto de espoliar propriedades vizinhas para ampliar suas pastagens:
“Se nosso vizinho seguir um caminho semelhante, não teremos que ir à guerra contra o nosso próximo para garantir maiores pastagens? Porque as nossas não serão mais suficientes para o nosso sustento, e nosso vizinho terá a mesma necessidade e entrará em guerra conosco?” Glauco corrobora o receio do ateniense ao confirmar que sim, deixando subentendido que a humanidade se tornaria mais suscetível à decadência e às tentações de uma sociedade imersa em desigualdades. Para Sócrates, a redução dos animais à comida seria um gatilho para minar as condições de construção de uma sociedade mais justa – e um distanciamento cada vez mais crescente da forma mais genuína de felicidade.
Essas reflexões de Sócrates envolvendo a exploração animal e o consumo de carne vão ao encontro do estudo da virtude. Ele dizia que é mais importante a busca do desenvolvimento humano do que a busca pela riqueza material – um dos principais motivos da exploração de animais enquanto produtos. Sócrates acreditava tanto nisso que nem mesmo quando foi sentenciado à morte por questões políticas, segundo as obras “Apologia” e “Críton”, de Platão; e pessoais, de acordo com Xenofonte, cogitou curvar-se ao júri ou fugir em vez de enfrentar a injusta condenação. Nascido em 470 a.C., Sócrates, que preferiu à morte ao exílio, faleceu em 399 a.C, depois de ser obrigado a ingerir cicuta após 30 dias preso.
Referências
Platão. A República. Nova Fronteira (2014).
Platão. A República – Parte II. Escala Educacional (2006).
The Republic of Plato. Translation by F. Sydenham and T. Taylor, revised by W.H.D. Rouse. With introduction by Ernest Barker. London – Methuen (1906).
Kofman, Sarah. Socrates: Fictions of a Philosopher (1998).
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Platão e a crítica ao consumo de carne
O filósofo grego qualificava a carne como um luxo capaz de levar os seres humanos à decadência
Não é possível afirmar que o filósofo grego Platão tenha sido um protovegetariano, já que não há registros fidedignos de seus hábitos alimentares. Porém, em sua obra “A República”, escrita no século 4 a.C., há claros indícios de que o discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles reconhecia a importância de um estilo de vida pacífico. A exemplo de Sócrates, Platão idealizava uma cidade onde as pessoas não se alimentassem da matança de animais, o que alguns pesquisadores interpretaram mais tarde como uma reação ao fato de que à época o consumo de carne já estava muito vinculado ao status dos cidadãos.
Embora também dissesse que tudo existia para o benefício humano, o filósofo grego que era adepto da frugalidade via a abstenção do consumo de carne como um caminho contrário aos excessos e à guerra. De acordo com o pesquisador Nathan Morgan, autor de “The Hidden History of Greco-Roman Vegetarianism”, Platão qualificava a carne como um luxo capaz de levar os seres humanos à decadência. “Ele foi influenciado por conceitos pitagorianos, mas não foi tão longe quanto Pitágoras. Não é clara a forma como ele se alimentava”, pondera Morgan.
Por outro lado, aquele que é considerado por muitos como pioneiro da filosofia ocidental enfatizava a importância da razão, mesmo que isso significasse sacrificar a sensação ou a percepção. Por isso, há quem diga que Platão pode ter contribuído negativamente para o entendimento que Aristóteles teria mais tarde sobre o valor da vida animal não humana; já que a concepção e o enaltecimento de razão enquanto logos naturalmente excluíam seres não humanos.
Contudo, em “A República”, sua obra mais famosa, e inspirada nos diálogos de Sócrates, Platão escreveu que em uma sociedade ideal as pessoas prepararão farinha de cevada e de frumento, cozinharão esta e amassarão aquela. Colocarão seus estupendos bolos e os seus pães em ramos ou folhas frescas e, deitadas em camas de folhagem, feitas de teixo e de murta. “Regalar-se-ão com seus filhos, bebendo vinho, com a cabeça coroada de flores, e cantando louvores aos deuses; passarão assim agradavelmente a vida juntos e regularão o número de filhos pelos seus recursos, para evitar os incômodos da pobreza e os temores da guerra”, registrou na página 76 de “A República”.
E continuou – citando um diálogo de Sócrates com Glauco: “Eles terão sal, azeitonas, queijo, cebolas e esses legumes cozidos que se costumam preparar no campo. Como sobremesa, terão figos, ervilhas e favas; assarão na brasa bagas de murta e bolotas, que comerão, bebendo moderadamente. Assim, passando a vida em paz e com saúde, morrerão velhos, como é natural, e legarão aos filhos uma vida semelhante a deles.”
Na obra, Platão deixa subentendido que um estilo de vida baseado em excessos mina a justiça e potencializa a injustiça. Valendo-se do discurso de Sócrates, ele discorre que a verdadeira cidade deve ser sã – moderada e voltada para a simplicidade. Não pode ser tomada pelo arrebatamento da excitação, do consumo desenfreado. “Parece que muitos não se satisfarão com esse padrão de vida simples e com esse regime: terão leitos, mesas, móveis de toda a espécie, pratos requintados, essências aromáticas, perfumes para queimar, cortesãs, variadas iguanas, e tudo isto em grande quantidade. Portanto, já não podemos considerar apenas necessárias as coisas a que nos referimos no começo: moradias, vestuários e calçados; teremos de levar em conta a pintura e a arte de bordar, procurar ouro, marfim e materiais preciosos de todas as qualidades. Não é isso?”, questiona.
Fundador da primeira instituição de ensino superior do Ocidente, Platão deixou como legado outras obras que ficaram conhecidas como os “diálogos da maturidade”: Fédon, Fedro, Banquete, Menexêno, Eutidemo e Crátilo. Nascido em Atenas em 427 ou 428 a.C, o filósofo grego faleceu em 347 ou 348 a.C.
“Os homens afirmam que é bom cometer a injustiça e mau sofrê-la, mas que há mais mal em sofrê-la do que bem em cometê-la. Por isso, quando mutuamente a cometem e a sofrem e experimentam as duas situações, os que não podem evitar um nem escolher o outro julgam útil entender-se para não voltarem a cometer nem a sofrer a injustiça. Daí se originaram as leis e as convenções e considerou-se legítimo e justo o que prescrevia a lei. E esta a origem e a essência da justiça: situa-se entre o maior bem — cometer impunemente a injustiça — e o maior mal — sofrê-la quando se é incapaz de vingança”, escreveu Platão nas páginas 55 e 56 de “A República”.
Referências
Platão. A República. Nova Fronteira (2014).
https://ivu.org/history/greece_rome/plato.html
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